Padre Vitor Pereira, Diocese de Vila Real
Nos inícios deste verão, encontrei alguns bombeiros a dissertar sobre a acalmia que reinava nos montes da região. Um dos mais experientes profetizou imediatamente: “Deixai vir o setembro”. Quem tem acompanhado os incêndios dos últimos anos, não teria dificuldade em proferir esta profecia, que infelizmente se concretizou. Apesar do lamento nacional, dos muitos estudos e promessas governativas, o flagelo continua e vai continuar. Têm ocorrido em regiões com pouco peso político, não é um tema que dê para ganhar eleições, não promete melhores salários nem melhores pensões, por isso vai continuar a viver de solenes intenções e proclamações, que serão muito bem arrumadas nas gavetas do esquecimento. Vão ver como é que está Pedrógão Grande neste momento.
Quem se dá ao trabalho de percorrer as nossas montanhas e florestas, quer pela caça, quer por desporto, vê que está lá tudo que favorece os incêndios, quer pelo calor, quer pelo combustível natural. Este ano foi um ano viçoso, que ajudou a rebentar matéria inflamável por todo o lado. Sabemos que já não temos as pessoas de outros tempos, que cortavam o mato, limpavam os caminhos, deixavam os lameiros barbeados e as touças asseadas. Daí que seja preciso agir com mais proatividade, cuidado e responsabilidade. Com tanta caminhada que vejo fazer hoje em dia, agora por tudo e por nada, é uma das modas atuais, não sei por que é que não se marcam dias ou jornadas para se dar mais atenção à floresta, se limpar caminhos e zonas em volta das casas, entre outras coisas, de grande significado cívico e de grande interesse para a comunidade. Muitos incêndios florestais devem-se à negligência e ao erro humano. No entanto, também um bom número é causado pela criminosa mão humana. E isto jamais deveria acontecer, e se são pessoas ditas cristãs e que se assumem como tal, é uma grave e inaceitável falha para com a moral cristã. Jamais um cristão pode praticar um ato que lesa profundamente a beleza e a criação de Deus e que destrói indelevelmente o património natural que é de todos. Para manifestar esta gravidade, aqui há uns anos só o bispo podia perdoar a um incendiário.
Contudo, antes que aconteça o trágico incêndio, há muita coisa que os cristãos, enquanto jardineiros, administradores e cuidadores responsáveis da criação de Deus, podem fazer. Vê-se muita erva seca e muita vegetação selvagem em volta de casas e armazéns que não merecem a mínima atenção das pessoas. Muitas pessoas têm propriedades completamente abandonadas, onde não se faz qualquer tipo de barrela há anos. É pasto da bicharada selvagem. E nem sempre é por falta de dinheiro. Nesta hora, mais do que o lamento, a oração e a solidariedade, enquanto zeladores da terra, que todos devemos ser, os cristãos têm de se perguntar: o que podemos fazer para evitar ou reduzir os incêndios? Já ouvimos muitas vezes, e tem muito sentido, que os fogos do verão se apagam no inverno. É essencial fazer uma atenciosa e cuidada gestão do território. E entre nós muito mais. Um território cada vez mais despovoado e envelhecido, sem a mão agrícola de outros tempos, abandonado às forças da natureza, sem ação humana que explore as massas florestais e elimine os matagais selvagens, que crie linhas eficazes de contenção de incêndios, é um território condenado à destruição. O que é que cada um faz pela gestão dos prédios de que é proprietário? Que ações comunitárias se fazem hoje para se zelar pela natureza e o ambiente? Não se poderá resolver tudo, mas alguma coisa se poderá fazer. Onde anda a comunidade?
Atualmente convencionámos que a boa gestão do território deve ser exclusiva de alguns grupos supostamente especializados e competentes, mas não deve ser assim. Poderão e deverão ser eles a liderar, sem dúvida, mas fazer uma boa gestão do território que ocupamos é um dever de todos, faz parte dos valores de uma cidadania responsável e consciente e da mais elementar moral cristã, e hoje muito mais, sabendo-se que o planeta atravessa uma verdadeira crise, está a acontecer uma mudança radical que tem levado à destruição de paisagens, flora e fauna de que temos desfrutado, e que podemos perder irremediavelmente se não agirmos a tempo. É tempo desta sociedade que privilegia o bem-estar, de profundo cariz individualista e hedonista, em que se busca uma vida cómoda e fácil, que se quer tudo sem grande esforço, que só vive à sombra do Estado na resolução dos problemas comunitários, recupere com determinação a sua relação com a natureza e os perigos e exigências que ela acarreta, e a relação com os outros.
É preciso que os cristãos, neste campo, também façam a diferença e liderem ações sensatas e construtivas no cuidado e no zelo da natureza e do ambiente, sem nos pormos sempre à sombra da bananeira, deixando tudo para o Estado e suas instituições, como já referi, ou esperando que boas almas tudo resolvam. Nas nossas mãos está o remédio e a ação preventiva, paliativa e reparadora da nossa região, que é a nossa casa, onde nos sentimos povo e até família. Por isso, a partir da fé, há que promover atitudes de compromisso e de dedicação à natureza, de saber conviver com ela e sermos administradores sábios e prudentes, para não termos de nos envergonhar de ter desperdiçado o que um dia nos foi colocado nas mãos, mas, pelo contrário, sentirmos a alegria de ter feito o que nos era pedido e exigido como cocriadores com Deus, e de termos velado e multiplicado a riqueza, o bem-estar e o futuro do nosso povo e da nossa região.
O nosso país tem a agravante pela atenção que tem sido dada ao interior. Vivo no interior, onde se juntaram os ingredientes explosivos: despovoamento, abandono e envelhecimento. Como pároco, estou a sepultar as últimas gerações que estão ligadas à terra, que amam a terra, e que sabem trabalhar a terra. Depois delas, muitas aldeias vão ficar completamente vazias, a não ser que a história nos surpreenda com inéditas transformações e nos reserve insuspeitas surpresas. O interior nunca foi digno de um verdadeiro projeto de desenvolvimento, pensado com tempo e implementado com inteligência e planificação. Com os subsídios, foi-se e vai-se remediando, até que o colapso vai ser inevitável. Desenvolvemos os grandes centros urbanos e o litoral, onde concentrámos os serviços, os comércios, a indústria e os empregos, e para onde arrastámos a juventude e a força laboral do país. Não é surpresa os muitos incêndios que estão a acontecer. O interior não tem gente, está despido de mão de obra, crescem os terrenos abandonados, os rebanhos são cada vez menos (descobriu-se agora a importância das cabras sapadoras!), a floresta, salvo raras exceções, está abandonada e descuidada, quando, em avoengos tempos, o povo tudo limpava e não deixava que a lenha se acumulasse no monte, os caminhos e terras estão invadidos por giestas, silvados e ervas daninhas de toda a espécie, que, noutros tempos, o abundante povo não permitia. Enfim, a falta de visão e de pensamento estratégico, o desinteresse e abandono a que o interior foi votado, transformou-o num admirável paiol pronto a arder todos os anos.