As empadas de Francisco

Jorge Pires Ferreira, Diocese de Aveiro

De uma coisa, de certeza, os jornalistas não se podiam queixar em relação ao pontificado de Francisco: a falta de notícias. Se em algum momento surgisse alguma espécie de tédio mediático, bastava procurar uma agência de notícias católica (evidentemente, a Ecclesia) ou a agenda do Papa no site do Vaticano e de imediato não faltavam notícias: uma mensagem num encontro, um documento inesperado, alguém a dizer que o Papa lhe tinha telefonado, uma visita papal não programada, um gesto de bondade com ecos proféticos, uma fotografia original… Foi um pontificado rico em imagens, palavras, gestos, de um Papa grande comunicador.

Em tempos de hipermediatização – em todo o momento sabemos tudo o que acontece no mundo, graças ao pequeno ecrã que trazemos no bolso e às centenas de canais de informação –, Francisco foi o pároco do mundo, alguém que as pessoas sentiam próximo, mesmo sem alguma vez o terem visto ao vivo. Durante anos, todos os dias, as agências difundiram diariamente as homilias matinais do Papa na Casa de Santa Marta, sempre incisivas, simples, mas com novidade.

Duvido que seja “ser pároco do mundo” o que se pede a um papa, o sucessor de Pedro e chefe da Igreja Católica por ser bispo de Roma. Mas, com os gestos marcantes que teve e na sociedade de comunicação em que vivemos, foi esse o resultado. O mundo tinha um pároco. Aliás, a sinodalidade que o Papa tanto quis significa passar o poder, ou boa parte dele, para as bases. E isto implica, pelo menos, relativizar as lideranças. Uma igreja sinodal será uma igreja menos papalizada, menos episcopalizada, menos presbiteralizada, ou, como Francisco tanto pregou, menos clerical.

No rescaldo de mais um dia da Comunicações Sociais, vale a pena olhar para o modo como Francisco comunicou, o que poderá ter muitas abordagens e aspetos. Saliento três, seguindo uma regra dele. Primeiro, apostou na simplicidade. Imensas vezes disse que as homilias (e não é este o mais importante momento de comunicação pela palavra na Igreja?) deveriam ser breves, acessíveis como a “conversa da mãe”, não mais que oito minutos, simples, contendo três elementos “uma ideia, um sentimento, uma imagem” (a tal regra que sigo agora).

Depois, apostou na imagem. Um dia, numa reunião de comunicadores católicos, em Fátima, alguém afirmou que o Papa, ao aparecer com uma bata (verde) de hospital e um bebé recém-nascido ao colo, faz mais pela defesa da vida (e contra o aborto) do que muitos discursos. Há imensas imagens destas. Como a caminhar pelas ruas vazias de Roma, durante a pandemia, a caminho da Igreja de São Marcelo, ou a celebrar missa na ilha de Lampedusa, pelos migrantes, ou a almoçar com os pobres, ou a lavar pés de esquecidos da sociedade, ou a oferecer ovos de chocolate gigantes a crianças. Imagens que marcam.

E comunicou sentimentos. Muitos sentimentos. Porque são os sentimentos (alimentados, pensados, rezados, purificados), que nos humanizam. E por isso termino com um excerto de um dos últimos textos de Francisco, da encíclica “Dilexit nos” (24-10-2024), que sendo sobre o Coração de Jesus e o coração humano, é um contraponto ao “racionalismo grego e pré-cristão”, ao “idealismo pós-cristão” e ao “materialismo nas suas diversas formas”: “Na era da inteligência artificial, não podemos esquecer que a poesia e o amor são necessários para salvar o humano. O que nenhum algoritmo conseguirá abarcar é, por exemplo, aquele momento de infância que se recorda com ternura e que continua a acontecer em todos os cantos do planeta, mesmo com o passar dos anos. Penso na utilização do garfo para selar as bordas daquelas empadas caseiras que preparávamos com as nossas mães ou avós. É aquele momento de aprendizagem culinária, a meio caminho entre a brincadeira e a idade adulta, em que assumimos a responsabilidade do trabalho para ajudar o outro. Tal como o exemplo do garfo, poderia citar milhares de pequenos pormenores que sustentam a biografia de cada um: sorrir com uma piada, fazer um desenho em contraluz numa janela, jogar o primeiro jogo de futebol com uma “bola de trapos”, cuidar de lagartas numa caixa de sapatos, secar uma flor entre as páginas de um livro, cuidar de um pássaro que caiu do ninho, formular um desejo ao despetalar uma margarida. Todos estes pequenos pormenores, o ordinário-extraordinário, nunca poderão estar entre os algoritmos. Porque o garfo, as piadas, a janela, a bola, a caixa de sapatos, o livro, o pássaro, a flor… são sustentados pela ternura preservada nas memórias do coração” (Dislexit nos, 20).

Nunca tinha visto um Papa falar e escrever sobre garfos e empadas. Isto não se esquece.

Nota final: Quando Bento XVI resignou, houve quem louvasse tal gesto. Alguns seriam os mesmos que tinha dito, no final aflitivo da vida de João Paulo II, que “à paternidade não se renuncia”. E quando Francisco foi eleito, os livros de Bento XVI entraram em saldo nas livrarias do Vaticano. Agora que temos Leão XIV, não descartemos tão rapidamente Francisco. Ainda temos muito a aprender com ele.

(Os artigos de opinião publicados na secção ‘Opinião’ e ‘Rubricas’ do portal da Agência Ecclesia são da responsabilidade de quem os assina e vinculam apenas os seus autores.)

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