José Santos Cabral, Diocese de Coimbra
De repente despertámos para uma realidade pungente que pensávamos existir apenas noutras latitudes e longitudes. Adormecidos pela sensação, porventura menos correcta, de que vivemos num país com um elevado nível de segurança, olhamos com perplexidade para a eclosão de uma onda de violência que ocorreu em locais que se encontram, tantas vezes, tão próximos de nós. Nas chamas crepitantes dos veículos a arder visualizamos, com receio, as sombras do futuro numa sociedade assimétrica e cheia de contradições.
Tal como no nosso país, o aparecimento de convulsões urbanas, surgindo como sintoma de uma sociedade em crise, ocorreu em vários países europeus ao longo das últimas décadas. Deslocou-se dos bairros de Paris para as ruas de Washington, passando por Londres e, para além do conflito social, geraram uma imensa destruição e a perda de vidas humanas. Tratando-se de um fenómeno transversal, que evidencia as contradições existentes numa comunidade em conflito, desde há muitos anos o mesmo atrai a atenção de sociólogos e criminologistas, procurando encontrar as suas causas. Da relevância do ambiente até à importância da aprendizagem no grupo criminoso, passando pela teoria da anomia, os contributos sucederam-se e, porventura, só uma perspectiva global permitirá uma visão mais precisa da razão de ser de um evento tão grave como é a “revolta urbana”.
Porém, estamos em crer que, para além da correcção de tais análises, o vandalismo que cresce nas nossas cidades, e do qual os acontecimentos recentes são um indicio lancinante, existe ainda uma outra razão mais profunda e que se resume na crise de valores que atravessam as sociedades ocidentais. Na verdade, já no inicio deste século, e olhando o futuro, antevia Habermas uma crise de todo o Ocidente, incluindo da Europa. Para que tal efectivamente emergisse em pleno sucederam-se o colapso das tradições, e a ausência de um sentido global da vida, de critérios éticos e morais e a falta de objectivos e de esperança.
Nos tempos que correm muitos já não sabem como optar perante escolhas fundamentais ou quais os valores devem balizar o seu rumo de vida. As antigas referências e valores, funcionando como bússola ética e moral, já não são úteis e, de uma forma global, impera uma crise de orientação em que a frustração, o medo e a ansiedade pelo futuro se conjugam com novas, e fracturantes, formas de idealizar a sociedade e o Mundo. Por muito que tal nos custe constatar estamos confrontados com uma ausência de sentido de vida e de valores, que não só afecta os indivíduos, mas constitui, também, um problema político de enorme magnitude.
Paralelamente, multiplicam-se os exemplos de situações em que a ambição pelo poder e a ansia pelos bens materiais impelem alguns a ultrapassar todos os imites e regras, sobressaindo o pior de si mesmos para alcançar o seu objetivo.
Uma análise fria, e desapaixonada, dos acontecimentos dos últimos dias permite, ainda, evidenciar alguns aspectos que merecem a nossa atenção como cidadãos preocupados. Efectivamente, uma vez mais importa focar o papel negativo de alguns meios de comunicação e, nomeadamente, de algumas estações televisivas. Perante os nossos olhos emergiu a televisão-espectáculo que, numa constante repetição, emitiu as imagens mais dramáticas de violência em que a anarquia se conjugava com a desorientação e a desordem. Numa competição, sem regras e critérios, procurou-se transmitir as imagens mais impactantes e aptas para gerar estados de alma e alimentar tensões e pulsões irracionais. Num inultrapassável mimetismo alimentaram novos fogos,
Igualmente se mobilizaram-se os comentadores de serviço e os políticos carentes de protagonismo mediático que, a maior parte das vezes à margem de factos, especularam sobre uma realidade que desconheciam e sem o mínimo de pudor, condenaram e absolveram consoante a sua orientação ideológica. O respeito pela dignidade daqueles que sofrem e a presunção de inocência foram uma terra de ninguém para esta gente que tem sempre garantida uma câmara ou um microfone.
Este é, na verdade um tempo difícil em que olhamos com perplexidade o Mundo que nos rodeia. Porém, importa ter alguma esperança pois que, como afirma Francisco na sua encíclica, “Dilexit Nos” o mundo pode mudar a partir do coração e esta deve ser a bússola para “aprendermos a caminhar juntos em direção a um mundo justo, solidário e fraterno”.