O franciscano italiano Francesco Patton é desde 2016 o responsável pela Custódia da Terra Santa, que tem como missão dinamizar e zelar pelos lugares santos em Jerusalém. Prestes a passar o seu segundo Natal em Belém, esteve em Lisboa à conversa com a Agência ECCLESIA, para falar da realidade que se vive na terra que viu Jesus nascer e onde tantos cristãos vão em busca dos locais mais simbólicos para a sua fé.
O religioso nasceu em Vigo Meano, na diocese italiana de Trento, a 23 de dezembro de 1963. O Custódio da Terra Santa é nomeado pela Ordem dos Frades Menores, com a aprovação da Santa Sé, segundo os Estatutos Pontifícios que regulamentam esta entidade.
Centenas de religiosos de várias nacionalidades trabalham atualmente em Israel, na Jordânia, no Egipto, Líbano, Chipre e na Síria, zelando por mais de 70 santuários e lugares santos.
A função principal do Custódio, além de animar a vida dos frades, é a de coordenar e encaminhar o acolhimento dos peregrinos que chegam a Terra Santa em peregrinação, nas pegadas de São Francisco de Assis. Uma presença que já tem 800 anos.
Agência ECCLESIA (AE) – Quais são as suas memórias do Natal em Belém?
Frei Francesco Patton – Este é o meu segundo Natal na Terra Santa e ali o Natal é especial, tanto pelo facto de ser celebrado onde o próprio Natal começou, sobretudo em Belém, e é especial também pela presença dos peregrinos que acorreram com um grande desejo de poder ver o lugar onde Jesus nasceu, de o tocar, fisicamente, pôr a mão na estrela que marca o lugar do nascimento.
Para mim, é sempre comovente poder ver a manjedoura, isto é, a pequena capela no interior da Gruta da Natividade, onde está a manjedoura e diante do altar dos Reis Magos. Poder celebrar ali é algo muito significativo, porque recorda como Jesus, que se fez depois nosso alimento, na Eucaristia, desde pequenino é indicado quase como nosso alimento, ao ser colocado na manjedoura.
Por isso, o Natal em Belém é algo de especial, é algo de particular. O contexto, depois, é muito realistas: Jesus nasceu num contexto muito difícil, num período de grave crise política para a Terra Santa, de então; ainda hoje, é um momento difícil para a Terra Santa e, portanto, quem vem e celebra ali o Natal não o celebra de forma artificial, mas celebra-o, de algum forma, revivendo a dificuldade, os desconfortos que o próprio Menino Jesus experimentou?
AE – É a dificuldade de um povo que não tem terra para o seu país, a mesma de Jesus, que não tinha um lugar para nascer?
FP – De certa forma sim, é uma dificuldade semelhante, mas temos de pensar na dificuldade maior, que é a dificuldade da minoria cristã, que muitas vezes é apanhada no meio, quando há tensões e dificuldades entre as duas realidades maioritárias. A pequena comunidade cristã, de algum modo, faz realmente a experiência do que significa continuar, na história, o mistério da pequenez de Deus que se fez carne e que assumiu a nossa fragilidade, todo o risco que está ligado à fragilidade de uma criança. A comunidade cristã na Terra Santa é um pouco como o Menino Jesus, pequena, frágil, tem certamente necessidade de ajuda e de proteção.
AE – Neste Natal, em particular, tem a expectativa de muitos peregrinos nas celebrações em Belém?
FP – Nós esperamos que muitos peregrinos venham a Belém. Estive lá no primeiro domingo de Advento e a cidade estava cheia de cristãos locais e de peregrinos. Esperamos que as tensões dos últimos tempos não arruínem o Natal, de alguma forma, que não haja tensões que desencorajem os peregrinos de ir, que desencorajem os cristãos a celebrar o nascimento do Filho de Deus na nossa história, na carne.
Nós esperamos que as pessoas venham, pelo Natal, e que essa vinda a Belém no Natal ajude a manter o olhar fixo sobre esta terra, este lugar, e de alguma forma ajudar, com a presença e a oração dos peregrinos, a percorrer o caminho da paz.
AE – Como foi para si passar o Natal em Belém, pela primeira vez?
FP – Foi um Natal muito particular, já como Custódio, em 2016. Nesta ocasião, como em todos os anos, janta com a nossa comunidade franciscana de Belém o presidente da Autoridade Palestina, Abu Mazen, e celebrou-se a Missa de forma muito solene, à meia-noite. Depois, o Natal ali prolonga-se, e o momento em que ele se sente ainda mais é na Epifania, porque se somam as celebrações das várias comunidades cristãs [segundo os calendários juliano e gregoriano, ndr] e, portanto, vê-se em toda a volta da gruta de Belém os cristãos que chegam da Ásia, da África, da Europa… Há a nossa procissão, que somos os latinos, os mais europeus; há a procissão das várias Igrejas Orientais: os coptas, que claramente chegam da África, e depois as Igrejas Ortodoxas, da Ásia. Portanto, no meio de uma aparente, grande confusão, na realidade vê-se todo o mundo, toda a humanidade que se colocou a caminho para adorar o Menino em quem reconhecemos o Salvador. Eis, esta confusão, por assim dizer, do meu ponto de vista, é muito bonita e muito sugestiva, porque manifesta de forma real aquela que é a busca da humanidade, o desejo que tem de poder encontrar-se com aquele Menino.
AE – E de que forma é que os as populações muçulmanas e judaicas olham para os cristãos na celebração do Natal?
FP – Depende dos vários locais: por exemplo, muitos dos muçulmanos têm devoção ao Menino Jesus, em Belém. De forma especial, as mulheres muçulmanas têm devoção à Virgem Maria, vêm visitar a Gruta da Natividade e também outro santuário, pequeno, que é a Gruta do Leite, também ali em Belém, a poucas centenas de metros da Basílica da Natividade, onde se recorda Maria que amamenta o Menino Jesus. Há esta devoção, também por parte dos muçulmanos locais, dos que conhecem a tradição cristã, bem como há uma participação por parte do mundo judaico no que são as celebrações nalguns outros lugares, como o santuário de São João Batista, em Ain Karem, ou Nazaré, onde está o Santuário da Anunciação. Por ocasião da Missa da Noite de Natal, estas pessoas vêm sobretudo porque são atraídas pela beleza dos cânticos.
Depois, naturalmente, há as nossas comunidades cristãs locais, que são as comunidades cristãs de língua árabe, na sua maior parte, na continuidade das comunidades cristãs palestinas. Há também pequenas comunidades cristãs de língua hebraica e comunidades que já não são assim tão pequenas, as dos trabalhadores migrantes, estrangeiros, que vivem sobretudo em Israel e que vivem e celebram o Natal em Telavive, Jafa, Jerusalém ou na Galileia: Nazaré, Haifa, noutros lugares. Isto dá um pouco a ideia desta Terra Santa como um local que, no Natal, pode verdadeiramente atrair todos.
A Custódia é muito mais ampla, também se celebra o Natal no Líbano e na Síria. Em 2016, por exemplo, em Alepo, pela primeira vez, os nossos frades puderam celebrar o Natal na nossa paróquia latina, sem terem como fundo o barulho das bombas, após cerca de 5 anos de guerra na cidade. Esta foi uma experiência muito importante para os cristãos de Alepo, um sinal de esperança para o futuro.
AE – No Natal celebra-se a vinda do Príncipe da Paz num ambiente que tarda em deixar a guerra…
FP – Não seria precisa a vinda do Príncipe da Paz se já existisse a paz… Se reconhecemos em Jesus o Príncipe da Paz, o autor da paz – São Paulo disse “Ele que fez a Paz” – é porque temos a consciência de que a humanidade tem necessidade de paz. E não só na Terra Santa, sabemos muito bem quantos conflitos estão presentes, quantos conflitos subterrâneos existem, quantos conflitos são continuamente alimentados. Esta é a história do pecado da humanidade, o tema inimizade, guerra, ódio e pecado é um tema único. Da mesma forma como o tema paz, perdão, reconciliação, através do dom de si que Jesus fez na cruz.
Depois, claramente, existe a paz dos homens, aquele equilíbrio muito frágil que periodicamente, poderíamos dizer, acalma os conflitos; e há a paz entendida num sentido bem mais profundo, que é a paz no sentido bíblico, a plena realização do bem que Deus quer para toda a humanidade.
AE – Nesta celebração do Natal, sentem que todo o mundo olha para Belém como o local do nascimento, do início da era cristã?
FP – Sim. Belém é o início, São Francisco, numa das suas frases geniais, disse que em Belém, ao nascer, Jesus Cristo começa a salvar-nos. E diz que, por este motivo, temos de fazer festa de modo extraordinariamente solene, fazer festa não só do ponto de vista religioso mas também que envolva todas as criaturas. Por ocasião do Natal, dia do nascimento, dia em que celebramos o nascimento de Jesus, São Francisco diz que devemos dar de comer mesmo aos passarinhos, a todos os animais: a ideia de que este nascimento é mais do que uma data na história, é uma mudança profunda na história. A Salvação realiza-se dentro da história, dando-lhe um sentido, e fazer festa é muito importante. É preciso que a festa seja plena, completa, total, que seja festa religiosa, que voltemos a escutar a Palavra de Deus, que nos conta esse nascimento; que seja viver o mistério, celebrar; e que seja também uma festa que toca a realidade diária, o nosso viver em família, para nos fazer perceber como esse nascimento reconciliou todo o universo. Eis porque é importante e bonito fazer festa mesmo com os animais, que estão nas nossas casas ou nos jardins.
AE – Apesar de tudo, nos últimos anos, nos últimos meses, tem aumentado o número de peregrinos?
FP – No último ano, aumentou de forma significativa. Desde setembro de 2016 até o início de dezembro deste ano, os peregrinos foram muito, muito numerosos, podemos dizer com números recorde. Antes, houve um período prolongado de sofrimento, de falta de peregrinos e isso para nós é um problema. Ainda mais, para nós é um problema para a pequena comunidade cristã local, porque muitos vivem do seu próprio trabalho, por exemplo em Belém, quando há peregrinos: muitos deles trabalham no artesanato em função dos peregrinos. Quem adquire objetos artesanais em madeira de oliveira, em madrepérola, os terços, as recordações? São os peregrinos. Se eles faltam, os artesãos locais não têm trabalho. Da mesma maneira, o acolhimento dos peregrinos dá trabalho aos cristãos locais, nos hotéis, nas pensões, muitas vezes como guias dos próprios peregrinos.
Por isso, quando há peregrinos, há maior possibilidade de viver do próprio trabalho para a minoria cristã local, de viver com dignidade. Quando faltam os peregrinos, tudo isto é mais difícil.
AE – Olhando para a atualidade, que consequências terá a determinação de Donald Trump de colocar a embaixada norte-americana em Israel na cidade de Jerusalém?
FP – O Papa Francisco já fez um comentário extremamente significativo, usando duas palavras de convite: sabedoria e prudência. Não tenho nada a acrescentar. Há uma oração muito bonita, no Livro da Sabedoria, no Antigo Testamento, que é a oração de Salomão. Chamado a governar, jovem e com pouca experiência, Salomão reza e diz a Deus: “Dá-me a sabedoria que se senta junto a ti, no trono, para que eu saiba aquilo que te é agradável”.
A sabedoria serve para evitar decisões e também palavras poucos prudentes. O dom da prudência, por sua vez, não é o medo de fazer algo, é uma coisa bem mais profunda, é uma das virtudes cardeais: é precisamente a capacidade de saber avaliar muito bem qual é a palavra dizer, a coisa a fazer, o caminho a seguir.
Penso que quando o Papa convidou à sabedoria e à prudência, fez um convite que todos podemos retomar e voltar a propor.
Todos nós podemos modificar decisões tomadas e mudar palavras ditas. É preciso procurar sempre ajudar neste percurso e processo que é já de si muito frágil, muito difícil, que é o percurso, o processo da paz em todo o Médio Oriente. Não é só uma questão Israel-Palestina, diz respeito ao Médio Oriente e, em perspetiva, a todo o mundo.
AE – Acredita que é possível voltar atrás, nesta decisão?
FP – Veremos. Não sou um profeta. É muito difícil fazer previsões na Terra Santa, seria um exercício meramente teórico.
AE – O processo de paz está em causa, com esta decisão?
FP – O processo de paz é sempre frágil, é preciso que seja sempre encorajado, com a consciência de que, sempre que se promove um processo de paz, é preciso que cada uma das partes envolvidas perceba que poder chegar a um acordo justo, digno, que não humilhe, no fundo, é uma vantagem para todos. Todos os que estão envolvidos devem perceber que a paz é conveniente, isto é, que a paz é a que pode garantir um futuro às duas partes, às crianças que nasceram e que vão nascer.
AE – Receia que o número de peregrinos diminua?
FP – Se houver atos de violência, é provável que os peregrinos diminuam. Nós, repito, esperamos que não haja atos de violência, excessivos e por um tempo prolongado. E esperamos que os peregrinos venham, que a sua vinda, de alguma forma, contribua também para superar este tipo de situação.
AE – Na sua opinião, Jerusalém deveria ser a capital dos dois Estados, Israel e Palestina?
FP – A minha opinião é a que foi manifestada, oficialmente, pela Santa Sé: a ideia que Jerusalém é uma cidade que pertence a dois povos e a três fés. Por isso, não uma cidade dividida, mas partilhada, onde possam viver em paz judeus e palestinos e onde possam rezar em paz os que são da religião judaica, da religião cristã e da religião muçulmana.
AE – A Custódia Franciscana da Terra Santa está a celebrar 800 anos. Que desafios enfrenta, neste momento, o que é que faz da presença dos franciscanos uma necessidade?
FP – Nós estamos ali com um mandato específico da Santa Sé, que é o mandato de guardar os lugares santos, ou seja, os santuários cristãos. Por isso, a nossa primeira missão é a de guardar, o que significa tomar conta, de muitos santuários, cerca de 70, e torná-los acessíveis aos peregrinos, porque os santuários são lugares físicos que trazem a memória de uma palavra bíblica, de uma palavra evangélica, de um ato do Evangelho. Isto é evidente: Nazaré é o lugar da Anunciação, Belém é o lugar do nascimento, o Calvário é o lugar da crucifixão, o Sepulcro é o lugar da ressurreição. São lugares que têm uma importância extraordinária para a nossa fé de cristãos.
Além de tomar conta destes lugares e de os tornar acessíveis aos peregrinos, para uma experiência de fé pessoal, a nossa missão, que foi confirmada pelo Papa Francisco, é também cuidar da pequena comunidade cristã local. Por isso, temos a responsabilidade pastoral de muitas paróquias, das principais paróquias católicas na Terra Santa – basta pensar em Nazaré, Belém e Jerusalém – e temos também um cuidado pastoral com outras realidades, como por exemplo as escolas. Temos cerca de 15 escolas, com mais de 10 mil estudantes, que são um dos lugares nos quais a convivência é possível, dado que a maior parte dos alunos são muçulmanos, mas certamente ganham uma maior abertura de mentalidade e convivência.
Depois há todas as obras sociais, em favor da comunidade cristã local, como pôr ao dispor das famílias casas, apartamentos, bem como as obras em favor dos trabalhadores estrangeiros. Nestes anos, também a proximidade à população – cristã, em primeiro lugar, mas também os outros – da Síria, durante a guerra. A nossa presença foi constante, mesmo durante estes anos, os irmãos ficaram ao lado da população, mesmo colocando em risco a sua própria vida. Os desafios são estes, ligados a uma missão histórica, mas também a uma missão pastoral que coincide com aquilo que as pessoas vivem no seu tempo.
AE – O que é que pede, aos cristãos de todo o mundo, neste Natal?
FP – Os meus votos para os cristãos de todo o mundo é que, de alguma forma, embora vivendo a milhares de quilómetros de Belém, consigam encontrar no interior das suas casas pelo menos um canto onde haja uma recordação da gruta de Belém, onde haja o presépio, com aquela gruta onde Jesus nasceu. E que, sobretudo, não faltem as personagens principais, as personagens principais não são o burro e a vaca, são o Menino Jesus, Nossa Senhora e São José. Que o Menino Jesus consiga entrar em todas as nossas famílias.
O Natal lembra-nos que não basta fazer festa um dia, mas que é preciso, realmente, permitir que esta criança nos acompanhe ao longo de toda a vida, é preciso deixar que ela cresça.
AE – Costumam receber mensagens, das várias partes do mundo, para o Menino Jesus, em Belém?
FP – Sim, na verdade recebemos – mais do que mensagens em Belém para o Menino Jesus -, recebemos mensagens por parte de famílias que pedem o dom dos filhos, sobretudo na Gruta do Leite, este lugar que é muito próximo da Gruta da Natividade. Chegam muitíssimas cartas de jovens casais, de famílias que pedem, por intercessão de Maria e do Menino Jesus, o dom de poder ter filhos. Depois são muitas as cartas que chegam a agradecer, é algo muito bonito que em Belém se peça isto, que se peça para poder acolher a vida.
Paulo Rocha