Miguel Oliveira Panão (Professor Universitário), Blog & Autor
Excerto adaptado incluido no livro “Ética Relacional: um caminho de sabedoria”, UCEditora, 2017.
Quando é que o ser humano será capaz de se reconhecer como comunhão? Comunhão que significa uma intimidade tal que experimentamos uma unidade entre nós para além das nossas capacidades. É uma expressão da nossa vocação a ser-amor. E amar é uma arte. Enquanto não descobrirmos o que significa amar a natureza, será difícil construir uma ética com a natureza e ficar-nos-emos pela ética da natureza. Pois, uma ética ”com” implica relação, ou seja, comunhão.
Inspirado pela Arte de Amar do modo como Chiara Lubich a sugeriu, podemos encontrar um modo simples e prático de experimentá-la para renovar o nosso relacionamento com o mundo natural e descobrir novos horizontes do agir ético.
Amar Jesus no outro
A convicção cristã é a de que Jesus está presente em cada um.
“Tudo o que fizerdes a um destes meus irmãos mais pequeninos, a mim mesmo o fizestes” (Mt 25, 40).
Por isso, independentemente das nossas convicções, este convite implica elevarmos cada pessoa ao patamar da mais alta dignidade que podemos dar a alguém. Enquanto que isso pode parecer relativamente evidente quando o outro é um ser humano, o mesmo não acontece quando o “outro” é o mundo natural. Como ver Jesus na natureza?
Como afirma o Papa Francisco na sua Carta Encíclica Laudato Si’, o universo é a linguagem através da qual Deus nos fala, logo, tudo na natureza é como uma palavra pronunciada por Deus, e Jesus é a Palavra de Deus incarnada. Quando amamos Jesus no outro, amamos a “palavra” que Deus escreve na história através da vida de cada um. Nesse sentido, ver Jesus na natureza e amá-la corresponde a amar a “palavra” que Deus escreveu na história através de cada entidade do mundo natural.
Amar a todos
O amor verdadeiro não distingue o simpático do antipático, o bonito do feio, o grande do pequeno, o compatriota do estrangeiro. Não faz acepção de pessoas, mas ama a todos.
A diversidade na natureza leva-nos a momentos de verdadeira contemplação pela beleza que nos transmitem, mas também a momentos de verdadeira repulsa pela fealdade que encerram. Amar tudo na natureza significa exercer com essa a “ginástica” espiritual de amar tudo o que é belo e o que não é.
Ser o primeiro a amar
“Deus amou e, por isso, criou.” (Chiara Lubich)
Só o Amor poderia ter sido o primeiro a amar, e com isso ensinar que o amor não espera ser amado para amar, mas é o primeiro a tomar a iniciativa de o fazer.
A natureza é o meio onde vivemos. É a pintura subjacente a cada dia que começa ou termina. Cada vento, chuva ou céu limpo. Tudo simplesmente está presente e segue o curso que a dinâmica natural dita em cada momento. A natureza não espera ser amada de forma consciente, uma vez que nós, seres humanos, somos a natureza consciente de si mesma. E nesse sentido, o convite a ser o primeiro a amar a natureza é evidente. Antes de tomar uma atitude, será que é uma atitude de amor?
Amar o outro como a si mesmo
Existe uma regra universal, presente em muitas religiões da Terra, e compreendida/acolhida por quem não tem sequer religião:
“Faz aos outros o que gostarias que fizessem a ti.”
É a Regra de Ouro.
Um convite a agir com o outro do mesmo modo como gostaríamos que agissem connosco. Quando pensamos naquilo que a humanidade faz, por vezes, ao mundo natural, sem estudar antes para perceber a melhor forma de agir, é como se agisse contra outro ser humano sem pensar. É verdade que cortamos o cabelo quando está grande, assim como podamos os ramos de uma árvore para que continue a crescer. Mas ninguém tira ao outro os pulmões, caso contrário não consegue respirar, pelo que o desbaste de árvores na Amazónia é referido por muitos como um ataque ao pulmão do planeta.
Fazer-se um
Amar assim significa fazer nossas as dores, alegrias, tristezas do outro, ou seja, “fazer-se um” com o outro. Enquanto o outro for um ser humano, embora por vezes não seja fácil, o modo de o fazer sabemo-lo bem, basta-nos a coragem de tomar a iniciativa. Mas quando esse outro é o mundo natural, questionamos o que significa “fazermo-nos um” com a natureza. Todos os ser vivos que são natureza e sentem, possibilitam este “fazer-se um”, mas quanto ao que na natureza não possui “sentimentos”, leva-nos a questionar o sentido e significado deste ponto da Arte de Amar.
Penso que a resposta possa estar no acto de contemplar.
Ao contemplar a natureza podemos fazer uma experiência profunda de unidade com a dinâmica e história que se desenrola no universo e da qual fazemos parte. Contemplar pode ser um acto de profunda comunhão através do olhar, ouvir, tocar, saborear, cheirar. Através dos sentidos experimentamos um contacto com tudo o que está à nossa volta, e experimentar um momento rico de sentido e significado pode levar-nos à contemplação, a experimentar como fazemos parte da mesma dinâmica e história, ou seja, como “somos-um”, de certo modo.
Amar o inimigo
Este ponto da arte de amar é um autêntico desafio. É por muitos considerado um contra-senso. Mas é precisamente aqui que o Cristianismo marca o limite do amor autêntico, que não cessa enquanto não for para além dos limites da compreensão humana, surpreender e for revolucionário.
O inimigo é aquele que nos faz mal e, por vezes, existem catástrofes naturais que nos fazem mal, pelo que, em diversas circunstâncias, a natureza é considerada pelo homem como um inimigo. Porém, a dor e o sofrimento com origem no mundo natural, por exemplo, um tsunami, ou o surto de um virus mortal, fazem parte da dinâmica da história do mundo natural. E ser parte do mundo natural, mas querer ficar à parte dos eventos contingentes é querer controlar a nossa própria história. Há que reconhecer os limites daquilo que somos e procurar aceitar, cada vez mais, fazermos parte da história contingente do mundo. Sempre que esses momentos acontecem, no fundo, podemos ver a natureza como um inimigo, e são uma oportunidade de a amar nessa condição.
Amar-se reciprocamente
“Amai-vos uns aos outros como eu vos amei.” O amor torna-se autêntico e verdadeiro quando é recíproco. Afirma-se que a medida do amor é amar sem medida, mas por que razão? Na arte de amar percebemos que “amar sem medida” significa amar até que se torne recíproco. O desafio quando procuramos entender a transposição disto para o relacionamento com o mundo natural é: como pode a natureza devolver o nosso amor e o que nos leva a reconhecê-lo como recíproco?
Se pensarmos bem, nós – como natureza consciente de si mesma – agimos em relação à natureza transformando-a, e cuidando dessa à luz do equilíbrio dos sistemas ecológicos. A natureza, na reciprocidade, dá-nos história e aqui é essencial reconhecer o valor da história.
O ser humano possui um desejo insaciável de saber, mas esse saber não significa apenas estar informado, mas, também, compreender. Porém, para compreender verdadeiramente certas coisas importa tempo, história, uma sinfonia de eventos sequenciais e simultâneos que nos permite compreender por que razão houve coisas que aconteceram de uma certa maneira. Ora, poderemos considerar essa como um forma da natureza nos amar. Dá-nos história.
Por outro lado, se vivemos é porque respiramos o oxigénio proveniente das árvores, beneficiamos da luz do Sol, ou da inspiração da noite. Toda a natureza, quando contemplada, não deixa de nos deslumbrar. Será que poderemos considerar esse deslumbramento uma experiência de nos sentirmos amados? Mas não é fácil entender que esse amor provenha da natureza. É aqui que me parece essencial entender que a alteridade na natureza que me permite vê-la como um outro não provém da própria natureza, mas da experiência da presença de Deus que fazemos através dela.
No fundo, quando nestes pontos foi necessário personalizar a natureza, na realidade, seria a pessoa de Deus e a Sua presença com quem vivemos esta Arte de Amar. Algo que se torna um desafio quando não se crê em Deus. Nesse caso emerge um vazio outrora ocupado pela experiência da presença de Deus. Ou seja, seria antes a experiência da ausência de Deus. Mas também na Arte de Amar existe uma resposta.
Nessas situações, independentemente das nossas crenças contemplamos um ícone de Jesus que na Cruz experimenta o abandono do Pai. Um Deus-Filho que experimenta o Abandono de Deus-Pai. Um paradoxo. Não há nada como experimentar amar esse Paradoxo, mesmo que não acreditemos nele. Amar o Paradoxo significa o êxodo limite de si mesmo e daquilo que é racional para mergulhar totalmente no relacional e deixarmo-nos fluir pelo rio da história que nos conduz a todos até à experiência do inesperado, desafiando a cada momento a nossa capacidade de nos deixarmos surpreender.