Apresentação do livro «Jesus de Nazaré» pelo cardeal-patriarca de Lisboa

“Jesus de Nazaré”

Foi vontade do Santo Padre que a apresentação deste 2º volume de “Jesus de Nazaré” não obedecesse aos critérios editoriais habituais na edição de um livro, mas fosse uma apresentação ao Povo de Deus, feita pelo Bispo diocesano, Pastor da Igreja particular. É por isso que estou aqui, não como um perito, mas como Pastor da Igreja de Lisboa, convidando-vos a integrarem a leitura deste 2º volume na vossa caminhada quaresmal e na celebração da Páscoa deste ano. De facto, ele acompanha a pessoa de Jesus na sua última subida a Jerusalém, durante a festa judaica da Páscoa, contexto em que celebrou a sua Páscoa, a nova Páscoa, que continua a ser a nossa Páscoa. Este livro convida-nos a juntarmo-nos ao Senhor e a fazer com Ele a grande passagem, aquela que pode mudar definitivamente a nossa vida.

Nesta perspectiva, há coisas que eu não posso, nem quero fazer: emitir opiniões pessoais de análise crítica sobre as leituras exegético-teológicas do autor. O livro cativou-me, é uma palavra do nosso Papa, quero apenas aceitar o convite que nos faz de acompanhar Jesus, na celebração da Páscoa, aproximar-me, guiado pelo Papa, dessa figura apaixonante de Jesus Cristo. Esse é o seu objectivo: “aproximar-me de Nosso Senhor de um modo que possa ser útil a todos os leitores que queiram encontrar Jesus e acreditar n’Ele” (cf. p. 12). Este objectivo o autor enuncia-o mais vezes. Por exemplo ao falar da presença de Jesus diante do Sinédrio, afirma: “Vejamos agora, mais de perto as narrações dos Evangelhos, sempre com o objectivo de aprender a conhecer e compreender melhor a figura do próprio Jesus” (p. 146).

Outra coisa que eu não quero fazer: anular o espaço da vossa surpresa e do vosso encantamento na leitura do livro, fazendo já demasiadas referências à maneira como o autor nos quer conduzir ao encontro de Jesus, o Jesus dos Evangelhos, o Jesus da fé da Igreja. Limitar-me-ei a indicar-vos alguns critérios, que sendo os do autor, devem conduzir o leitor neste fazer-se discípulo do Senhor também através da leitura deste livro, o que deve acontecer no contexto da nossa celebração da Páscoa.

 

2. Mas afinal que livro é este? Um acto de magistério do Papa Bento XVI? O livro de um grande teólogo que atingiu, em síntese harmónica, o verdadeiro sentido da teologia? Temos que admitir que é um “tertium genus”, a que a Igreja não estava habituada. O papado não anulou o teólogo que, agora, põe todo o saber adquirido, ao serviço da Igreja, como Mestre da fé. Este volume é, sintomaticamente, assinado por Joseph Ratzinger e Bento XVI. Qual deles prevalece? Juntam-se ambos num texto onde a ciência desabrocha na sabedoria, isto é, no caminho humano para ir ao encontro de Cristo, em Igreja, sem deixar de apontar as verdadeiras exigências que o encontro com Cristo apresenta aos seus discípulos. Faz questão em recordar, várias vezes, que o cristianismo não é, apenas, uma nova moral, mas é uma vida nova, que toca no ser ontológico do homem e o introduz na vida autêntica e definitiva. Uma obra, como esta, significa o apogeu da teologia e da sua importância na vida da Igreja e na caminhada da fé de cada crente. Logo no Prefácio afirma: “Se a exegese bíblica científica não quer exaurir-se em hipóteses sempre novas, tornando-se teologicamente insignificante, deve realizar um passo metodologicamente novo e voltar a reconhecer-se como disciplina teológica, sem renunciar ao seu carácter histórico” (p.10).

Tratando-se de um livro que trabalha, sobretudo, textos bíblicos, esta afirmação exige, necessariamente, o repensar a hermenêutica bíblica, ou seja, o método e a arte para ler e interpretar a Sagrada Escritura. Bento XVI vai voltar a este tema da importância da hermenêutica para a leitura da Sagrada Escritura na Igreja, na Exortação Post-Sinodal “Verbum Domini” (VD. Nn. 29ss). Aqui, para chegar ao encontro com o Jesus real, chama a atenção para a insuficiência da hermenêutica histórica, baseada no método histórico-crítico, que deve ser completada com uma hermenêutica da fé que inclui, como elementos para nos levar até ao Jesus real, a maneira como os Apóstolos ouviram e acreditaram em Jesus, e como a Igreja apostólica viu Jesus. O autor reconhece que “esta união de dois géneros de hermenêutica muito diferentes entre si é uma tarefa a realizar sempre de novo. Mas tal união é possível e através dela as grandes intuições da exegese patrística poderão, num contexto novo, voltar a dar fruto” (p. 10). Há a convicção de que só na Igreja se encontra o Jesus real. “Conjugando, entre si, estas duas hermenêuticas, procurei desenvolver um olhar sobre o Jesus dos Evangelhos e uma escuta d’Ele, que pudessem tornar-se um encontro. Todavia, na escuta em comunhão com os discípulos de Jesus de todos os tempos, chegar também à certeza da figura verdadeiramente histórica de Jesus”. E o autor explica-nos ainda mais claramente a sua escolha metodológica: “procurei manter-me fora das controvérsias possíveis sobre muitos elementos particulares e reflectir apenas sobre as palavras e as acções essenciais de Jesus, guiado pela hermenêutica da fé, mas ao mesmo tempo tendo responsavelmente em conta a razão histórica necessariamente contida nessa mesma fé” (p. 12).

 

3. Uma expressão importante desta opção hermenêutica é a unidade dos dois Testamentos. É o mesmo Povo, a quem Deus se revelou e mantém total fidelidade à Aliança. Tudo o que Jesus é e faz está na continuidade da fidelidade de Deus à sua Aliança. Isso torna-se claro nos Salmos: “Jesus reza em perfeita comunhão com Israel e, contudo, Ele mesmo é Israel de um modo novo”. Ao encontrar Cristo percebemos que todo o Antigo Testamento tem de ser lido à luz de Cristo, da realização plena da Aliança. O autor lembra Santo Agostinho que diz que “nos salmos é sempre Cristo que fala, umas vezes como cabeça, outras como corpo” (p. 124).

Nesta harmonia com o Antigo Testamento há uma síntese entre fidelidade e novidade (p. 125). Quando Jesus define o seu ministério messiânico, a sua realeza, fá-lo sempre como realização do que estava anunciado, nos profetas e nos salmos, a oração de Israel; mas a maneira como a profecia se realiza n’Ele introduz a novidade radical da realização definitiva da Aliança. É sobretudo na Paixão, a parte mais chocante e definitiva do ministério de Jesus, que Ele fala de Si e fala a Deus Pai com as palavras do Salmo 129. Os acontecimentos da morte e ressurreição de Jesus levam-nos a ler o Antigo Testamento de uma maneira nova. Não foi a Escritura que suscitou os acontecimentos, foram estes que levaram a uma nova compreensão da Escritura (cf. p. 167-168). Para o autor é claro que tudo o que aconteceu a Jesus é cumprimento da Escritura (cf. p. 206).

Esta unidade entre os dois Testamentos leva o autor a apontar a dignidade de Israel, o Povo do Antigo Testamento. Já na subida para Jerusalém, a multidão que acompanha Jesus são peregrinos que se juntam a Ele, que fazem a sua aclamação messiânica e não se confundem com a população da cidade. E esta não se confunde com a multidão que prefere Barrabás e pede a condenação de Jesus. Esses eram os zelotas, partidários de Barrabás, que se juntaram aos gritos para que a amnistia da Páscoa fosse aplicada ao seu ídolo, enquanto os partidários de Cristo andavam fugidos com medo. A referência mais curiosa é feita a propósito do discurso escatológico, citando Lc. 21,24, ao dizer que Jerusalém continuará calcada aos pés pelos pagãos até que se cumpra o tempo dos pagãos. Este “tempo dos pagãos” é o tempo da Igreja, destinada a levar o anúncio da salvação a todos os povos. Só depois disso, será o fim. Assim, entre a destruição de Jerusalém e o fim do mundo, situa-se o “tempo dos pagãos”. A propósito do povo judeu, o autor cita uma carta de São Bernardo de Clerval ao Papa Eugénio III: “Admito, relativamente aos judeus, que tens a desculpa do tempo; para eles foi estabelecido um determinado momento, que não se pode antecipar. Primeiro devem entrar os pagãos na sua totalidade” (p. 46). Haverá, pois, um momento para a conversão de Israel, depois da conversão dos pagãos. É uma espécie de “cereja no bolo”; tudo começou com eles, só estará completo com a sua adesão a Jesus Cristo. Que Bento XVI quer mitigar a ideia da condenação de Israel, é claro nesta sua afirmação: “a este respeito, no horizonte de fundo, aparece, sempre, também a questão sobre a missão de Israel. Hoje olhamos com desolação para tantos equívocos, cheios de consequências, que pesaram ao longo dos séculos neste âmbito. Todavia, uma nova reflexão permite reconhecer que é possível, em todos os ofuscamentos, encontrar pontos de partida para uma justa compreensão” (p. 46).

 

4. Depois disto, que dizer mais sem entrar na densidade destas páginas? É um desafio o fazer deste livro um instrumento para o encontro com Cristo nesta Páscoa. N’Ele encontramos o pleno cumprimento das promessas e a expressão radical de Deus à Aliança que celebrou com o seu Povo. Mergulharemos na densidade dramática, vivida por Jesus, ao assumir na sua experiência o drama do mal e do pecado, para pôr o homem, apesar disso, no caminho de Deus. Ele é o Messias, o ungido do Senhor, que exerce no mundo uma realeza que não é deste mundo, o Servo obediente que assumiu a dramaticidade da existência de todos nós, e que nos conquistou, na sua vitória sobre a morte, a nossa própria vitória.

Este 2º Volume começa com a caminhada para Jerusalém, em que uma multidão de peregrinos O acompanha e O vai acompanhar como discípulos. Quando, na sua ressurreição, o seu ser Homem, ficou em Deus, esta caminhada para a nova Jerusalém é feita por uma multidão imensa, que deve testemunhar aos pagãos, a todo o género de pagãos, que Ele é o vivente e representa a vitória e o triunfo da vida. É impressionante, neste livro, a amplitude da Eucaristia, que é mais do que um rito, mas é expressão do “novo culto”, dos que podem, em Cristo, adorar a Deus em espírito e verdade.

 

5. Os capítulos finais sobre a ressurreição, a ascensão e a vinda gloriosa do ressuscitado, são decisivos para o objectivo que o autor se propôs: levar os cristãos a reconhecerem e a encontrarem-se com o Cristo real, o Cristo histórico, o Cristo da nossa fé e da nossa esperança. Na sua ressurreição, o Homem Jesus, que é Filho de Deus, não vai para nenhum lugar, mas para Deus, que não ocupa espaços. Torna assim mais espontânea a sua presença junto dos discípulos. “Eu estarei convosco até ao fim”. O autor traça-nos o quadro maravilhoso da interpenetração contínua entre escatologia e o presente da vida da Igreja, vivido com a presença do Senhor. Quando a Igreja reza “Maranatha”, tanto pede a vinda imediata do ressuscitado ao seu presente histórico, como a sua última vinda. Só Ele, no seu insondável desígnio, pode decidir do modo da sua vinda. Uma coisa é certa: Ele vem sempre para junto daqueles que lho pedem e querem partilhar a vida nova com Ele.

Finalmente, uma breve referência à análise feita sobre os testemunhos neo-testamentários da ressurreição. O autor distingue dois tipos de testemunhos: a tradição sob a forma de profissão de fé, em que as narrações são formulários de fé, exprimem a fé da Igreja na ressurreição, em que a fé de Pedro e dos Apóstolos é importante e decisiva. Ao segundo género de testemunhos chama-lhes a tradição sob a forma de narração. Termino, chamando a atenção para um dado curioso, posto em relevo pelo autor: no primeiro tipo de narrações, as que compendiam uma profissão de fé, nunca aparecem mulheres como testemunhas da ressurreição. O autor explica este facto pela cultura judaica de Israel, segundo a qual o testemunho de uma mulher não era válido. Na tradição sob a forma de narração, este condicionamento jurídico não existia, e as mulheres aparecem, nessas narrações, como testemunhas da ressurreição. E Bento XVI conclui de maneira muito bela: “Na sua estrutura jurídica, a Igreja está fundada sob Pedro e os onze, mas, na forma concreta da vida eclesial, são sempre as mulheres que abrem a porta ao Senhor, o acompanham até à Cruz e assim podem acompanhá-l’O também como ressuscitado” (p. 214).

Oxalá a leitura deste livro ajude as mulheres da nossa Igreja diocesana a continuarem, na ousadia do seu amor, a abrir a porta ao Senhor ressuscitado para que Ele esteja sempre connosco e habite na sua Igreja.

D. José Policarpo, Cardeal-Patriarca

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