Aporofobia

António Salvado Morgado, Diocese da Guarda

Estamos em tempo de “palavras do ano”. Por vezes, uma vez eleitas, passam rapidamente para a história do esquecimento. Todavia, seria conveniente que nem sempre fosse assim.

Em Espanha, “aporofobia” foi a palavra do ano de 2017 na sequência de um livro intitulado «Aporofobia – A aversão ao pobre um desafio para a democracia» publicado nesse ano pela filósofa espanhola Adela Cortina, catedrática emérita de Ética e Filosofia Política da Universidade de Valência. O subtítulo se, por um lado, nos informa sobre o significado do termo “aporofobia”, defende, por outro, que a aporofobia constitui um «desafio para a democracia». Aliás, quanto possa saber, havia sido Adela Cortina a usar aquela palavra pela primeira vez em 1995 e, naquele ano de 2017, dada a utilização que se foi fazendo do termo no país vizinho o que, de algum modo, evidenciava o «poder explicativo e comunicativo» do novo termo, a Real Academia Espanhola decidiu incluí-lo no seu dicionário.

Embora já com quase três décadas de utilização por aquela filósofa, encontramo-nos, mesmo assim, perante um neologismo recente. Aliás, “aporofobia” é um termo que ainda não aparece nos nossos dicionários da Língua Portuguesa, mas ela já anda por aí, à mistura com outras fobias, como elemento de caracterização da paisagem social e política em que nos movimentamos. A difusão da palavra terá contribuído para dar visibilidade a um fenómeno que se vinha mantendo difusamente escondido e ignorado.

Como muitos outros da nossa língua, o termo “aporofobia” fala grego. Ele tem origem na junção de duas palavras gregas: “áporos” [pobre, destituído, desvalido] e “phobos” [medo, aversão]. Literalmente “aporofobia” significa «aversão ao pobre», tal como aparece no subtítulo do livro da filósofa espanhola acima citada.

Passou a 19 de Novembro do ano transacto o VII Dia Mundial dos Pobres e o Papa Francisco, com data de 13 de Junho, dia de Santo António, patrono dos pobres, divulgou a habitual mensagem evocativa, encimando-a com o conselho imperativo retirado do livro de Tobias: «Nunca afastes de algum pobre o teu olhar» (Tb 4, 7). Significativo contraste entre este apelo papal e a realidade significada por aquela palavra de nascimento recente. E, Adela Cortina, não deixa de salientar o que também nós, neste Portugal do Século XXI, vamos constatando diariamente ou vamos admitindo como se se tratasse de uma normalidade ético-política: «É impossível não comparar o acolhimento entusiástico e hospitaleiro com que se recebem os estrangeiros que vêm como turistas, com a rejeição sem misericórdia da onda de estrangeiros pobres. Fecha-se-lhes as portas, levantam-se-lhes muralhas, impede-se que atravessem fronteiras

Este texto ficou na minha agenda de cronista ingénuo desde Novembro do ano passado. Retomo-o agora sobretudo pela convergência de três elementos. Social, político e eclesial.

Não vivendo em Lisboa, por razões de ordem familiar, vou frequentemente à capital e constato que vem aumentando nos últimos anos o número de pessoas a aconchegarem-se em cartões e cobertores ruídos pelo uso em recantos de algumas artérias da cidade. No subterrâneo da gare do Oriente a situação perturba o mais empedernido dos corações. Confrangido e impotente passo a caminho do automóvel estacionado no parque superior ao subterrâneo e lembro o imperativo papal através do livro de Tobias: «Nunca afastes de algum pobre o teu olhar» (Tb 4, 7). Os olhos da cara não se afastarão, até porque não podem. Os pobres, cidadãos do meu país e cidadãos do mundo, ali se encontram para vergonha minha e da nossa comunidade cívica a que pertenço, a que pertencemos. Mas os olhos da alma ficam a sangrar clamando pela responsabilidade política de cada um e de todos. E assim a dimensão social transforma-se em dimensão política.

Há tempos os meios de comunicação social falaram e denunciaram a situação, mas a situação de tanta gente sem abrigo, para além de muita outra que se envergonha da situação, parece ter ficado depressa esquecida. Andamos já em campanha para as eleições legislativas que se realizarão daqui a dois meses. Talvez por desatenção minha, ainda não encontrei nos partidos e agentes políticos a apresentação visível de uma política real para a pobreza que tem vindo a aumentar no nosso país. E não importa só uma vaga política social de que sempre se fala nestas ocasiões com voz grossa e altissonante. Trata-se da necessidade de uma política clara e estruturada de combate à pobreza que respeite a dignidade do ser humano. Ficarei atento. Fiquemos, todos, atentos e saibamos, com a clarividência possível, até onde vai a aporofobia dos nossos agentes políticos, sabendo nós, na companhia da filósofa espanhola, que ela é «um «desafio para a democracia».

É eclesial o terceiro elemento que desejaria aqui salientar. Não para referir a dimensão caritativa e fraterna da Igreja, nem o muito que as suas instituições têm vindo a fazer neste domínio para superar tantas situações de pobreza e injustiça social com que diariamente nos deparamos. Vou por outro caminho e a ideia foi-me sugerida por uma notícia que acabo de receber. E vem dos Estados Unidos [EUA], onde a sinodalidade da Igreja tem vindo a ser questionada com alguma veemência. Pois acaba de ser noticiado que os bispos dos EUA decidiram que, durante a próxima Quaresma, o caminho sinodal de cada diocese estaria virado, particularmente, para os «pobres» e «migrantes». Não sei se a ideia é centrar a reflexão nos «pobres» e nos «migrantes» ou se se pretende dar-lhes efectivamente a palavra. Seja como for, importa trazer «pobres» e «migrantes» para o centro da sinodalidade. Importa ouvi-los, dar-lhe voz activa na Igreja. Porque uma «opção preferencial pelos pobres» não pode ser uma expressão meramente vazia ou retórica. E o Sínodo é uma oportunidade para lhes ser dada voz efectiva.

Porque o cristão não pode ser o aporofóbico que tem medo e aversão ao pobre, mas será mestre de aporofilia, de estima e amor pelos pobres. A aporofobia é preconceito que alimenta a desigualdade. A aporofilia é fraternidade e raiz da concórdia entre os humanos.

Guarda, 9 de Janeiro de 2024

António Salvado Morgado

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