Apoio racional da fé: os sinais de credibilidade

Catequese do Cardeal-Patriarca de Lisboa no 4º Domingo da Quaresma 1. A razão humana pode assumir o conhecimento específico da fé, garantindo-lhe o apoio racional e integrando-o, harmonicamente, no conjunto do conhecimento humano. Isso não se faz reduzindo o conhecimento próprio da fé, que inclui o abandono ao mistério, à lógica do conhecimento racional. É a razão humana que, para além da sua capacidade lógica de conhecimento, se abre e acolhe aquele conhecimento que só pode encontrar a sua fonte na revelação de Deus, e que, dirigida ao homem, é inteligível, e interpela as capacidades humanas de verdade. Já dissemos, num dos domingos anteriores, que a revelação é portadora da sua própria credibilidade, isto é, vem carregada daqueles elementos que permitem à inteligência humana acolhê-la, indo além das suas capacidades naturais, sem se violentar, na simplicidade de um horizonte de conhecimento e de verdade que se alarga. Nesse processo de abertura da razão à Palavra revelada e à fé, exercem um papel importante os “sinais”, a que habitualmente chamamos “sinais de credibilidade”. “É sobre eles que a nossa inteligência se apoia para reconhecer o que não poderia constatar directamente: eles conduzem-na para além dela mesma, num mundo impenetrável, que eles lhe tornam cognoscível”[1]. Para compreendermos a importância dos “sinais” no crescimento da fé e na racionalidade do conhecimento que ela gera, temos de ter em conta o diferente dinamismo do conhecimento racional e do conhecimento da fé. A razão busca o conhecimento, penetrando na realidade, dissecando-a com método lógico, procurando a sua compreensão clara, a que chamamos evidência. É no aperfeiçoamento dos métodos de análise racional da realidade que consiste o progresso e os avanços no conhecimento científico. Por este método, a razão humana não chega ao conhecimento de Deus, quando muito chega à inevitabilidade da sua existência. Mas Deus não se apresenta ao homem apenas como uma realidade desconhecida a investigar. Ele irrompe na vida das pessoas como um Outro, a querer dialogar com o homem e a querer estabelecer, com ele, uma relação de aliança e de amor, como fez Cristo a Saulo, na Estrada de Damasco (Act. 9). E é quando Deus entra na nossa vida como uma pessoa e com uma proposta de relação, que se pode iniciar ou rejeitar a fé como caminho de vida e de verdade. Como o de Paulo, o testemunho dos convertidos, ao longo dos séculos, é claro e esclarecedor. Todos afirmam que, ou de repente, ou pouco a pouco, Deus se lhes manifestou e os interpelou para uma relação, num caminho novo a encetar[2]. E é nesse caminho de convivência com Deus, que Ele se revela e nós aprendemos a conhecê-l’O. O conhecimento que brota da fé não é conclusão de uma investigação, mas fruto de uma convivência na intimidade. É um reconhecimento, descoberta da pessoa amada, que acontece espontaneamente em todas as verdadeiras relações de amor. É nesse sentido que Jesus anuncia que todos os que se deixarem atrair por Ele e O seguirem na fé, serão ensinados por Deus (cf. Jo. 6,44). O conhecimento da fé não busca, imediatamente, a evidência, mas a posse e a profundidade. É no seio dessa relação com o Deus vivo, e para nós cristãos, através da relação com Cristo Vivo, que os “sinais” se tornam significativos e fazem a ponte entre o mistério e a razão humana. Fora desse contexto, os “sinais”, mesmo quando identificados, são interpretados como fenómenos naturais, sem significado especial, acabando por ser abandonados. O apoio racional da fé brota, assim, do seu dinamismo enquanto abandono confiante ao Deus vivo. Não é por falta de firmeza que a fé busca a racionalidade; é, antes, porque a relação com Deus compromete todo o nosso ser e as suas capacidades. Assim o exprime, na Lei de Moisés, o primeiro mandamento do Decálogo: amarás o Senhor teu Deus, com todo o teu ser e com todas as tuas forças e só a Ele adorarás (cf. Ex. 20). Os “sinais” da acção de Deus 2. Se a Deus nunca ninguém O viu (cf. Jo. 1,18), continuando mistério insondável mesmo para os que acreditam n’Ele, a sua acção é sensível e verificável, tornando-se “sinal” do Seu mistério e do Seu amor. Esta é uma experiência que acompanha a história milenar do povo bíblico: Deus torna-se acessível, a Sua presença é verificável pela sua acção em favor do Seu Povo. A Sagrada Escritura chama-lhe “as maravilhas de Deus” – mirabilia Dei. Só os crentes as captam como expressão do amor de Deus, embora, por vezes, os autores sagrados ponham os “pagãos” a reconhecer nessas “maravilhas de Deus”, um sinal da grandeza do Deus de Israel. Na passagem do Mar Vermelho, o próprio Deus anuncia que através da sua acção manifestará a Sua grandeza aos egípcios: “Os egípcios saberão que Eu sou Yahwé, quando me cobrir de glória à custa do Faraó, dos seus carros e dos seus cavaleiros” (Ex. 14,18). E na mesma narração os egípcios reconhecem: “fujamos dos israelitas, porque Yahwé combate por eles contra os egípcios” (Ex. 18,25). Mas são os crentes que captam o pleno sentido desta acção de Deus. A narração termina: “O Povo temeu Yahwé, acreditou em Yahwé e em Moisés Seu servo” (Ex. 14,31). A fé do Povo no Deus que o liberta torna-se, assim, mais compreensível. À firmeza da confiança, acrescenta-se o apoio da compreensão. O Povo de Israel está firmemente convencido de que a Palavra de Deus, o seu Verbo eterno, revelada pelos Profetas, é sempre eficaz, realiza as intervenções de Deus em favor do Seu Povo. Há uma tal identificação entre a Palavra eterna e a sua eficácia na história e na vida do Povo crente, que o mesmo vocábulo – “dabar” – significa palavra e acontecimento. Para que a fé enraíze na experiência humana, é importante identificar, na vida do Povo e na vida de cada crente, os “sinais” dessa acção de Deus. Estes “sinais” não se impõem com a força lógica da evidência, respeitam a liberdade, própria da fé, mas oferecem a esta o ponto de apoio para uma compreensão da presença de Deus na nossa vida. Estes “sinais” podem captar-se, não apenas nos acontecimentos da história de Israel, mas também na intimidade pessoal de cada crente, porque a interioridade de cada homem é o primeiro campo da acção amorosa de Deus. O desejo de Deus e a atracção pelo Seu mistério, a força na provação e na dor, o sentido redentor do sofrimento e a esperança de vitória sobre a morte, são experiências vividas pelos crentes e que tornam sensível e captável a insondável acção de Deus. É na redenção dos pecados e na transformação do coração, que a experiência vivida se torna “sinal” do amor misericordioso de Deus. No final do Livro de Job, dramática interrogação sobre o sentido do sofrimento, Job diz a Deus: “Agora sei que Tu és o Todo Poderoso e que podes realizar tudo o que imaginas… Não Te conhecia, senão por ouvir dizer, mas agora os meus olhos viram-Te; retiro tudo o que disse e arrependo-me no pó e na cinza” (Job. 42,2-6). Cristo é o mais significativo “sinal” da acção de Deus 3. De todas as acções de Deus em favor do Seu Povo, a mais decisiva e radical foi a encarnação do Seu Filho, a Palavra eterna. Em Jesus Cristo, Deus feito homem, o insondável mistério de Deus fica ao alcance do conhecimento humano. É assim que São João termina o prólogo do seu Evangelho: “Nunca ninguém viu Deus; o Filho único, que está no seio do Pai, deu-O a conhecer” (Jo. 1,18). Cristo é o Verbo de Deus; ao fazer-Se homem, fica acessível ao homem e torna-Se no verdadeiro fundamento da racionalidade da fé. Fica claro que acreditar em Deus, acreditando em Jesus Cristo, situa a fé como acto de liberdade, acessível à razão humana. Em cada acto de fé, o cristão participa no Logos eterno de Deus, que se nos revela como o princípio da verdadeira sabedoria, da compreensão de todas as coisas, segundo a mente divina. Jesus Cristo não é uma divindade qualquer; é o único e verdadeiro Deus humanizado. Ele é o “sinal” levantado perante as nações, para que todos possam acreditar e adorar a Deus com todas as forças, o coração, a inteligência, a vontade. Cristo não substitui o Pai; Ele é o único caminho, verdadeiramente humano, para o homem acolher Deus, também com a sua inteligência. A solidez das razões do nosso acreditar identificam-se com a profundidade da nossa união a Jesus Cristo. Ele é o verdadeiro fundamento da lógica da fé. O vocábulo grego que significa sinal, “semeia”, muito usado pelo evangelista São João, foi traduzido em latim por “sacramentum” e, desde o início, a Teologia cristã chamou a Cristo o “sacramentum primordialis”, isto é, o sinal fundamental, pois n’Ele continua a manifestar-se a acção salvífica de Deus. A palavra “sacramento”, isto é, sinal, acabou por designar os sete sinais sacramentais, onde se realiza para o cristão, através da Igreja, a acção salvífica de Deus, por Jesus Cristo. São momentos de eficácia da Palavra, onde acontece o que ela anuncia, por força do Espírito Santo. Vivê-los com fé significa tocar, em cada momento, a acção de Deus. Mas eles são “sinais”, porque Cristo, Verbo eterno feito carne, o Filho do Pai, é o “sinal primordial”. Os sete sinais sacramentais são o caso mais nítido do dinamismo dos sinais: só a fé os torna significativos; mas quando o são, eles tornam a acção de Deus acessível à nossa inteligência. Os milagres de Jesus 4. Todos os quatro evangelistas dão testemunho da importância dos milagres no ministério profético de Jesus: curas, multiplicação dos pães, tempestades acalmadas, pescarias extraordinárias, transformação de água em vinho, ressurreição dos mortos. Com essas acções maravilhosas, Jesus abre o véu do mistério do seu poder divino e facilita a aceitação da sua Palavra. Tal como no Antigo Testamento, Palavra e acção de Deus fazem uma unidade e acontecem no interior da fé. Jesus faz os milagres “vendo a fé daquela gente” ou diz aos miraculados “a tua fé te salvou”. Mas é São João que chama aos milagres de Jesus “sinais”, acções maravilhosas do Senhor que ajudarão os discípulos a aceitar e compreender a sua divindade e a sua ressurreição dos mortos. Termina, assim, o seu Evangelho: “Jesus realizou, na presença dos discípulos, muitos outros “sinais”, que não são relatados neste livro. Estes foram-no para que acrediteis que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus e para que, acreditando, tenhais a vida em seu nome” (Jo. 20,30-31). São João estabelece, assim, explicitamente, a relação entre os “sinais”, isto é, os milagres de Jesus, e a firmeza da fé dos discípulos. E diz-nos que escolheu alguns entre os muitos milagres realizados por Jesus. Escolheu sete, valorizando a simbologia deste número bíblico, e todos eles estão orientados para ajudar os discípulos a acreditar na ressurreição, a glória de Deus totalmente revelada no homem Jesus. Recordemos, rapidamente, a série de “sinais”, seleccionados por São João. O primeiro é o das Bodas de Caná (Jo. 2,1ss), onde Jesus transforma a água em vinho e Maria aparece, pela primeira vez na vida pública de Jesus, em primeiro plano. São João conclui: “este foi o primeiro dos “sinais” de Jesus. Realizou-o em Caná da Galileia. Manifestou a sua glória e os seus discípulos acreditaram n’Ele” (Jo. 2,11). Seguem-se duas curas, a primeira a do filho de um funcionário real (cf. Jo. 4,43ss). São João relaciona este milagre com o das Bodas de Caná: “Ele voltou, então, a Caná da Galileia, onde tinha mudado a água em vinho” (v. 46) e estabeleceu a relação entre os milagres e a fé: “Se não virdes sinais e prodígios, não acreditais” (v. 48) e conclui: “acreditou ele e todos os seus” (v. 53). O terceiro “sinal” é a cura de um doente na piscina de Bézatha (5,1ss). Jesus afirma aí a prioridade do seu poder salvífico em comparação com aquela piscina considerada miraculosa e aí redefine o sentido do sábado à luz da sua ressurreição. O quarto é a multiplicação dos pães (6,1ss) anúncio da Eucaristia, essencial para que os discípulos percebam o que é a ressurreição de Cristo, continuada nas suas vidas. A cura de um cego de nascença (9,1ss) abre para a compreensão da verdadeira luz que brota da Páscoa, e a ressurreição de Lázaro (11,1ss) prepara o leitor para o principal e decisivo “sinal”, a ressurreição de Cristo (20,1ss). Ao chegar a este sétimo milagre, o leitor pode exclamar como o encarregado de mesa das Bodas de Caná: Tu guardaste o melhor vinho para o fim (cf. Jo. 2,10). Os “sinais” na vida da Igreja 5. Esta pedagogia dos “sinais”, manifestação da acção de Deus, que ajudam a acreditar, continua na Igreja. Deus continua a agir na Igreja e em cada crente, através do Espírito Santo que foi derramado nos nossos corações. A fé é, também, atenção a essa acção de Deus, em nós e nos outros, que nos leva a reconhecer, em cada momento e em cada tempo, as “mirabilia Dei”. O discernimento desses “sinais” é importante para fortalecer a nossa fé. No tempo da Igreja também há “milagres”, quase sempre pontos de partida para grandes conversões e encontro com Cristo Vivo. Mas é, sobretudo, o que o Espírito realiza no coração dos cristãos, em ordem à fidelidade e à santidade: conversões inesperadas, a fidelidade até ao martírio, a ousadia missionária, o dom da contemplação e da união mística com Deus, o dom radical ao serviço dos irmãos. Os Santos são, em todos os tempos, um “sinal” que confirma a nossa fé e pode abrir a Deus os corações daqueles que o procuram. O próprio cristão é, no meio do mundo, um “sinal” da caridade de Deus que nos salvou, em Jesus Cristo. O sinal do discípulo 6. Os cristãos são, por vontade do Senhor, um importante “sinal” para o mundo. Jesus disse: “É no amor que tereis uns pelos outros, que todos reconhecerão que sois meus discípulos” (Jo. 13,35). Na coerência evangélica do nosso amor aos irmãos, ajudaremos os outros a solidificar a sua fé. Vede como eles se amam, exclamavam os pagãos acerca dos primeiros cristãos. A “fantasia da caridade”, que procuramos viver nesta Quaresma, é “sinal” particularmente significativo, neste mundo que parece tão afastado de Deus. Sé Patriarcal, 18 de Março de 2007 † JOSÉ, Cardeal-Patriarca ——————————————————————————– [1] A. BRIEN, Le Cheminement de la foi, Seuil, Paris, pp., 112-113 [2] Ibidem, p. 112

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