Ao encontro da Igreja mais pobre

Seminarista algarvio passou férias em Missão, junto dos católicos angolanos O seminarista algarvio Pedro Manuel, de 22 anos, colaborou, durante as suas férias lectivas, no trabalho de uma missão em África, entregue a 2 sacerdotes portugueses da Congregação do Espírito Santo. De 24 de Julho a 3 de Setembro, o jovem natural de Monchique viveu de perto a realidade da missão de Kalandula, na diocese de Malanje, em pleno Centro Norte de Angola. Em entrevista à FOLHA DO DOMINGO, e a poucos dias de iniciar o estágio pastoral na paróquia de São Pedro de Faro, previsto no âmbito do 6º ano de Teologia, Pedro Manuel esclarece o objectivo desta experiência. FOLHA DO DOMINGO – A missão o­nde trabalhaste é composta de que valências? Pedro Manuel – De uma maternidade, um centro de saúde e escolas até ao 3º nível (equivalente ao 8º ano). Acompanham ainda várias aldeias perdidas no mato. Existe também a comunidade das irmãs Dominicanas do Rosário que recebe raparigas sem família ou vindas de famílias descompostas. E tu foste trabalhar concretamente em quê? Não tive nenhum serviço específico. Inicialmente estive a fazer um trabalho, mas tive de alterar porque um dos padres veio de férias a Portugal. Estive 4 semanas no Seminário o­nde dei aulas e participei na formação dos filósofos e dos alunos do ano propedêutico. Visitei estabelecimentos prisionais, o hospital, e duas missões no mato – para conhecer o trabalho dos catequistas –, contactei com algumas comunidades religiosas e com alguns padres que estão lá a trabalhar e colaborei nas obras do Seminário. Visitei também um trabalho da Caritas e fiz o acompanhamento dos missionários que lá trabalham, ou participando na reunião dos missionários, ou colaborando no início do jubileu na diocese, etc. Quantos padres havia? Na diocese 9 e na missão 2 portugueses: os padres Rocha e Viana. Que balanço fazes desta experiência? O balanço é muito positivo. Nós quando estamos aqui na Europa, e no contexto de uma Igreja e duma sociedade desenvolvida, parece-nos que esta sociedade gira toda à volta destes nossos parâmetros. Quando lá cheguei deparei-me com uma sociedade em que havia gente muito rica, mas 90 por cento da população vive muito mal. E quando digo que vive muito mal é porque não tem água, nem luz, nem trabalho. As mulheres são o motor da sociedade e preocupam-se apenas com o trabalho de cada dia e não se irão ter comida amanhã. Esta realidade vai um pouco contra os parâmetros que nós temos cá. Existe também lá a poligamia, podendo um homem ter várias mulheres. E por isso é que eu disse que a mulher é o motor da sociedade, pois o homem vive ‘à sombra’ das várias mulheres que tem. Hoje está com uma e amanhã com outra. Com cada uma tem 12 ou 13 filhos e a mulher, todos os dias, tem de se esforçar para alimentar os seus filhos. A gente rica da sociedade de que falas está relacionada com que sector da sociedade? Com a política. Eu fui num sábado conhecer Luanda e fui à zona o­nde o Presidente vive. Vendo aquela zona ou algumas das zonas mais chiques do nosso País, – como Vilamoura –, não se nota qualquer diferença. Parecia que não estava em Angola. Ruas limpas, jardins com repuxos, relva muito bem aparada, casas muito bonitas, mas logo à frente existem casas de lata, de adobe ou palha e pessoas a morrer à fome ou com cólera. Notaste bastante o facto daquele País estar a renascer das cinzas provocadas por uma guerra de quase 30 anos? Sim. E nota-se algum interesse na reconstrução por parte dos chineses e dos americanos. O País está em reconstrução, mas se levou 30 anos a destruir, com este ritmo vai levar 60 ou 70 a reconstruir. A Igreja tem um papel fundamental na reconstrução daquela sociedade, na educação das pessoas, na saúde, etc? A Igreja é a instituição que mais credibilidade tem na reconstrução do País.Eu fui à aldeia do Quela e as únicas estruturas lá feitas foram construídas pela Igreja. Existe uma escola, uma casa para formação para mulheres e uma biblioteca (única na diocese de Malanje). Também as escolas, cujos edifícios estão reconstruídos, pertencem à Igreja. Nas escolas da Igreja existe qualidade, algum nível e uma formação permanente de professores. Nas escolas do Estado podemos ver um professor a leccionar o 8º ano, quando ele próprio só tem a 4ª classe. Depois, os Médicos Sem Fronteiras e a UNICEF também têm um papel preponderante. Mas a Igreja lá ainda tem um certo estatuto que já perdeu há muito, por exemplo entre nós? Sim. Lá, um Bispo, um padre ou uma irmã são autoridades.Estes grandes homens e mulheres, portugueses e espanhóis, que hoje têm uma grande reputação em Malanje foram os que se mantiveram lá durante a guerra. Por exemplo, à frente da Caritas está uma leiga consagrada que é uma autoridade. Durante a guerra, com uma ajuda humanitária que lhe deram para 6 meses, ela conseguiu multiplicar a alimentação para mais de um ano, salvando muitas pessoas. A maior parte das pessoas também ainda são praticantes… Sim e a experiência de Igreja lá é apaixonante. Uma Eucaristia de domingo dura 2 horas e vamos para a celebração e temos tempo. Não sendo daquela cultura, envolvemo-nos naquela vibração com que as pessoas vivem. Já existe também lá uma grande proliferação de seitas, mas a Igreja com mais peso é a católica. Como foi a tua relação com a comunidade espiritana que te acolheu? A comunidade que me acolheu era composta pelos padres espiritanos e pelas irmãs Dominicanas do Rosário. Basicamente o que fiz foi inserir-me na vida deles. Um dia foi preciso trabalhar nas canalizações, outro dia fomos ao mato visitar uma comunidade, outra manhã fomos fazer catequese, noutra parte do dia foi preciso fazer umas plantações lá em casa. Foi assim. Começávamos o dia às 6.15 horas com a oração de laudes e 15 minutos depois celebrávamos a Eucaristia. Mas também nos deitávamos às 21 horas porque acabava a electricidade. Fui muito bem acolhido. Recordo a maneira como as crianças se ligam a nós porque precisam de carinho. Qual foi o objectivo que te levou a fazer esta experiência? Eu não fui para lá em crise vocacional. Eu nunca quis ser padre missionário e sempre me identifiquei muito com a minha diocese e continuo a identificar-me. E acho que o essencial na nossa vida é sabermos qual o nosso lugar e eu acho que o meu lugar é aqui, pois quero muito servir a minha diocese. No entanto, acho que o que faltou na minha formação humana e pessoal foi o conhecimento desta Igreja mais pobre e um aprofundamento desta dimensão missionária. Neste mês e meio consegui aquilo a que me tinha proposto: conhecer uma Igreja diferente, e começar a educar e purificar em mim aquilo que eu pensava que era fundamental na nossa Igreja cá. Se calhar nós, muitas vezes, damos muita importância à dimensão ritual e litúrgica e muito pouco ao interior. De facto, se calhar, lá também se dá muita importância à dimensão celebrativa, mas há muitas coisas que passam a ser supérfluas. O objectivo foi essencialmente conhecer uma realidade diferente para puder purificar a minha realidade e o meio em que vivo. Foi atingido o objectivo? Na perspectiva em que eu vivi, foi atingido. Por exemplo, eu aqui tomo banho todos os dias de água quente e lá nunca tomei banho de água quente e houve uma altura, no mato, em que passei 3 dias sem tomar banho. Há uma série de coisas que eu comecei a ver com outros olhos. Achas que vais ser um sacerdote mais sensibilizado para a questão das missões ad gentes, se um dia chegares a ser ordenado? Se um dia chegar a padre, peço a Deus, em primeiro lugar, que me torne sensível aos pobres no meio da sociedade que temos cá. Pobres ao nível material, – excluídos de uma sociedade que nós, Igreja, alimentamos, mesmo sem querer –, e pobres ao nível espiritual. Ao nível das missões ad gentes devo dizer que vim impressionado, positivamente, e vim, – não digo seduzido –, mas sensibilizado pela missão que aquelas pessoas fazem lá. Aqueles homens e mulheres são tão portugueses quanto eu e viveram lá tempos muito difíceis. E eu penso: “será que eu era capaz de viver ali, dia após dia?”. Por isso o que peço, se um dia chegar a ser padre, é que seja capaz de, no meio o­nde o Senhor me chamar a exercer o meu ministério, esteja sempre disponível e com o coração e oração presente naqueles povos que precisam de tudo da nossa parte. Actualmente, acho que as missões só têm a ganhar se forem feitas por pessoas de lá, mas continuo a compreender e a concordar que há uma parte importante que tem ser feita pelas pessoas que vão de cá. A missão ad gentes começa aqui na nossa Igreja diocesana. Eu tive lá, não fiz muita coisa, mas percebi que num mês podemos ajudar muita gente a fazer outras coisas e a ter outra visão do mundo. O importante é que o pouco que temos para dar, queiramos dá-lo verdadeiramente. Qualquer pessoa que queira ir um mês pode fazer muita coisa. A dimensão missionária é verdadeiramente esta inculturação naquele meio que lá existe, entregando a vida e coração diariamente. Gostavas de lá voltar? Eu acho que o meu lugar é aqui no Algarve. Mas, agora depois de já ter este reduzido conhecimento, se calhar até voltava com muito gosto. Ou voltaria por mais tempo para puder fazer um trabalho mais continuado. Nós dizemos que vamos lá trabalhar, mas no final acabamos por receber muito mais do que aquilo que damos. Este tipo de experiência que eu tive oportunidade de viver em Malanje, valeu muito mais para mim do que para aquela gente. Gostava de lá voltar e de, com um trabalho específico, puder contribuir numa dimensão específica. África apaixona pela simplicidade do povo e pela beleza natural.

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Agência ECCLESIA

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