Homilia proferida na Solenidade de São Vicente, nos 1700 anos do seu martírio 1. Na pregação de Jesus o anúncio do Reino dos Céus é comparado a um semeador, sendo a Palavra de Deus a semente que germina. No princípio da sua vida pública Ele próprio Se considera o semeador. Sentado à beira do lago, com as multidões à volta d’Ele, Jesus diz-lhes: “Eis que o semeador saiu a semear” (Mt. 13,3). Uma sementeira. Quanta esperança contida na força germinadora da semente; quanta ousadia, para semear a tempo e a contra-tempo, em todas as circunstâncias; quanta esperança para aguardar o resultado da sementeira, admitindo que nem toda a semente germina e sabendo que a colheita só o Pai a fará, no fim dos tempos. A persistência do semeador significa bem a determinação da Igreja em evangelizar sempre e em todas as circunstâncias. Mas bem depressa a linguagem de Jesus se radicaliza; de semeador Ele passa a semente, a única donde pode germinar um homem novo e um mundo novo. “Em verdade, em verdade vos digo, se o grão de trigo cair na terra e não morrer, fica só ele, mas se morrer, dá muito fruto” (Jo. 12,25). Na sua Páscoa, Jesus é esse grão de trigo, que aceita morrer, para germinar uma vida nova para todos os que se unirem a Ele. Está aqui afirmada uma verdade perene da missão evangelizadora da Igreja: o semeador tem de ser semente, que aceita morrer para germinar a vida. Foi a partir desta certeza de fé de que Jesus Cristo, morto e ressuscitado, é a verdadeira semente donde brota a Igreja, que as primeiras gerações de cristãos, perante a experiência do martírio, perceberam que também o sangue dos mártires, derramado como o de Cristo, era semente donde brotava a Igreja: “Sangue de Mártires, semente de cristãos”. Foi por isso que a Igreja de Roma, a que tinha a primazia entre todas as Igrejas, sempre se apresentou como aquela que era o fruto fecundo de tantos mártires, sobretudo dos Apóstolos Pedro e Paulo. Foi por isso que os cristãos começaram a celebrar a Eucaristia sobre o túmulo dos mártires, testemunho da convicção de que o sangue de Cristo e o sangue dos mártires fazem parte do mesmo sacrifício redentor. Há mil e setecentos anos, na perseguição de Diocleciano, que atingiu de modo particular as Igrejas implementadas na periferia do Império, Vicente, diácono de Valência, foi semente lançada à terra, aceitando perder a vida para a ganhar, tornando-se, no seu sangue, semente fecunda donde havia de germinar a Igreja nestas terras mais ocidentais do Império Romano. Naquele dia, o semeador saiu a lançar a semente. Ela fecundou, e há-de continuar a fecundar, a palavra dos evangelizadores que fazem crescer e fortalecer a Igreja do Senhor. 2. A nossa relação com São Vicente é a relação da seara com a semente. Foram dezassete séculos de aventura do Evangelho. Não admira que ele se tornasse patrono fiel e santo querido de todas estas cristandades perseguidas. De facto, depois da paz dada à Igreja por Constantino, não foi muito longa a tranquilidade da Igreja. A queda do Império Romano do Ocidente trouxe à Europa tempos de intranquilidade, na invasão dos povos do Norte que a Igreja evangeliza. Mas bem depressa a Península Ibérica conhece novos tempos difíceis para a cristandade, com a invasão dos muçulmanos. E é nesse contexto – e aqui a História confunde-se com a tradição – que as relíquias do Santo Mártir acompanham as vicissitudes das comunidades cristãs perseguidas, que ora as escondem, ora as levam consigo, na sua peregrinação martirial. Semente de cristãos no seu martírio, ele torna-se semente de resistência e de fidelidade no sofrimento dos seus irmãos. Santo de grande devoção das comunidades moçarabes, o seu último esconderijo no promontório de Sagres, no Cabo que hoje tem o seu nome, é nomeado como santuário de peregrinações, por cristãos e muçulmanos. Aí as vai procurar o nosso primeiro Rei, depois da conquista de Lisboa, certamente para apaziguar as comunidades cristãs moçarabes, que continuavam presentes na nova Lisboa dos cruzados. Lisboa recebeu essas relíquias, fazendo de São Vicente o Santo da Cidade, que gravou, para sempre, no seu escudo, os símbolos que evocam essa viagem das relíquias de Sagres a Lisboa. Desde então sempre a Igreja de Lisboa se considerou fruto amadurecido dessa semente que foi o sangue do Santo Mártir; e sempre a Cidade, a começar pelas suas autoridades, lhe confiaram os destinos da Cidade. Queremos colocar o Congresso da Nova Evangelização e a próxima Missão na Cidade, sob a protecção de São Vicente. O seu sangue continua semente fecunda, que há-de enriquecer a nossa palavra e o nosso testemunho. Queremos que a “Missão na Cidade” seja uma manifestação do nosso amor à cidade e a afirmação da perenidade salvífica do sangue dos mártires. Em nenhum outro ponto como no culto a São Vicente, a Igreja e a Cidade cruzam os seus destinos e partilham os seus anseios e projectos. 3. Queremos celebrar os mil e setecentos anos do martírio de São Vicente, no contexto do ano de preparação para o Congresso e para a Missão na Cidade. É um ano de aprofundamento da nossa fé e da nossa radicalidade cristã, para podermos ser testemunhas autênticas do evangelho. Proclamo um Ano Vicentino, que se inicia hoje e termina de hoje a um ano, que será um verdadeiro “Ano Santo Vicentino”. O Santo Padre aceitou o meu pedido de conceder, durante este ano, à Catedral e às Igrejas Paroquiais de São Vicente de Fora, de Vila Franca de Xira e de Alcabideche, que têm São Vicente como Patrono, as graças jubilares, nas condições que serão proclamadas a seguir. Será um ano de convite à conversão e à renovação espiritual, acentuando a graça simbólica da centralidade da Catedral, Igreja Mãe da nossa Diocese. Tornemo-nos peregrinos da Catedral, em espírito jubilar, e aí receberemos a fecundidade redentora do sangue de Cristo, bem presente no sangue do Mártir São Vicente. Aliás, durante este ano a Catedral oferecerá aos seus visitantes, além das graças espirituais, uma exposição permanente sobre São Vicente e outras actividades culturais, que constarão de programa a anunciar brevemente. Unidos a Cristo e com a protecção de São Vicente, tornemo-nos, cada vez mais, semente lançada à terra, de quem aceita sacrificar a vida para a ganhar, tornando-a sementeira fecunda do Reino de Deus. Sé Patriarcal, 22 de Janeiro de 2004, † JOSÉ, Cardeal-Patriarca