A segunda quinzena do mês de Fevereiro e o mês de Março deste Ano Europeu de Combate à Pobreza e Exclusão Social acontecem em pleno tempo de Quaresma, esse “tempo favorável” de quarenta dias entre Quarta-feira de Cinzas e o Tríduo Pascal que culmina na aurora da Ressurreição onde se inauguram novos tempos e se vislumbram novos horizontes.
Neste tempo, de uma forma mais ou menos consciente, reflecte-se, de um modo especial, a realidade teândrica do ser humano, a imanência e a transcendência, a terra e o céu, a cinza e o incenso. Claro que muitos teimam em acentuar uma ou outra perspectiva, consoante as respectivas crenças ou falta delas, mas a realidade vai demonstrando que a unicidade do ser humano se traduz numa multiplicidade de manifestações. Desconfiando da certeza com que alguns definem os acontecimentos humanos como meras coincidências, prefiro vê-los como momentos históricos onde o profano e o sagrado se tocam, onde o belo e o horrível se manifestam, onde, enfim, o cosmos e as pessoas acontecem, na sua vertente humano-divina.
Entretanto, já em tempo de Quaresma, aconteceu a tragédia da Madeira, o terramoto do Chile, vários tsunamis e tempestades. Constatou-se destruição, morte, fuga de população, pilhagens, etc. Mas, ao mesmo tempo, vivem-se oportunidades de reconstrução, de refundação de vidas, de solidariedade, de aproximação de pessoas e partilha de bens.
Neste “tempo favorável” têm-se multiplicado mensagens antigas e novas chamando a atenção para a realidade envolvente e, sobretudo, para a realidade profundamente desejada. Refiram-se, a título de exemplo: a mensagem do Papa Bento XVI para esta Quaresma e, no seu seguimento, as mensagens quaresmais de bispos portugueses onde, de um modo geral, a Justiça é a palavra e atitude de ordem que deve brotar do mais profundo de todo e qualquer ser humano para que se manifeste no contexto envolvente; as Jornadas Nacionais da Cáritas Portuguesa sobre o Combate à Pobreza e à Exclusão Social pelos caminhos da Inovação, as quais reclamaram um envolvimento crescente de todos nesse combate, de forma criativa e solidária; a temática da Semana Nacional da Cáritas: “Erradicar a Pobreza, Radicar a Justiça”, como proposta concreta para olhar, com olhos de ver, para as injustiças, desigualdades, pobrezas e exclusões do nosso tempo e espaço, respondendo com uma atitude radical de Justiça, profundamente alicerçada no mais íntimo de todo o ser humano e tendencialmente transversal a todos os quadrantes da vida política, económica, social e religiosa, qual sonho que anseia por um acordar feliz; a Campanha “Pobreza Zero” da Cáritas Europa e que em Portugal se denomina “Acabar com a Pobreza Já”, a qual pretende, através da assinatura de uma Petição, atingir um milhão de assinaturas capaz de influenciar as instituições europeias na procura activa de soluções para os problemas da pobreza e da exclusão social; a Reflexão para a Quaresma da Comissão Nacional Justiça e Paz intitulada “Novos paradigmas, Novos comportamentos”, entre outras.
Pese embora a importância destas mensagens e iniciativas, temo, por vezes, que elas sejam mais para o momento do que contínuas, mais passageiras do que efectivas, mais eficientes do que eficazes, mais para os pobres do que com os pobres, mais para se ver do que para ver, mais para os outros do que para nós. Perante o drama histórico da Pobreza e da Exclusão Social que teima em perdurar entre nós, agravando-se, saibamos dar conta que o “entre nós”, de uma forma ou de outra, a todos envolve, seja como pobres “efectivos”, seja como causadores ou exploradores de pobres, seja ainda como omissos perante os pobres.
Neste cenário, a Pobreza é sempre geral e geradora, mais do que de alguns pobres, de uma humanidade pobre e de uma pobre humanidade. Este “tempo favorável” do Ano Europeu de Combate à Pobreza e Exclusão Social, apresenta-se, assim, como mais um momento de afirmação de grandes mensagens e discursos mas, sobretudo, como uma oportunidade única para uma mudança paradigmática de atitudes políticas, económicas, sociais e religiosas, a começar no mais íntimo de cada um, seja cristão ou não. Quando caminharmos, lado a lado, com os que vivem a Quaresma da vida e a vida em Quaresma, talvez a nossa Quaresma seja mesmo Quaresma e assim se torne patente a certeza latente da Ressurreição, tanto a do pobre como a nossa. Só então poderemos proclamar Aleluias e transformar todo o Ano Europeu de Combate à Pobreza e Exclusão Social num tempo verdadeiramente “favorável”…
paulo.neves@caritas.pt