Ano da Fé

João Duque, teólogo

Na sequência do tratamento dado à caridade e à esperança (Deus caritas est e Spe salvi), seria de esperar que Bento XVI dedicasse um escrito à fé, centrando assim as suas encíclicas nas três virtudes teologais, como tinha anunciado no início do pontificado. Desta vez, dedica-se o ano de 2012 inteiro à reflexão e meditação sobre a fé. Desse modo, realiza-se o projeto de repensar os elementos essenciais do cristianismo e da vida da Igreja, evitando que, no interior da densa floresta dos assuntos e das propostas, se perca o horizonte fundamental do que nos constitui como cristãos.

Interessantemente, este ano da fé coincide com a celebração do 50.º aniversário do início do Concílio do Vaticano II, precisamente em outubro de 1962. A junção dos dois «acontecimentos» eclesiais conduz-me a uma breve reflexão sobre o que possa ser o ano que se inicia.

A reflexão e a reafirmação daquilo em que verdadeiramente acreditamos, daquilo que orienta fundamentalmente a nossa existência, acontece, normalmente, em momentos críticos da existência pessoal e também comunitária, ajudando a uma redescoberta da identidade, como forma de dar sentido a tudo o que fazemos. Ora, é sabido que o Concílio do Vaticano II foi convocado, precisamente, com essa finalidade. Os séculos XVIII, XIX e XX tinham trazido grandes alterações à vida social e pessoal dos europeus e, por extensão, de todo o mundo. Essas alterações tiveram enorme impacto sobre a vida da Igreja, sobretudo sobre a vida e as convicções de cada cristão. Era urgente, portanto, refletir sobre a nossa identidade. O Concílio fê-lo, precisamente através de uma refontalização do cristianismo, assumindo que não é possível a sua existência sem a «contaminação» da história em que se desenvolve, mas também que é necessário reconhecer a profundidade dessa história, libertando-o de muitos acessórios que poderão turvar a compreensão da sua identidade fundamental.

É claro que o mais recente Concílio Ecuménico aconteceu num contexto em que os movimentos político-sociais viviam do entusiasmo revolucionário da transformação das condições de vida dos contemporâneos. Desse modo, também as conclusões do Concílio foram acolhidas, por muitos, como contributos para uma forte revolução sociopolítica, capaz de transformar de vez a Igreja e o mundo. Os aspetos mais imediatos – e às vezes mais superficiais – das reformas assumiram o protagonismo quase exclusivo, aliando-se-lhe uma expetativa forte, em relação aos efeitos de determinadas transformações organizativas.

Tudo isso foi, sem dúvida, importante para a vida da Igreja, resultando numa alteração notável das práticas quotidianas dos cristãos. Mas depressa se manifestou um problema inerente: que as expetativas estariam colocadas sobre bases pouco sólidas e que as verdadeiras transformações da vida eclesial pudessem ser puro resultado de reformas de organização.

No primeiro caso, o que aconteceu foi que, muitas vezes, as modificações de superfície chegaram mesmo a atraiçoar a redescoberta da identidade do cristianismo; ou então, a maioria dos fiéis, que apenas contemplou as transformações de superfície, não chegou a penetrar nos fundamentos da sua fé, através de aprofundado conhecimento bíblico e teológico. Que as mudanças não tivessem passado de alterações epidérmicas, em muitos casos de efeitos de moda passageira, não seria de estranhar, enquanto não fossem trabalhados os alicerces da reforma em curso.

No segundo caso, até por natural efeito de quebra de entusiasmo, como acontece com todos os fenómenos de moda, foram surgindo as desilusões, fruto da ineficácia de muitas iniciativas e reorganizações reformadoras. Alguns chegaram mesmo, no auge da desilusão, a considerar que tinha sido errado o Concílio e que seria conveniente anular os seus efeitos. Quando a esperança se coloca apenas em artifícios organizacionais, a desilusão e mesmo o desespero estão já por perto.

Ora, penso que estes 50 anos de distância nos permitirão uma reflexão que conduza o Concílio aos seus núcleos fundamentais e permita compreender quais os seus contributos para a profunda transformação da Igreja, no permanente caminho de aproximação à sua identidade e aproximação ao mundo, para o qual existe. Nessa redescoberta, considero fundamental a orientação da fé, pois é nela que se encontra a base da correta ou incorreta realização do que pretendeu o Concílio.

Em primeiro lugar, porque não se trata de mera mudança de estratégia, na gestão de um grupo que previa entrar em crise. Aliás, por esse caminho, a estratégia não resultou, parecendo até que a crise se agravou. Mas o que pretendeu o Concílio foi abrir possibilidades de melhor realização daquilo que é a nossa própria fé, enquanto modo de vida pessoal e enquanto cerne do que constitui a comunidade eclesial. Trata-se, pois, de ser mais fiel à nossa identidade crente, essencialmente exposta na profissão de fé que denominamos «credo» ou «símbolo». Se redescobrirmos os textos do Concílio na sua ligação com esse núcleo crente, o caminho da sua aplicação é ainda longo.

Ao mesmo tempo, a atitude crente fundamental exige que não coloquemos a confiança da realização desse caminho exclusivamente nas nossas forças organizativas. É certo que, sem o nosso trabalho, nada se fará. Mas o processo é mais complexo. No nosso trabalho, é o Espírito que age e nem sempre as coisas são como parecem ser. Por isso, com a confiança colocada em base mais sólida – precisamente porque acreditamos – os desânimos não nos levarão à desilusão ou mesmo ao desespero. Porque acreditamos que o contributo do Concílio é bom e importante para o presente e futuro da missão da Igreja, trabalharemos na sua realização, como quem trabalha num projeto muito complexo e abrangente, como humildes servos, confiantes nos efeitos de algo que é maior do que nós mesmos.

João Duque, teólogo, presidente do Centro Regional de Braga da Universidade Católica Portuguesa

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Agência ECCLESIA

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