Pe. Ângelo Santos, Diocese de Lamego
O livro mais vendido de sempre é a Bíblia. O primeiro incunábulo da história foi a Bíblia. O livro mais traduzido do mundo é a Bíblia. O livro mais destacado no Kindle, a Bíblia. Contudo este artigo não é sobre a Bíblia, mas é sobre outro best-seller, o Missal Romano. Não é um best-seller de vendas, mas é um livro com uma difusão e dispersão ímpar na história.
Quando era pequeno durante a celebração da Eucaristia interrogava-me quanto é que aquele livro chegava ao final… quando o padre iria terminar de o ler. Porém deixemos as memórias, pois o plafond para este artigo é restrito. Um ano depois de entrar em vigor a nova edição do Missal Romano é um momento propício para compreender a génese deste best-seller eclesial. Podemos dividir a génese deste livro em quatro fases: gestação, miscigenação, “standartização” e aggiornamento.
1ª Fase: Gestação (sec. VI – X)
A partir do século VI surgem os livros litúrgicos na ascensão da palavra, ou seja, livros para serem usados nas celebrações. Antes do século VI é uma fase que não abrange este artigo pela razão que não existem propriamente livros litúrgicos. É uma fase que possui uma identidade própria que não corresponde ao objetivo deste artigo. Esta primeira fase podemos chamar a fase dos Sacramentários, foi o livro litúrgico principal e será o “parente” mais remoto do nosso Missal, permanecendo na linguagem familiar é o “avô” do nosso atual Missal. O Sacramentário é um livro que contêm formas eucológicas para a Eucaristia e os demais sacramentos. Nesta fase existe uma proliferação de livros litúrgicos: os lecionários (epistolários e evangeliários), os livros de canto (antifonários…), os ordines romani e os martirológicos. Dentro dos sacramentários existem dois grupos principais: o sacramentário gelasiano e o sacramentário gregoriano.
Neste período existe um acontecimento que irá marcar a história do nosso Missal Romano. No século VIII, Carlos Magno (Rei 768-800; Imperador 800-814) solicitou ao Papa Adriano I (772-795) um sacramentário puramente romano. Nesse sentido, o Papa enviou um sacramentário gregoriano (expressão da liturgia papal) para a corte de Aquisgrano. Porém este sacramentário era para uso da liturgia papal, não estando preparado para uso diocesano-paroquial. Consequentemente foi necessário elaborar um suplemento para colmatar as lacunas do sacramentário papal. Com o passar do tempo o suposto sacramentário “puro” romano vai receber adições de outros livros litúrgicos dando origem ao processo de miscigenação do rito romano com a rito-cultura franco-germânica.
2ª Fase: Miscigenação (sec. XI-XV)
Nesta fase existem dois aspetos fundamentais: consolidação do processo de miscigenação ritual e o minimalismo livresco. Durante este período o rito romano é expressão de um rito híbrido, os livros litúrgicos não são mais “puros romanos”. Estes livros híbridos irão emigrar para Roma substituindo os “puramente” romanos. Nesta época da Idade Média aumenta a mobilidade das pessoas, o aumento da população nas cidades. Neste contexto surgem as ordens medicantes com a sua itinerância apostólica, consequentemente este novo dinamismo vai afetar os livros litúrgicos. Ninguém consegue andar com vários livros “às costas”, por isso, passamos de vários livros litúrgicos, para somente um único livro litúrgico que continha tudo (eucologia, leituras, canto, calendário, rubricas…), o Missal Plenário (“pai” do nosso atual Missal). O Missal plenário é produto de uma nova sociedade e de uma nova dinâmica apostólica-espiritual. Ganhou-se praticidade pastoral, mas perdeu-se riqueza espiritual. Deste período um Missal bastante importante é o Missal Regulae (1230) dos franciscanos e a sua adaptação feita pelo superior dos franciscanos Aimón de Faversham (1243). No final desta fase surge o primeiro Missal impresso, o Missale Romanum de 1474, que será a base do futuro Missal de Trento (1570).
O Missal Romano não é um livro estático, pelo contrário aplicando as palavras de Pierre Rigoulot sobre o conhecimento humano, mas perfeitamente aplicáveis à história do Missal Romano “o seu desenvolvimento… o seu retrocesso ou estagnação, depende da estrutura social, cultural e política” e claramente do contexto eclesial.
Tendo em conta as restrições do plafond para o artigo não analisarei as duas fases restantes (“standartização” e aggiornamento), quiçá noutra ocasião se termine esta anatomia.
Pe. Ângelo Santos