Nestes alvores do terceiro milénio, a sociedade humana global está a ser aspirada num vórtice de descrédito, de decadência estrutural, de violência, de desumanidade, de depressão e de crise de esperança. “Despertamos do sono dogmático – diz Michel Foucauld – e caímos entorpecidos no sono antropológico”. O mundo ocidental gerou e alimenta no seu seio uma elite, poderosa no campo político, na educação, nos media e veiculadora de ideologias: 1) secularistas, que encerram o ser humano e o mundo na estrita imanência, 2) propagadoras do relativismo, em nome de uma pretensa defesa da autodeterminação e da consideração absoluta da liberdade individual, 3) promotoras de uma mentalidade eugénica, em nome da qualidade de vida e da dignidade humana. O Cristianismo, por seu lado, quer nas suas instituições, quer no testemunho cristão, apresenta, muitas vezes, um Deus evangelicamente irreconhecível. Apesar de tudo, o ideal cristão continua a apontar ao mundo um sentido possível de realização humana e de plenitude de vida. Este ideal lembra-nos que o desenvolvimento humano não se mede somente pelo poder económico, pelas proezas técnicas e pelas conquistas científicas. O verdadeiro e humano desenvolvimento orienta-se também e decisivamente pelo “parâmetro interior” da dignidade da pessoa humana, criada à imagem e semelhança de Deus, e dos direitos humanos. Diante da questão social actual, a Igreja precisa de definir uma metodologia adequada e desenvolver estratégias sócio-analíticas à luz da antropologia cristã, com repercussões consequentes na acção social. Ao mesmo tempo, a Igreja precisa de instituir uma atitude de permanente autocrítica e de definição da peculiaridade da sua missão. A misericórdia impõe-se à reflexão e à acção social da Igreja como ethos civilizacional a configurar com urgência. Se a terminologia misericórdia não está em sintonia com a sensibilidade moderna, o seu conteúdo é de total actualidade ao evocar a fraternidade recíproca. Misericórdia rima com abertura do coração ao miserável, rima com compaixão com aquele que sofre, rima com ternura, rima com amor, rima com salvação, rima com dignidade. Em registo cristão, a misericórdia situa-se no horizonte do amor, para além da solidariedade e da justiça. É esta compreensão que João Paulo II tem quando escreve: “A misericórdia difere da justiça mas não se lhe opõe” e “O primado e superioridade do amor em relação à justiça manifesta-se precisamente através da misericórdia” (Dives in Misericordia §4). A idiossincrasia cristã é o amor-misericórdia. Ele é a medula do ethos evangélico. Ele configura um novo pensar (logos) e um novo agir (ethos) em que a gratuidade, o dom, a hospitalidade, dominam a tentação de cobrança e de expectativa em meu favor. A única expectativa que pode comportar é a do bem do outro, sem que este bem do outro dependa da consideração do meu próprio bem. Só o amor-misericórdia pode combater, em doçura, a fealdade que desfigura o mundo. Só ele sensibiliza a dura cerviz e faz do coração de pedra um coração de carne. Ele é o caminho para restaurar a beleza da criação à imagem do Deus caritas est. Hoje necessitamos de redescobrir o conceito, penetrar no seu sentido autêntico e recuperar a força operativa que dele brota para a vida. Este amor-misericórdia orientado para os mais pobres, para os mais frágeis, e os mais necessitados, é, em si, autêntica liturgia, em que o amor ao próximo e o louvor a Deus são indissociáveis. Ele é a figura que resta de todo o nosso esforço, individual e conjunto, para resolver as carências ou aliviar os sofrimentos nomeados. Esgotadas as diligências, resta o amor-misericórdia, não como resposta última, mas como resposta primeira, que guiou todos os passos dados. Ele é o único que sobrevive e resiste ao fracasso de todas as outras estratégias. O agir cristão define-se ainda pela liberdade. A partir da leitura das Cartas de S. Paulo vemos que a liberdade cristã distingue-se bem de outras perspectivas de liberdade. A liberdade cristã é-o na medida da sua conformidade com Cristo: amor ao próximo, amor ao inimigo, relação com todas as criaturas, em doçura, reconhecimento da dignidade humana, que maravilha Deus e nos “maravilha”. É este maravilhar-se diante da dignidade humana que “determina a missão da Igreja no mundo”. Dignidade, que nenhum relativo social, político ou cultural consegue fundamentar. Dignidade absoluta, só sustentável num fundamento absoluto, necessariamente teocêntrico. Neste sentido, o “Não matarás”, mais do que um relativo político-cultural (provisório) é um absoluto imperativo teologal (definitivo) que, numa formulação positiva, poderá ser traduzido do seguinte modo: cuidarás da vida, protegerás a vida, mormente a vida fragilizada. Isabel Varanda