Algarve: O 24

Era dia 24. O único dia do ano que não precisava de ter o nome do mês para se saber qual era: aquele dia de dezembro era O 24.

O litão seco, antes peixe dos pobres, hoje iguaria comprada a bom preço, estava já de molho para ir para a panela, onde seria cozido e apresentado em molho branco; estava de molho o bacalhau para cozer com grão; e as carnes temperadas, para o dia seguinte.

A mesa já estava posta de festa. Tínhamos acrescentado um lugar. Um amigo, que ia trabalhar e não podia ir passar o Natal a casa, tinha acabado de ser quase obrigado a ir consoar connosco porque “Deus nos livre que saibamos que alguém passa a consoada sozinho e nós deixámos!”

E pela primeira vez no dia, consegui parar e olhar para os seus olhos. Os seus lindos olhos azuis. Sobre um estrado em degraus, vestido com a única toalha de linho do enxoval da nossa bisavó, passada à minha avó (e que um dia seria passada à minha mãe) encontrava-se, ao alto, um Menino em pé. Aquele era o Menino, o Nascido naquela noite, ali já crescido e abençoando com o que viria a ser o sinal da nossa salvação, em anos por vir ainda tão distantes do brilho sereno daqueles lindos e infantis olhos azuis. À volta do Menino, em cada degrau, ornavam laranjas, vindas diretamente da “Praça da Verdura” e, em algo que parecia quase deslocado, uma lembrança de tempos amargos: searinhas crescentes dentro de latas de conserva de peixe.

E eu tornei a lembrar-me deste mesmo dia, mas há tantos anos, quando perguntei: “Avó, se temos taças de cristal, porquê latas de conserva?”. E mais uma vez, os olhos brilhantes e vívidos do Menino me acompanharam numa viagem no tempo…

“Sabes, Zé, as coisas nem sempre foram como são, filho… ainda te lembras de ver televisão a preto e branco? Pois, filho, a avó lembra-se de não haver televisão. A avó lembra-se do tempo da fome, em que o litão era o refugo do que não ia para as fábricas e, muitas das vezes, nos contentávamos com as latas que tinham ficado presas na cravadeira e não podiam ser vendidas… e as tirávamos às escondidas para poder comer. E eram essas latas que usávamos para as searinhas, pedindo a abundância do Menino Jesus para nós…”

E esses tempos, de uma Olhão em que nunca vivi, mas que os sentia como se houvera, do qual existiam tantas memórias presentes na minha mente, voltavam. Tempos em que havia carestia, mas tempos em que se criou uma sensação de fraternidade que ainda hoje vive, numa ceia em que, Deus nos livre, ninguém passa sozinho.

Os olhos azuis sonhadores do Menino-Deus armado no trono olhavam para mim, carinhosamente… sim, eles nunca no-lo permitiriam acontecer…

Bruno Filipe da Cruz Alexandre

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