D. José Pedreira despede-se do cargo de Bispo de Viana do Castelo com alegria e tranquilidade interior, assegura em entrevista ao Programa ECCLESIA
D. José Pedreira despede-se do cargo de Bispo de Viana do Castelo com “uma certa alegria e tranquilidade interior”, assegura em entrevista ao Programa ECCLESIA.
Bispo de Viana desde 29 de Outubro de 1997, D. José Pedreira completou 75 anos no último dia 10 de Abril, mas já apresentara anteriormente a sua renúncia, alegando cansaço.
ECCLESIA – O que sente neste momento em que se prepara para deixar a diocese de Viana do Castelo?
D. José Pedreira – Essa pergunta desencadeia em mim uma resposta mais alargada, ou seja, o que sinto ao final de 51 anos de presbítero, 27 e meio de bispo e 12 anos e meio nesta diocese. A recordação da passagem como bispo de Viana do Castelo faz parte de um todo.
Sinto, em primeiro lugar, uma certa alegria e tranquilidade interna por saber que vou entrar num ritmo de vida um bocadinho mais calmo. Não quer dizer, de maneira nenhuma, que esteja a pensar ficar inactivo. Mas a sobrecarga da orientação de uma diocese que tem 291 paróquias e cerca de 150 sacerdotes acumula-nos muitas preocupações a cada dia.
Em segundo lugar, esta idade dos 75 anos e uns meses também já nos habituou a olhar para trás. Sinto-me feliz por estes anos passados. Se outros tantos tiver para dar à vida, gostaria de os dar à mesma à Igreja, continuando a fazer o mesmo trabalho. Mas reconheço que, ao fim de 75 anos, a Igreja só lucra em que haja pessoas com maior capacidade juvenil para continuar o trabalho feito.
Reconhece no seu sucessor a potencialidade para dar continuidade ao que D. José Pedreira fez na diocese e também para inovar, ser criativo e dinamizar esta região?
D. José Pedreira – Com certeza. A passagem de mandato do governo de uma diocese de um bispo para outro não tem nada a ver com a transição de uma pasta governamental, em que se está sempre a tentar descobrir qual dos ministros vai fazer mais e melhor.
Na Igreja, a transmissão do ministério apostólico é feita sempre em continuidade. Naturalmente que cada bispo administra e evangeliza a diocese à sua maneira. Não há dois bispos iguais. Por isso há uma continuidade de trabalho – é a mesma Igreja, a mesma verdade que queremos anunciar, a mesma mensagem da salvação. Mas há métodos e modos diferentes.
Tenho muita esperança de que o novo bispo possui todas as qualidades, aptidões e condições para poder não só continuar, mas também inovar para os tempos novos. É com muita esperança que vou acompanhar a sua entrada na diocese.
Neste ambiente de descristianização e secularismo em que vivemos, estamos numa região onde o toque do sino ainda mobiliza muito o íntimo das pessoas. Este acorrer à voz do sino é apenas um sinal externo ou ainda tem correspondência no envolvimento litúrgico e pastoral das populações?
D. José Pedreira – Respondendo de maneira simplista, diria que nesta região os nossos fiéis ainda ouvem o toque do sino e se deixam mover por ele.
Claro que esta afirmação não atinge 100 por cento da população, embora chegue a uma percentagem muito grande. A diocese de Viana do Castelo ainda tem, em registo civil da prática religiosa, mais de 92 por cento de pessoas que se declaram católicas, o que lá significa praticante. Essa maneira de ser praticante não implica o cumprimento pleno das obrigações mas é uma consciência de que se pertence à Igreja e que se está na sintonia do essencial.
Por exemplo, no referendo sobre o aborto, os diocesanos de Viana do Castelo votaram negativamente numa percentagem de 55 ou 57 por cento. E há zonas onde se ultrapassaram os 60 por cento. As verdades e os princípios cristãos ainda orientam o essencial da vida da maior parte da população da diocese.
Se me perguntar se já não entrou aqui o secularismo e o materialismo, respondo-lhe que sim. Temos uma percentagem grande de pessoas que vão vivendo como que em dois mundos quase paralelos ou complementares. Isto é, a cultura do fácil, do material e do gozo da vida ao mesmo tempo que as obrigações religiosas.
Apenas acrescentaria que aquilo que me preocupou sempre como bispo desta diocese é o facto de eu saber que a maior parte da nossa população praticante, que vive internamente a sua dimensão religiosa, o faz ainda segundo expressões e valores de uma religiosidade popular.
A maior preocupação de um bispo em Viana do Castelo não é a dimensão religiosa em si, mas que caminhada pedagógica e didáctica devemos utilizar para que essa nossa gente, que é boa, que tem prática religiosa com convicção interna, seja capaz de a realizar em linguagem mais inteligível, especialmente para as gerações jovens dos dias de hoje.
A religiosidade popular é um desafio pastoral muito intenso para o seu sucessor e também para os párocos, no sentido de abordarem essa potencialidade numa linha pedagógica?
D. José Pedreira – É um problema que tem de ser visto sob múltiplas facetas. Não é uma questão de sim ou não. É um problema de análise e de procura da melhor solução para facilitar o diálogo entre uma cultura religiosa tradicional e uma cultura da secularidade que nos envolve.
Digo muitas vezes, a quem julga que a melhor solução é as pessoas se deixarem de religiosidade popular, que ela manteve a fé desta gente até agora. É uma espécie de religiosidade telúrica, como diria o nosso Miguel Torga. Trata-se de um desafio sermos capazes de transmitir esta vivência, para a sociedade e para os outros, numa linguagem que condiga com as expressões e valores culturais do momento que estamos a viver, com um grande domínio da secularidade.
Identificava, em certa ocasião, alguma desorientação e falta de esperança no futuro por parte dos portugueses. É uma preocupação que traz consigo?
D. José Pedreira – Um sociólogo francês, no virar do milénio, dizia que o século XXI será religioso ou, simplesmente, não será. Isto é, auto-destrói-se. A dimensão religiosa constitui para nós, ainda hoje, um motivo de esperança, acrescido aos que existem na ciência, técnica, desenvolvimento e progresso económico.
Na minha catequese insisti por vezes na palavra da esperança. Não que aquelas realidades não sejam expressão dela, mas porque no contacto diário com as populações, e também no que lemos, ouvimos e vemos nos meios de comunicação social, apercebo-me de que a informação e as mensagens transmitidas têm um substrato de falta de esperança. Isto nota-se sobretudo nos jovens, nos casais, nas famílias e nos cientistas, inclusivamente naqueles que há cinquenta anos nos disseram que em cinco décadas teríamos vencido a pobreza, o desemprego, a doença. Passado esse tempo, têm de reconhecer que, infelizmente, isto não está melhor nesses campos.
É um desafio apresentar a Igreja como reduto de esperança e dinamização que entusiasma as pessoas, e não meramente um supermercado de sacramentos, onde as pessoas se apaziguam emocionalmente?
D. José Pedreira – Às vezes estamos preocupados – e eu falo como bispo – que a Igreja possa ser vista como uma espécie de supermercado de sacramentos. Não quer dizer que num ou noutro ambiente cristão isso não aconteça.
A verdade é que a missão da Igreja nesta cultura pós-moderna não está nada diminuída no contributo que lhe compete dar para que o mundo seja melhor, mais justo, fraterno e pacífico. Sabemos que a sociedade de hoje necessita da colaboração de todos, pelo que todos devemos contribuir para que ela seja melhor.
Às vezes cria-se o pensamento de que os maiores contributos vêm de quem produz mais bens materiais. Mas a razão da crise não está na falta de produtividade. Temos uma capacidade produtiva que daria para muito mais, mas não há quem a consuma. Não faltam meios de produtividade. O que acontece é que os produtos estão mal distribuídos e as comunidades carentes não saem dessa situação.
O que a sociedade necessita é de alguém ou de alguma instituição – e agora vou utilizar uma palavra que se usa na vossa linguagem, mas não na nossa – que transaccione bens espirituais. Que comunique e enriqueça a cultura e a sociedade, que possuem coisas tão bonitas mas que não têm horizonte para as utilizar. Faltam valores que dêem segurança, esperança e sentido da vida para um futuro. Fica-se assim numa redoma, com os bens todos diante de si mas sem saber o que fazer deles. Tantas vezes vemos nos meios de comunicação social que pessoas com todas as posses puseram termo à vida, a que não deram sentido.
A Igreja vai passar por um momento difícil, mas é essencial, mais do que nunca, que cumpra a sua missão de transmitir valores, razões de confiança e gosto pela vida.
A atenção à condição social do ser humano também foi uma das suas prioridades…
D. José Pedreira – Nenhum bispo, sacerdote ou cristão adulto sério pode deixar de se preocupar com a situação de todas aquelas pessoas que lutam pela defesa dos seus direitos fundamentais, como o emprego, a saúde e as condições que lhes permitam viver com dignidade.
A expressão da Igreja é para que a sociedade seja melhor. A Igreja só faz sentido estando ao serviço de toda a comunidade, para que, através da mensagem que recebeu, lhe leve maior bem-estar. E temos uma preocupação muito maior com as pessoas mais carenciadas, como os desempregados, doentes ou famílias sem condições para educar os filhos. Mas preocupa-me muito mais a situação dos nossos idosos.
Estou numa diocese que tem uma área mais ou menos urbana – as cidades, aqui, são apenas duas, e pequenas. Nas muitas freguesias e paróquias de periferia há zonas onde a média etária da população ultrapassa os 65 anos. Dessa idade para baixo, as pessoas emigraram ou deslocaram-se para outras cidades do país para encontrar trabalho com mais facilidade.
Muitos dos nossos idosos, que são uma percentagem grande da população portuguesa, não receberam as benesses do progresso social, isto é, não têm reformas condignas. Muitos estão doentes. Mas a maior preocupação é a solidão, dado que não têm ninguém de família com eles. Lembro, por exemplo, os casos em que um marido e uma esposa de 70 ou 80 anos estão sozinhos, numa casa antiga, com condições de vida mínimas e com os filhos e netos longe. Se conferisse as minhas últimas homilias, verificaria que as pessoas da terceira idade ocuparam um lugar especial porque são mais de 30 por cento da população da diocese. É com elas que eu tenho de me preocupar todos os dias.
Essa preocupação está patente na conclusão da casa sacerdotal, que é fundamental no apoio ao clero mais idoso da diocese…
D. José Pedreira – Naturalmente que sim, por motivos fáceis de elencar. Em primeiro lugar, sou bispo há 27 anos, incluindo os 15 anos e meio que fui bispo auxiliar do Porto. Durante a minha vida episcopal já assisti aos últimos dias de muitos sacerdotes em condições de vida inumana e indigna para alguém que, desde a ordenação, e às vezes até desde os 12 ou 13 anos, doou toda a sua vida aos outros. Entendi sempre que um padre que se doou sem estar a pensar em si tem um direito natural a que as populações cuidem da sua velhice.
Em segundo lugar, o bispo tem de ser um pai ou um irmão mais velho para os seus sacerdotes. O bispo, mais do que ninguém, condói-se com as situações pouco humanas. E eu pensei sempre que antes de resolver a minha situação de bispo idoso, teria de resolver a situação dos padres idosos sob a minha orientação e dos meus colaboradores mais próximos.
Digo muitas vezes que um bispo tem de ser como o comandante de um navio: se há borrasca é o último a salvar-se, depois de ter salvo todos os tripulantes.
Na visão global da Igreja e no presbitério dos sacerdotes, pensei sempre em primeiro lugar na situação dos padres. E só pensarei na minha se fizer falta. Nesse sentido, a minha primeira realização como bispo diocesano foi dar início a um projecto da casa sacerdotal, que tem as condições indispensáveis para um resto de vida com dignidade. Tenho muita alegria nos sacerdotes que por lá passaram e nos que lá estão.
Espero que a partir do dia 15 de Agosto eu próprio tenha lá um quarto para mim, para envelhecer tranquilamente e com dignidade humana.
A diocese de Viana do Castelo, que é a mais jovem do país, tem mantido uma regularidade nas ordenações que vai atenuando a elevada média étaria dos padres…
D. José Pedreira – Os seminários e as vocações são um elemento fundamental na vida de um bispo e de uma diocese. As populações têm muita carência de sacerdotes no seu meio. Eu sei que os leigos fazem muitas mais coisas e podem fazer ainda muitas outras. Mas isso não dispensa a presença dos padres.
Esta diocese tem 33 anos. Durante os meus 12 anos e meio ordenei 32 sacerdotes e deixo dois diáconos para poderem ser ordenados daqui a pouco tempo. O meu antecessor, o senhor D. Armindo Lopes Coelho, ordenou 27 nos 15 anos em que esteve à frente da diocese. E o senhor D. Júlio [Tavares Rebimbas] ordenou não sei quantos nos cinco anos em que foi bispo diocesano.
A verdade é que a diocese ordenou praticamente sempre alguns sacerdotes jovens. Daí que não temos aquela carência grave de ministério sacerdotal que existe noutras dioceses.
Num congresso havido em Braga, alguém teria dito – não o posso confirmar, até porque essa informação carece de estudo – que a diocese de Viana seria a segunda mais jovem ao nível da Europa. Custa-me a crer que seja verdade. Creio que a Polónia teve muitos sacerdotes nos anos anteriores e há-de ter dioceses com média etária mais baixa.
Estou convencido que a diocese tem o essencial. Mas há campo para muito mais. Gostaríamos de ter mais padres.
Também tem estimulado os sacerdotes a não andarem demasiado atarefados a organizar muita coisa, para terem sempre tempo para as pessoas. Isso é muito importante…
D. José Pedreira – Estou convencido que sim. Aprendi isso com os bispos mais idosos que ainda conheci. Como disse anteriormente, preocupamo-nos com as pessoas que estão em situação de carência. E muitos dos nossos sacerdotes e paróquias estão a realizar um trabalho extraordinário na vertente sócio-caritativa. Onde isso é possível e necessário, julgo que a comunidade cristã deve fazê-lo. Mas devemos acautelar o perigo de o sacerdote se esquecer da sua missão de anunciador da Boa Nova e dos valores, ficando, sem querer, absorvido no activismo de manter uma estrutura difícil e ter de arranjar dinheiro para ela. É nesse sentido que eu costumo dizer aos padres: “activos sim, mas activismo, não, porque perturba”.
O falecido D. António Ferreira Gomes [antigo bispo do Porto], que era um homem com uma visão muito alargada, ficava impressionado com os sacerdotes muito “edificantes”, isto é, que edificavam muitas coisas. E costumava dizer: “Eu nunca fui muito edificante”, expressão com dois sentidos, mas que ele aplicava à construção de obras materiais. Essas, os leigos têm obrigação de as fazer e sabem fazê-las bem. A nossa grande preocupação é transaccionarmos os valores espirituais.
Chamou a atenção, numa das suas intervenções, para a necessidade de estar atento aos novos métodos…
D. José Pedreira – Eu costumo seguir na minha vida particular – e isso transparece na comunicação que faço aos sacerdotes – aquilo que o teólogo e cientista Jean Guitton escreveu na obra “Um século, uma vida”, onde afirmou que um dos grandes desafios que temos hoje é o diálogo entre uma cultura de base cristã e uma cultura de base secularizada.
Ele diz que aqueles que têm uma cultura baseada nos valores cristãos devem procurar aproximar-se o mais possível das realidades da linguagem da cultura secularizada – dois mundos que às vezes parecem paralelos. A nossa linguagem religiosa pode ser fechada, uma espécie de micro-cultura, hoje minoritária, que impede a comunicação.
No diálogo com os sacerdotes, procuro que eles estejam abertos a inovações. Não na doutrina, porque não é ela que vai ser inovada, mas na maneira de a transmitirmos. A resposta aos problemas novos de hoje exige de um sacerdote, de um bispo ou de um cristão sério uma abertura permanente aos valores e contravalores da sociedade e uma visão muito clara dos valores e contravalores – também há um ou outro – da cultura cristã.
O Concílio Vaticano II [1962-1965] diz, por exemplo, que há determinados ritos na liturgia que, por já terem passado do seu tempo, tornaram-se obsoletos, pelo que temos de os substituir. Não é a verdade que está mudada, mas a expressão que temos de fazer dela. Esta insistência de um bispo perante o seu clero, que às vezes cria algum burburinho e desfasamento, tem de ser uma pedagogia permanente.
Esta preocupação é a mesma de um professor na escola ou dos pais que utilizam linguagens e maneiras distintas de transmitir mensagens para educar filhos de idades diferentes.
Como é que vai resistir à tentação de não interferir no governo da diocese? Vai ser fácil ou difícil manter a distância entre a Casa Sacerdotal e o Paço Episcopal?
D. José Pedreira – Em primeiro lugar, não chego a sair da casa episcopal porque esta diocese não a tem. E eu nunca me esforcei nada para criar uma – e poderia fazê-lo, porque temos uma dádiva de uma grande residência destinada a esse fim.
Nestes 12 anos e meio coloquei essa questão à consideração, mas sempre para o meu sucessor, dado que para mim nunca pensei no assunto. Não me preocupa minimamente. Tenho um quarto para dormir e uma sala para audiências. Para o meu serviço, chega. Por isso nunca vivi numa casa com grandes comodismos.
Vou passar a residir num quarto mais pequeno com toda a liberdade e, ao mesmo tempo, toda a delicadeza. Estou convencido – o tempo dirá – de que não terei dificuldade alguma em não interferir na vida da diocese. Se isso acontecesse, retirar-me-ia com toda a naturalidade.
Conheço casos que, tanto quanto sei, funcionam bem. O senhor D. Manuel Falcão, de Beja, reside com o bispo diocesano. E eu nem sequer vou morar com o bispo diocesano, mas com sacerdotes idosos, que visito quase todos os dias. Eu serei mais um naquela comunidade.
Há também o caso de Aveiro, em que o senhor D. António Marcelino [bispo emérito] ficou com o senhor D. António [Francisco dos] Santos [actual bispo diocesano]. Não há problema nenhum na convivência entre dois bispos. Sabemos respeitar-nos perfeitamente. Temos uma vida muito longa de diálogo com as pessoas, mas saberemos dizer àquelas que porventura nos abordem, convencidas de que as poderemos ajudar, que só há um bispo na diocese. Por isso julgo que essa convivência será para mim muito fácil.
Mas será um conselheiro precioso…
D. José Pedreira – Na medida em que o bispo diocesano o solicite. E só.