Adriano Moreira, prémio de Cultura Pe. Manuel Antunes

É um actor principal da História Contemporânea de Portugal. Recebe esta sexta-feira o Prémio de Cultura Árvore da Vida Pe. Manuel Antunes, por um percurso de cidadania e contributo político e académico que recorda em entrevista à Ecclesia.

Agência ECCLESIA (AE) – No seu livro «Espuma do Tempo» afirma: "A arte de esquecer a inutilidade em que se traduz a maior parte das inquietações que consomem o nosso tempo, reduz as recordações a tão pouco que, muitas vezes, se contam num gesto, e sem palavra". Que gesto recordaria o seu contributo para a sociedade portuguesa ao longo destes anos?
Adriano Moreira (AM) – Não me considero um exemplo dessa capacidade de resumir tudo num gesto. No entanto, tenho a convicção de que – isso corresponde à verdade – aquilo que sempre sublinhou a minha intervenção foi a convicção do papel da Universidade na vida portuguesa. Para que tal acontecesse tive de praticar alguns gestos e, certamente, não foram todos agradáveis. Tivemos dificuldades grandes no percurso, mas acho que está suficientemente recompensado.

AE – Investiu muito dos seus recursos e esforços nesse projecto. ( SOM)
AM – A Universidade é um compromisso de vida. A Escola Superior Colonial – onde comecei a minha vida – estava organizada como escola de quadros. Depois de ter ganho alguma experiência nesta área e no panorama universitário português pareceu-me que tínhamos chegado a um momento em que já não era uma escola de quadros que poderia corresponder às exigências da conjuntura que tínhamos entrado. Era necessário transformá-la, realmente, numa instituição universitária que obedecesse aos princípios, à ética, aos objectivos e à relação da Universidade com a comunidade. Os factos, infelizmente, confirmaram que a conjuntura se agravaria. Naquele tempo, se averiguarmos a relação do Ensino Superior com problema fundamental que era o Ultramar, verificamos que o ensino era muito limitado: as Faculdades de Direito tinham uma cadeira – em geral era de um semestre – sobre administração colonial; a Agronomia tinha também uma cadeira sobre a agricultura tropical e nas escolas de Economia não era muito vasto o leque de matérias sobre esta área.

AE – Essa paixão pela transformação da escola teve consequências negativas aos olhos daquele tempo?
AM – Não digo que foram negativas, mas foram difíceis. Naturalmente que outras pessoas mantinham outra concepção e estavam envolvidas no passado feito com devoção naquele sentido. Aqui tratava-se – com maior ou menor acerto – entender que a conjuntura era completamente diferente e que a alteração tinha que ser feita. A Escola passou por dificuldades muito grandes – designadamente suspensão de cursos -, mas foram vencidas. Hoje, acho que ela desempenha um papel suficiente dentro da Universidade Técnica.

AE – Para além da educação, a questão colonial foi também uma das suas paixões. A sua tese foi sobre as questões prisionais no Ultramar.
AM – Há uma espécie de queda no mundo, que suponho se traduziu em duas quedas. Em primeiro lugar, a minha formação foi na Faculdade de Direito de Lisboa. Era uma ocupação muito relacionada com o Direito Positivo. A certa altura, o Almirante Sarmento Rodrigues – era Ministro do Ultramar – que tinha como subsecretário o Raul Ventura – uma das inteligências mais brilhantes da sua geração – pediu-me para estudar uma reforma do sistema prisional do Ultramar. Algo que não conhecia, ou melhor só conhecia de livros. Fiz uma visita a todos os territórios de África que mudou completamente a minha atitude. Verifiquei que o plano normativo português, incluindo os grandes princípios constitucionais, não tinham uma aplicação muito rigorosa nesses territórios.

AE – Nessa altura África entrou-lhe no sangue.
AM – Comecei a derivar para o estudo das questões sociais e menos para a capacidade da legislação ser o instrumento orientador. Indispensável sim, mas na vigência da época bastante afastado dos factos. Daí resulta todo o trajecto de reforma da Escola, modificação de currículos e o chamamento de jovens para o professorado – muitos deles enviados para o estrangeiro para obterem os títulos académicos – para combater um pouco o sistema arquipelágico em que se vivia.
Depois tenho outra queda no mundo que foi a ida na delegação de Portugal às Nações Unidas. Aí, acentuou-se a ideia que a mudança da Ordem Internacional não podia deixar de afectar o país severamente. Foi preciso acrescentar, às inquietações anteriores, o estudo dos desafios internacionais que não têm deixado de crescer em relação ao estatuto real do país na Ordem Internacional. Neste momento – como todos sabem – está numa crise enorme. Estas duas quedas implicaram uma mudança na minha vida.

 

MINISTRO DE SALAZAR

AE – Mudanças radicais até ao convite, em 1960, para Subsecretário de Estado do Ultramar e, posteriormente, para Ministro do Ultramar.
AM – Este chamamento foi um pouco surpreendente. Tinha estado nas Nações Unidas e escrito relatórios [para o Ministério do Ultramar] sobre o que lá se passava porque a Escola – durante bastante tempo – dependia, administrativamente, do Ministério do Ultramar por causa dos orçamentos. Fui chamado porque num dos relatórios tinha escrito que Portugal tinha evitado a condenação das Nações Unidas porque tinha conseguido manter o terço de segurança que impede a condenação, mas que entre 1960/61 a questão passaria para o terreno. Tudo indicava que deixaria de ser um debate puramente parlamentar. E isso aconteceu… Fui chamado para me questionarem como tinha previsto isso. Dei uma explicação simples. Não foi uma grande ciência porque vi o programa de entrada de novos países e, nessa data e com a entrada desses países, perderíamos o terço. Portanto, a condenação viria aí. E com esta, a legitimidade da reacção poderia ser armada de acordo com a experiência que já tínhamos do mundo.

AE – Entra no «mundo do poder» sem pertencer à Mocidade Portuguesa nem à União Nacional? ( SOM)
AM – Nunca. A explicação que me deram foi surpreendente. Quem me disse que o Presidente do Conselho queria falar comigo foi o próprio Ministro do Ultramar, Almirante Lopes Alves, uma pessoa de alta categoria intelectual e moral. Era meu amigo porque dependia dele no ponto de vista administrativo na escola. Ele estava seriamente doente e com um problema próprio de um oficial. Entendia que, apesar do seu estado de saúde, tinha que ir a Angola. Tinha sido governador e não queria dar a impressão que era o facto de aparecer aquela crise que o estava a afastar. Toda a gente compreendeu isso. No fundo, fui ajudá-lo nesse período de transição que ele fez com grande galhardia. Saiu passados poucos meses. Fui nomeado ministro pelas informações – o fundamento é curioso – que o Presidente do Conselho tinha sobre as minhas criticas muito severas ao processo administrativo e político que estava em vigor para o Ultramar. Como tive sempre o hábito de escrever as lições, as críticas não eram secretas. Convidou-me para executar «essas coisas que anda a dizer».

AE – Estava em sintonia com o Estado Novo?
AM – O que houve foi um julgamento sobre a crise que, subitamente, desafiou toda a estrutura. Aquilo que me pediam para fazer era uma ruptura que foi feita, em muitos aspectos, sem grande continuidade. Não existia, nas instâncias dessa altura, a noção de que o racismo estava a ser o dinamizador – mais importante talvez – da revolta contra os poderes coloniais. Na primeira definição do Estatuto dos Indígenas havia a debilidade de começar a identificá-los por serem da raça negra. Revogar o Estatuto dos Indígenas era fundamental…

 

REFORMAS QUE ABALARAM O PODER

AE – «Revogar o Estatuto dos Indígenas» e a «abolição das culturas obrigatórias» foram medidas tomadas enquanto foi Ministro do Ultramar.
AM – Sim, mas não foi fácil. Se revogamos o estatuto dos indígenas estamos a dizer que todas as etnias e culturas subordinadas ao Estado Português têm um traço que é este: a cidadania é igual para todos. Se é igual para todos, não é compatível com culturas obrigatórias. Destas, a do algodão era a mais importante. Por outro lado, foi necessário fazer um Código de Trabalho. Foi das intervenções que achei mais gratificantes porque as instâncias internacionais duvidaram disso. Nesse tempo, o BIT era uma instância de alta autoridade e organizou uma comissão para verificar se essa lei estava a ser aplicada com autenticidade. Há um relatório dos membros do BIT onde se afirma que estava a ser feita com autenticidade.
Outra coisa fundamental passava pela salvaguarda das terras. Há um regime relativo às terras para salvaguardá-las dessas comunidades. Ter uma cidadania igual com um complexo de culturas diferenciadas é um trabalho que exige muita autenticidade. Mas a revolta e as circunstâncias agravaram-se. Há uma questão nas reformas que é muito séria, sobretudo em regimes de autoridade: a defesa da sede do poder é um travão, muitas vezes, à evolução. Realmente, essas reformas coincidiram – não digo que fossem a causa directa – num abalo muito sério da sede do poder.

AE – Estas reformas levaram à sua demissão em 1963. Sentia oposição de alguns sectores na aplicação dessas remodelações?
AM – Isso é natural. Não era isso que me afligia por desagradável que tenha sido (risos…). Tenho a impressão que em Portugal a única instituição política duradoura que atravessou todos os regimes é o parlamento dos murmúrios. Nesse parlamento quem se mete em reformas tem de estar pronto para os murmúrios. Quando as reformas abalam a sede do poder, a sede reage e esse foi o caso. O Presidente do Conselho disse-me «que nunca colocou qualquer objecção às reformas – foi para isso que o convidei -, mas, neste momento, tenho que reconhecer que está a abalar a minha capacidade de continuar a controlar o governo. Portanto, temos que mudar de política». E respondi-lhe: «acaba de mudar de ministro». Eu não poderia mudar de atitude e desconhecer o entendimento que tinha da evolução que estava em curso.

AE – Até esse momento ia sentindo que o progressivo envolvimento das suas propostas poderiam dar-lhe, a curto prazo, outras responsabilidades, como ser o sucessor de António de Oliveira Salazar?
AM – Não. Aquilo que verificava é que o exercício não ia durar muito tempo.

AE – Nunca se considerou «delfim» do Presidente do Conselho?
AM – Não. Sempre fui protegido pela lucidez.

AE – Mas foi apontado….
AM – Isso é a opinião pública, mas não posso ignorar.

AE – Foram estas reformas que levaram a isso….
AM – Sobretudo nos territórios ultramarinos. Não posso ignorar esses comentários, alguns foram escritos. No entanto digo que nunca me considerei com experiência e habilitação para tomar essa responsabilidade.

AE – Mas sentia que tinha experiência para mudar o estado das coisas na altura?
AM – Aproximávamo-nos daquilo que se chama o pensamento complexo, mas neste momento é muito mais evidente.

AE – Mesmo para a mudança de regime como aconteceu em 1974?
AM – Julgo que poderia ser diferente, mas sempre com a tal reserva. Julgo que há uma interpretação um pouco exagerada de supor que as tropas foram para África convencidas que iam ganhar a guerra. Nós tínhamos e continuamos a ter uma inteligência nas Forças Armadas que é sólida. Tínhamos oficiais que sabiam perfeitamente o que se estava a passar no mundo. Eles sabiam que essas guerras não se ganham… O compromisso foi de que eles iam ganhar o tempo necessário para que uma solução política pudesse ser estruturada e eficaz. Eles deram o tempo, mas a situação política tornou-se inviável e cada vez mais difícil à medida que a conjuntura internacional se agravava e modificava. ( SOM)
Em 1974, o que aconteceu foi – em primeiro lugar – decidir acabar a guerra. O plano de descolonização foi construído depois. Isso é talvez responsável pelo passivo que teve a descolonização. Parece não ter ocorrido a ninguém que era necessário ter feito intervir as Nações Unidas porque o conflito que havia era com as Nações Unidas, elas é que tinham a experiência, responsabilidade e a autoridade. Provavelmente – nunca podemos passar desses juízos – se isso tivesse sido feito, o passivo do que foi a descolonização não teria sido tão pesado. Repare-se que a nossa guerra de Angola durou 13 anos e a guerra civil deles durou 18 anos. Aconteceu o mesmo em Moçambique. Portanto, alguém esteve interessado em manter a guerra. Diria que a luta pelas influências e supremacias imediatamente se desenvolveu para além do ponto final posto na guerra.

AE – Quem estava interessado em manter essas guerras?
AM – As grandes potências. Passados poucos meses desembarcaram os soldados que vinham de Cuba. Desembarcaram trazidos por aviões da União Soviética. Não é difícil imaginar do que se tratava… Devemos ter em conta que aquela ordem mundial que tinha o seu assento no conselho de segurança nunca vigorou. A ordem que vigorou foi a dos pactos militares durante 50 anos.

AE – Acredita que se o seu plano de reformas para África tivesse sido aplicado, actualmente existiria outra estabilidade naquele continente?
AM – É um juízo que não vale muito a pena fazer. Estava nos projectos. É impossível – não é útil sequer – imaginarmos como a vida seria diferente.

AE – No entanto sabemos que o que foi feito não resultou? ( SOM)
AM – África foi grande sacrificada com tudo isto. Mas não foi somente nos territórios portugueses. Veja-se o caso da Argélia, Sudão e corno de África. Ainda hoje, a inquietação é muito grande em África. Está a pagar o preço duríssimo com alguns aspectos inquietantes. Não se consegue acabar com o comércio das armas ligeiras. A Comissão Nacional Justiça e Paz insiste nisso todos os anos. Quando se vê as fotografias daqueles desastres – alguns são genocídios -, os soldados têm sempre armas modernas que o país dele não produz. Essas armas são todas produzidas em sociedades avançadas.

 

AMIZADE COM O BISPO DA BEIRA

AE – As suas reformas para África eram apoiadas por alguns elementos da Igreja, nomeadamente D. Sebastião Soares de Resende, bispo da Beira (Moçambique).
AM – Segui muito a vida dele, mesmo antes de o conhecer. As homilias dele mereciam ser lidas e mereciam uma meditação. Teve conflitos constantes com o governo e morreu em querela judicial com o governo.
Algumas coisas que D. Sebastião Soares de Resende desejou e vaticinou durante anos e anos, eu pude fazê-las. Uma delas foi a criação do ensino universitário. Ele pedia isso há vinte anos e guardei o anúncio para a cidade da Beira. Nesta cidade – numa assembleia convocada pela Associação Comercial – fiz este anúncio que lhe deu uma alegria enorme.
Nessa altura já tinha sido revogado o «Estatuto dos Indígenas», mas recordo que ele – era muito franco e animado no diálogo – me disse que a revogação já tinha seis meses, mas não tinha tido uma aplicação muito rápida. Disse-lhe: «Aquela lei de que o senhor é responsável diga-me a que velocidade vai a aplicação para ver se o acompanho» (Risos)

AE – Posteriormente, tornaram-se amigos…
AM – Ficámos amigos. A penúltima vez – isto emociona-me – que o vi foi em Roma, no II Concílio do Vaticano. Nessa altura, já estava muito frágil. Parecia uma vela do altar que dá luz e vai morrendo.
D. Sebastião foi à Suécia verificar o seu estado de saúde. Veio de lá com o diagnóstico irremediável, com poucos meses de vida. Descansou em Lisboa, no Hospital do Ultramar. Ao visitá-lo, com o Pe. Silva Rego, notei que ele estava extremamente débil. Nessa visita pediu para que as pessoas saíssem, ficando apenas eu e o Pe. Silva Rego. Deu-me vários conselhos e aconselhou-me algumas leituras: tem de voltar a ler Teillard de Chardin e S. Tomás de Aquino.

AE – «Leia Teillard de Chardin e não desista» foi um conselho….
AM – É verdade. Disse-me para não ter pressa porque o tempo faz falta. (Nessa altura estávamos extremamente comovidos). Referiu também que estava com pressa de regressar à diocese porque quero ir vivo – é mais económico – para morrer em Moçambique. O funeral dele uma manifestação ecuménica extraordinária. Estiveram representações de todas as crenças.
Em 1966 fui a um congresso na Beira e aproveitei para ir ao cemitério. Ele queria ser enterrado no caminho… Não se podia passar por cima porque este estava cheio de flores. D. Sebastião Soares de Resende manteve uma imagem e uma memória muito viva. Tenho um desgosto enorme porque havia um livro na catedral – o livro do «Povo de Deus» – onde as pessoas escreviam as suas lamentações e preces. Esse livro desapareceu. Mesmo assim consegui reunir alguns documentos e trabalhos mais importantes dele, com ajuda de outras pessoas, incluindo o sobrinho, e reuniu-os num volume: «D. Sebastião de Resende – Profeta em Moçambique». Levei esse livro ao Papa João Paulo II que ficou comovido quando ouviu a história de vida do bispo e a maneira como morreu. Na altura recebi um convite para ser o orador da inauguração da estátua de D. Sebastião Soares de Resende, em Milheiros de Poiares (Santa Maria da Feira).

AE – Escreveu também o «Tempo de Vésperas» dedicado a D. Sebastião S. Resende?
AM – Ele tinha um jornal que sustentava com grandes dificuldades. Após a morte dele, alguns quiseram comprar o jornal, mas a diocese teve a preocupação de não deixar que o «espírito» do jornal fosse alterado. Fui convidado a escrever crónicas para o jornal que estão publicadas em «Tempo de Vésperas». Foi um estilo que nunca mais usei… Gostei de publicar e dedicar-lhe o livro porque deveria fazer alguma coisa pela sua memória.

 

RUMO ÀS DEMISSÕES

AE – Após a sua saída de Ministro do Ultramar começam a surgir os problemas?
AM – Apareceram problemas na escola. O encerramento desta afectou a vida de centenas de estudantes, mas tivemos manifestações de apoio das famílias e das instituições universitárias. Mais uma vez tive que ser demitido… Fiz um pequeno discurso – foi gravado e distribuído – onde terminava da seguinte forma: as autoridades académicas neste país são da confiança do governo. Eu sou autoridade académica, mas a confiança tem de ser recíproca. Quando cheguei a casa já estava demitido.

AE – Foi o maior desgosto da sua vida
AM – Nessa altura foi. Senti que ficava em perigo o projecto, mas este já tinha corpo e alma e funcionou até 1974, onde atravessou uma nova crise. Era natural que atravessasse porque todo o sistema educativo atravessou.

AE – Passou de "possível sucessor" de Salazar a «persona non grata» do Estado Novo? ( SOM)
AM – Nunca me ocorreu isso. Nunca ninguém me contactou para isso. Nunca tive nenhum movimento político. Quando foi o «desastre da queda da cadeira» estava numa missão no Brasil. Lá fiquei… Não achei que era comigo. No entanto, não ignoro os comentários e «as coisas» ditas, mesmo depois da revolução de 1974. Não ignoro, mas não posso assumir isso.

AE – A «Primavera Marcelista» também lhe causou alguns dissabores?
AM – Não foi tão grave assim.

AE – Chegou a ir para o Brasil.
AM – Ia muito ao Brasil porque tinha grande intimidade com esse país. Corri o Brasil de Norte a Sul, mas não está relacionado com a «crise marcelista».

AE – Essa paixão pela educação gerou alguns problemas de relacionamento com Marcelo Caetano e José Hermano Saraiva. «Ódios» existentes ou já estão esquecidos?
AM – Não posso falar por eles (risos…). Acho que nunca tive sentimentos desses. No incidente com Marcelo Caetano, muita gente sustentava que ele não tinha tido parte nisso que não sabia. Custa-me a aceitar isso… Ninguém se atreveria a praticar um acto daqueles – provocou uma agitação enorme na universidade – sem o conhecimento do Primeiro-Ministro. Atribuo isso ao estado espírito dele. Toda a gente sabe que ele viveu esse período cheio de inquietações. Suponho que Marcelo Caetano viveu um drama: ele era um dos responsáveis por toda a estrutura anterior, visto que era um doutrinador.
Ele viveu o drama de olhar para os princípios que sempre defendeu – e os seus valores – e o que a sua inteligência lhe dizia sobre a sua mudança. Neste conflito que não teve tolerância de muita gente que o acompanhou – convencida que ele iria fazer alterações – foi grave na vida de um homem. Subitamente, ele vê-se na responsabilidade de ser ele a alterar tudo isso. Julgo, que este foi, efectivamente, o drama dele… No meio desta perplexidade aconteceu isto. No entanto, olho para isto com benevolência.

 

NUNCA FUI MARXISTA

AE – Permita-me a provocação, mas gostaria de saber se foi marxista quando era jovem?
AM – Nunca.

AE – Há um historiador que escreveu…
AM – Não leio muito Freire Antunes, mas tenho que dizer o seguinte: quando comecei as reformas, naturalmente foi muito inesperado como aparecia aquele jovem a fazer estas coisas. Devo dizer que quem sofreu mais com isso foi a minha mãe. Os telefonemas que ela recebia foram extraordinários e passei a ser logo marxista (risos…). Quem defende o trabalho obrigatório é logo marxista. Posteriormente, tiveram afirmações menos «vermelha» e mais brancas (Maçonaria) porque havia pessoas, Sarmento Rodrigues e o Carvalho Santos – só soube isso depois de eles morrerem – que estavam ligadas à Maçonaria. Assiste-se, com frequência, ao ataque da credibilidade das pessoas.

AE – Consta também que era o único membro do governo que não beijava a mão do Cardeal Cerejeira. É verdade ou lenda?
AM – Não sei se havia alguém encarregado de verificar isso. Cada vez que via o Cardeal Cerejeira cumpria o ritual que, hoje, já anda bastante morto de beijar o anel nas cerimónias. Tive uma excelente relação com o cardeal Cerejeira e até foi presidir a conferências feitas por mim, nomeadamente em Coimbra sobre as missões. É interessante como as pessoas acham que devem observar factos tão fundamentais na vida dos povos.

AE – Como acompanhou o processo de D. António Ferreira Gomes e o Pró-memória a Salazar? ( SOM)
AM – Hoje tem uma leitura à distância que é diferente daquela que foi feita na altura. Foi um problema de relação com Salazar com o clero porque ele tinha um anti-clericalismo do norte. Explico: não devem meter-se nas coisas da política, mas quem julgava se a intromissão era na política ou não era ele. Podia ter um erro de julgamento. É bem provável que tenha tido esse erro.
D. Sebastião Soares de Resende era muito próximo de D. António Ferreira Gomes e, pelas minhas recordações, – não tinha uma grande intervenção no Estado – o problema situava-se no relacionamento que ele achava exigível à Igreja. A publicidade dada à entrevista que ele pedia feria os seus critérios… O que D. António Ferreira Gomes sustentava não era muito diferente do que sustentava D. Sebastião Soares de Resende ou daquilo que defendia D. Eurico Dias Nogueira, na «Carta Fraterna», em Moçambique.

AE – Que razões substanciais o colocaram, novamente, na política activa nas décadas seguintes?
AM – Quando me abordaram não foi fácil dizer logo que iria participar. Eram pessoas que ouvia, designadamente o Adelino Amaro da Costa. O pai dele foi meu subsecretário e conhecia-o de muito jovem. Não posso esquecer também o Freitas do Amaral e o Narana Coissoró que foi o grande líder dos estudantes na crise do Instituto. Pareceu-me que era uma obrigação cívica, mas não era fácil. Pensei que não era recusável e está de acordo com o princípio que tenho: quem reforma o Estado é a sociedade civil. Esta é que tem de se manifestar e assumir responsabilidades. A responsabilidade cívica tem de ser assumida.

 

DO ESTADO NOVO A LÍDER DA DEMOCRACIA CRISTÃ

AE – Foi o único que fez parte do «Estado Novo» e chegou a líder partidário.
AM – É possível que mais ninguém tenha tentado. Se os melhores tivessem tentado talvez isso não tivesse acontecido (risos…) porque me teriam dispensado desse encargo.

AE – É excesso de humildade ou é o seu franciscanismo?
AM – Não é o franciscanismo. Acredito nessa regra: senta-te no fim da mesa e espera que te chamem. A pessoa – isto é uma das coisas importantes de Manuel Antunes – deve ter o eixo da roda firme.

AE – Aderiu ao CDS para ter mais uma tribuna para dar voz à Doutrina Social da Igreja? ( SOM)
AM – Sim. Estamos numa época onde o relativismo está a abalar toda a sociedade ocidental, mas quem organizou a Europa foi a democracia cristã. Os três grandes líderes fundamentais (França, Alemanha e Itália) eram democratas cristãos. Portanto, esse apelo era fundamental. É inquietante que a democracia cristã tenha desaparecido do panorama político europeu. Lamento a recusa que foi feita de fazer referência a essa herança no projecto constitucional europeu, que agora se chama «Tratado de Lisboa».

AE – A democracia cristã está fora da ciência política?
AM – Não pode estar porque não é o nome que importa. Na discussão que, hoje, é cada vez maior da reposição da ética, continuam os valores que a democracia cristã tinha assimilado. Não são os valores que estão em causa. As formações políticas é que perderam essa definição fundamental.

AE – Acredita que os valores da democracia cristã estão lá?
AM – Não identificados dessa maneira. Na Europa existem dois humanismos em concorrência, mas com alguns pontos que se cruzam: humanismo cristão e o humanismo do socialismo democrático. No entanto, não há vantagem, não é útil e não corresponde aos factos ignorar que estão lá esses valores. Julgo que a reposição desses valores é necessária. Há um fenómeno – parece-me bem documentado – que está a diminuir a declaração de pertença a uma religião institucionalizada, mas o apelo à transcendência está a aumentar. As pessoas têm de pensar nisto com seriedade…

AE – Mesmo com o avanço do Islão?
AM – Temos de ver se a pregação de João Paulo II nos ajuda a repor aquilo que chamei: «A Nova Doutrina de Assis». A diabolização do Islão não é aconselhada pelos factos, nem pelos interesses do desenvolvimento da sociedade ocidental. Actualmente, já temos 18 milhões de muçulmanos que vieram para ficar. Tudo o que é a diabolização de uma área cultural e de crença é extremamente errado.

AE – Falou de João Paulo II, mas o seu Papa de referência foi João XXIII?
AM – João Paulo II também. João XXIII foi um acontecimento porque ele «ouviu» vozes. O II Concílio do Vaticano aconteceu-lhe, como acontece aos poetas. Um voz disse-lhe: «faça o Concílio». Mas tenho de sublinhar que João Paulo II é insubstituível: o carisma e a capacidade de mobilizar multidões. Foi talvez dos papas que mais escreveu. Sem esquecer a importância que teve para a reunificação da Europa.
Tive a felicidade de estar com ele três vezes, mas há uma imagem que guardo: as cerimónias fúnebres. Os evangelhos em cima do caixão e a brisa a folheá-los… Uma imagem que ninguém pensou, mas os factos criaram aquela imagem.

AE – Passou cerca de 40 anos no Instituto Naval de Guerra… Foi aí que fez as primeiras lições de Política Internacional?
AM – Foram publicadas no tempo. Depois deram origem à teoria que está ainda em circulação.

AE – Que espaço dava ao Direito Natural?
AM – É uma matriz que faz falta. Justamente não pode haver valores cristãos sem assumir o Direito Natural. Faz parte do eixo da roda…. Insisto sempre nesta questão: na ordem jurídica internacional – hoje está numa crise enorme – o legado fundamental é de teólogos juristas. Há uma série de teólogos juristas que estão na raiz do Direito Internacional.

AE – Vê na diplomacia do Vaticano um grande contributo nesta área?
AM – A diplomacia do Vaticano usa um poder que outras entidades já usam: o poder dos sem poder. É o poder da razão, da persuasão, da razoabilidade… A razoabilidade é a arte do estadista e da boa diplomacia.


UM PRÉMIO: UMA BÊNÇÃO

AE – Qual a reacção inicial ao saber que era o galardoado com o «Prémio Manuel Antunes» deste ano?
AM – Quem me comunicou foi o actual bispo do Porto, D. Manuel Clemente. Só lhe disse uma coisa: obrigado pela bênção. Primeiro comoveu-me e foi absolutamente inesperado este galardão. Há muita generosidade nessa decisão. Não deixa de ser reconfortante que a pessoa seja distinguida sob a égide da lembrança do Pe. Manuel Antunes.

AE – Teve contactos directos com o Pe. Manuel Antunes?
AM – Não. Assisti a conferências dele, mas não tive nenhuma intimidade com ele. Há uma coisa fundamental – entre todas que ele fez – ocorrida depois de 1974: virou-se para a sociedade civil. Teve a noção que a sociedade civil tinha que ser mobilizada e o tecido dos valores culturais tinha de ser reforçado. Nisso, ele foi incansável. Quando vemos os comentários que ele fazia – quase em cima dos acontecimentos – verificamos que era preciso ter uma formação e uma atenção à informação para ter aquela capacidade de, quase diariamente, escrever e dar respostas aos desafios que apareciam.
Por isso, a obra é tão extensa e, felizmente, está a ser publicada.

AE – Sem esquecer os textos assinados com pseudónimos
AM – É verdade. A Fundação Calouste Gulbenkian faz um grande serviço ao publicar as obras completas deste jesuíta. Já tive a ocasião de recomendar ao Governo para que lesse as obras.

AE – Ao governo actual?
AM – Sim, no Conselho Nacional da Educação (CNE) onde estavam alguns ministros. Há muita coisa nesta reforma no Ensino Superior que merece algumas reservas. Há um princípio do Manuel Antunes – um princípio de cristãos – que a vida é um passado com futuro. É erro pensar que é um futuro sem passado. O ensino também é um passado com futuro. A universidade é um passado com futuro. Nesse encontro do CNE recomendei as obras do Pe. Manuel Antunes ao governo.

AE – Um dia D. Sebastião Soares de Resende disse-lhe: «Releia Teillard de Chardin e não desista». O Pe. Manuel Antunes foi um dos principais divulgadores deste autor em Portugal.
AM – O Pe. Manuel Antunes foi o primeiro a levar Teillard de Chardin para a Universidade. No meu Instituto organizaram-se os primeiros debates públicos sobre Teillard de Chardin e um dos organizadores foi o doutor Almerindo Leça. Há um testemunho grandioso que o Almerindo deixou sobre o Teillard de Chardin: «Não sei quantas pessoas acompanharam a intervenção do autor, mas não duvido que muitos regressaram ao cristianismo pela voz dele. Eu sou um deles».
Há uma coisa curiosa, Teillard de Chardin morreu em Nova Iorque e foi acompanhado ao cemitério por 12 amigos. Talvez um número auspicioso.

AE – Identifica-se com o Prémio Manuel Antunes?
AM – identifico-me com muita modéstia porque o Pe. Manuel Antunes foi um professor com prestígio, audiência e autoridade. Um professor fenomenal. Aquilo que muitos chamam a dispersão não é a dispersão do eixo da roda. É a necessidade de tentar entender a complexidade que anda à volta e que o leva àquela intervenção quase diária. Isto tem um resultado evidente: ajuda a sustentar a esperança.

AE – Ele via para além do tempo?
AM – Sim. Foi um visionário.

AE – Outro parceiro desses valores foi Agostinho da Silva?
AM – Sim. Naturalmente com percepções diferentes. O Agostinho da Silva acreditava em Joaquim Fiora e nos três estádios da evolução: época do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Agostinho da Silva tinha uma concepção do Quinto Império que não tem sido muito bem entendida. O Quinto Império era a sobrevivência dos valores portugueses que manteriam unidos os povos. Agostinho da Silva queria fazer uma sementeira de Centros de Estudo onde tivesse passado a soberania ou a evangelização.

 

PORTUGAL UM ESTADO EXÍGUO

AE – O Ensino Superior corre o risco de ser submetido à lógica de mercado?
AM – De alguma maneira já está remetido. Em França, a população está na rua a manifestar-se porque não querem as universidades transformadas em empresas. Em Portugal, temos várias universidades em situação financeira difícil, mas é indiscutível que a rede global do ensino superior cresceu sem regulação. Ás vezes digo: o Estado Português entrou de licença sabática nesta área, em 1974.
Temos escolas e excelência e capacidade intelectual e científica de grande valia, mas é preciso o apoio necessário.

AE – Se pudesse escrever uma proposta no Programa do Governo qual escolheria?
AM – Tenho a dolorosa previsão que o Estado Português está ameaçado de evolucionar para Estado exíguo. É um Estado exíguo aquele que não tem recursos para satisfazer todos os objectivos para os quais nós inventámos o Estado. Isto acontece num momento onde a redefinição das soberanias é aceleradíssima. Mesmo as grandes potências – como os Estados Unidos – já apreenderam que o multilateralismo não é possível para eles. Estamos a evolucionar para soberanias que chamo de funcionais ou cooperativas. O instrumento mais importante dessa soberania é a preparação técnica e científica. Temos de colocar o acento tónico na consolidação da preparação técnica e científica portuguesa. O mar volta a ser importante, mas devemos olhar também para uma janela de liberdade que é África.

AE – Se voltasse à política activa qual o partido que poderia integrar?
AM – Neste momento não voltaria à política activa. Faltam lideranças com capacidade e autenticidade. Restaurar a confiança em muitas actividades do aparelho político é fundamental. Isto é a base da esperança.

LS/PR

 

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