Adolescência e Severance

Padre Miguel Lopes Neto, Diocese do Algarve, membro RedAlfamed e Universidade de Huelva

Foto: Agência ECCLESIA/MC

Neste tempo em que os algoritmos moldam subtilmente as nossas perceções e relações sociais, criando sociedades digitais fechadas, nas quais o confronto com ideias divergentes é cada vez mais raro, as séries de streaming, como “Adolescência” e “Severance”, ilustram, de forma metafórica, os perigos dessas pequenas comunidades algorítmicas, revelando-nos as suas implicações profundas na vida social e individual.

Em “Adolescência”, vemos jovens envolvidos em círculos sociais digitais, que reforçam continuamente as suas crenças e comportamentos. O algoritmo das redes sociais, ao personalizar conteúdos com base em gostos e interações anteriores, cria “bolhas de filtro”, que limitam o acesso a informações diversificadas. Estes jovens crescem fechados em ambientes autorreferenciais, incapazes de lidar com opiniões contrárias ou com a diversidade que caracteriza uma sociedade plural. Este isolamento digital, embora confortável, impede-os de desenvolver empatia, espírito crítico e capacidade de diálogo, fundamentais para uma cidadania democrática.

Por seu lado, “Severance” oferece-nos uma alegoria poderosa sobre a fragmentação da experiência humana causada pela personalização algorítmica extrema. Ao separar radicalmente a vida profissional, da pessoal, através de uma intervenção tecnológica, a série revela o potencial alienante de uma existência filtrada e condicionada por algoritmos. Tal como na série, onde os personagens perdem a noção de totalidade das suas vidas, na realidade digital contemporânea corremos o risco de fragmentar a nossa visão do mundo, consumindo apenas conteúdos que os algoritmos consideram relevantes para nós.

Estes exemplos ficcionais refletem perigos bem reais. Encerrados em pequenas sociedades digitais sem contraditório, perdemos o acesso à diversidade de opiniões e informações que tradicionalmente enriqueciam o debate público. A polarização ideológica aumenta, alimentada por narrativas enviesadas e frequentemente falsas, que se propagam nas nossas “bolhas digitais”, com velocidade alarmante. Sem um confronto saudável com a alteridade e a divergência, assistimos à erosão progressiva da capacidade crítica dos cidadãos.

Além disso, este isolamento digital não se limita ao domínio político ou cultural. Também afeta a saúde pública e a confiança nas instituições, como é evidenciado pela rejeição das vacinas ou pela crescente desconfiança face aos sistemas democráticos tradicionais. Os algoritmos, ao privilegiar conteúdos sensacionalistas e polarizadores, para aumentar o engagement, contribuem diretamente para a desinformação e para a crise da verdade.

Urge, portanto, uma reflexão profunda sobre o papel que permitimos que os algoritmos desempenhem nas nossas vidas. É essencial promover a literacia digital, garantindo que os cidadãos compreendam os mecanismos que moldam as suas perceções e interações. Só assim, poderemos romper com estes pequenos universos fechados, recuperar uma vivência social plural e democrática e resistir à tentação perigosa de uma “solidão confortável”, que ameaça a própria essência das nossas sociedades abertas e democráticas.

(Os artigos de opinião publicados na secção ‘Opinião’ e ‘Rubricas’ do portal da Agência Ecclesia são da responsabilidade de quem os assina e vinculam apenas os seus autores.)

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