António Salvado Morgado, Diocese da Guarda
Todos teremos quadros da nossa infância e adolescência com um significado vivencial tão grande que nos acompanham pela vida fora. Eu tenho bastantes. Uns mais positivos e outros nem tanto.
Aconteceu numa aula de Educação Moral e Religiosa. O professor, sacerdote, ia discorrendo sobre a criação, invocando o quadro bíblico do Génesis para realçar o poder criador da palavra de Deus. Foi quando se falou da omnipotência e omnisciência divinas. Timidamente, levantei o braço e lancei a pergunta:
– Se Deus é omnisciente, como se explica que Ele ande pelo jardim à procura de Adão?
A turma riu e eu creio que corei de vergonha com tal sonora risada dos colegas, logo matizada com o elogio do sacerdote à minha sagacidade. A resposta do professor pareceu-me um tanto atabalhoada. Ou não a terei entendido. E as considerações do sacerdote foram ficando esquecidas.
Mais tarde fui tomando consciência de que a Bíblia se encontra cheia de perguntas de Deus dirigidas aos homens. A que foi dirigida a Adão foi a primeira, mas um pouco adiante é a pergunta de Deus dirigida a Caim sobre o paradeiro do seu irmão Abel. E nem Abraão escapou à pergunta de Deus: «Onde está Sara, tua mulher?» E também o Novo Testamento está cheio de perguntas de Jesus. «Quem dizem os homens o que eu sou?», pergunta Jesus um dia aos discípulos. Seja também aquela dirigida a Madalena junto ao túmulo de Jesus: «Mulher, porque choras?» Seja ainda a pergunta derradeira dirigida pelo Ressuscitado a Pedro: «Tu amas-me mais do que estes?»
O que Deus se propõe com estas e outras perguntas variará consoante as circunstâncias e os contextos humanos em que são enunciadas. Terão a palavra exegetas e hermeneutas – que eu não sou -, mas não será difícil ver nelas uma intenção pedagógica, como um mestre que, para despertar a atenção e desafiar o pensamento dos discípulos, vai lançando perguntas à classe. E a classe, aqui, tratando-se de perguntas de Deus, são os seres humanos de todos os tempos e todos os lugares.
Recentemente revivi aquele quadro bíblico passado com Adão e Eva na leitura de um muito pequeno livro de Martin Buber [1878-1965], um filósofo e teólogo judeu, nascido em Viena de Áustria e falecido em Jerusalém. É considerado um dos mais insignes filósofos judeus ao lado do cordovês Maimónides [1135-1204] e Bento de Espinosa [1632-1677], o holandês filho de judeus portugueses de que muito se tem falado e escrito nos últimos tempos.
Muito apreciei Martin Buber nos meus tempos de estudante em razão do seu «personalismo dialógico», como é geralmente chamado o seu pensamento filosófico, ou «personalismo teológico» se encarado na perspectiva da teologia, ele que advogava criação de um Estado judaico «binacional israelita-palestino».
Idealista, Martin Buber, pese embora a sua grande repercussão – no dizer dos entendidos – no pensamento de figuras cimeiras da teologia católica como Romano Guardini [1885-1968], Urs Von Balthasar [1905-1988] ou Joseph Ratzinger [1927-2022], foi ficando esquecido e imagino que os políticos de hoje, mesmo olhando para a situação de guerra, não terão sequer ouvido falar deste pensador do diálogo e do encontro que advogava o bom entendimento árabe-judaico.
Mas não foi a dimensão política que me arrastou para aqui, embora o contexto histórico do momento me tenha dado um contributo decisivo. Aquele livrinho de quarenta páginas de Martin Buber a que me referi acima intitula-se «O Caminho do Homem», baseia-se numa conferência proferida em 1947 e compreende seis pontos: I – Retorno a si mesmo; II – O Caminho particular; III – Determinação; IV – Começar por si mesmo; V – Não se ocupar de si; VI – Onde se está.
Já se estará a imaginar que aquele livrinho nada tem a ver directamente com a política. É antes um notável texto de filosofia espiritual ou de espiritualidade, cujo título bem o deixa antever. O título do livro e os títulos dos seis capítulos.
Se Deus é omnisciente, como se explica que Ele ande pelo jardim à procura de Adão? – Perguntava eu, na minha adolescência, ao professor. Embora apareça integrada numa narrativa de espírito judaico, o livrinho de Martin Buber abre com aquela pergunta que, na sua simplicidade, esconde a vida humana e a responsabilidade de Adão e de todo o Adão.
Adão escondeu-se para não encarar o rosto de Deus e esquivar-se à responsabilidade. «Onde estás?» é a pergunta feita por Deus, não para descobrir Adão no seu esconderijo, não para ficar a saber através de Adão o que Ele não soubesse, mas para suscitar nele o regresso ao estado em que se encontra e chamá-lo à descoberta do caminho da vida.
É a situação de cada um de nós. Cada um se encontra na situação de Adão. Cada um é Adão e em todo o tempo Deus interpela o Homem, «onde estás? O “onde” não é um lugar geográfico. Esse poderá ser qualquer ponto de um qualquer jardim do espaço planetário. Sendo que o ser humano nunca poderá esconder-se do olhar de Deus, esconder-se de Deus é esconder-se de si mesmo e da sua condição. O “onde” é a situação espiritual do coração humano. A pergunta de Deus a Adão será uma espécie de repreensão pedagógica e um chamamento à conversão de cada um na unidade e ineditismo do seu ser existencial.
Adão, onde estás? Aquela primeira pergunta bíblica é a mais universal de todas as perguntas. Universal por parte de Quem pergunta, Deus, e universal da parte do receptor, o ser humano. É uma pergunta que expressa o universal humano; de todos os homens e de todos os tempos e lugares e é a pergunta que expressa a universalidade de Deus que, nas palavras de Martin Buber, se situa «na multiplicidade ilimitada dos caminhos que levam a Ele, e cada um dos quais está aberto apenas a um homem.» Caminho único no ineditismo de cada um, mas não a caminhar solitário, porque a dimensão constitutiva do ser humano é a relação com o outro. O Outro, Deus, e os outros, os seres humanos.
Sempre, em todo o tempo e lugar, a pergunta de Deus: Adão, onde estás? Boa pergunta para o tempo quaresmal, porque a pergunta é um chamamento à vida. Uma pergunta que bem pode trazer alguma luz ao convite que o Papa Francisco dirige a todos na sua mensagem para a Quaresma deste ano: «caminhar juntos na esperança» enquanto indivíduos e comunidades.
Guarda, 6 de Março de 2025
António Salvado Morgado
morgado.salvado@gmail.com
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