Neste artigo, o Pe. Georgino Rocha «mergulha» no II Concílio do Vaticano e apresenta alguns pontos pertinentes sobre o «maior evento eclesial do século XX» Decorridos cinquenta anos, ocorre naturalmente a pergunta: é ainda actual o II Concílio do Vaticano? A esta interrogação procura dar resposta o presente artigo apresentando alguns pontos pertinentes. A intuição de João XXIII de que haviam chegado “novos tempos” e de que a Igreja precisava de se renovar acentua-se e alarga-se ao longo deste período e não faltam sinais a confirmá-lo, apesar do caminho percorrido. Por isso, se pode colocar a questão na perspectiva da sua actualização. 1. O tempo não é apenas novo pelos factos ocorridos ou pelas situações criadas, mas pela descoberta assumida de que é portador da salvação que Deus oferece a todos na história, revelador do sentido entranhado nos acontecimentos, configurador das oportunidades da realização humana, penhor das realidades futuras, memória e profecia. A consciência do valor do tempo e do ritmo vertiginoso da sucessão das “coisas” é tão significativa que pode designar-se não apenas por época de mudanças, mas por mudança de época. A provisoriedade impôs-se como característica fundamental do modo de vida actual, realçando a importância do “hoje” sempre novo e da atitude humana empenhada, sempre aberta e confiante. A mobilidade demográfica, a comunicação de massas e de pequenos grupos, a rede interactiva de informatização contribuem enormemente para um modo novo de estar e pensar, de conviver e de ser, de definir prioridades e de estabelecer escalas de valores que marcam estilos de vida e definem critérios de convivência social. A intensidade com que é vivido cada momento tende a privilegiar o subjectivo, a absolutizar o relativo em detrimento das opções duradoiras, definitivas e consistentes. Um horizonte amplo se abre à consciência e à sua função “reitora” dos comportamentos humanos, privados e públicos. Uma redobrada e nova atenção pastoral é exigida. 2. Situada no tempo e sentindo o seu impacto, a Igreja aprofunda a consciência do seu ser mistério de comunhão em ordem a configurar de forma mais adequada o seu ser sacramento de salvação. A fidelidade a Jesus Cristo impele-a a estar atenta à cultura, aos contextos, às linguagens e a procurar inserir-se para melhor servir. Sendo una e única, realiza-se numa pluralidade de comunidades dispersas, mas em comunhão orgânica e dinâmica; sendo santa e apostólica, traz consigo a marca das limitações e deficiências humanas acumuladas ao longo da história; sendo católica está aberta ao universal e condensa num local os meios indispensáveis à salvação. Esta auto-compreensão eclesial manifestou-se de forma significativa em iniciativas emblemáticas como os Sínodos e a criação de órgãos reconhecidos de participação: assembleias e conselhos, designadamente. Mas expressa-se igualmente em gestos e atitudes eloquentes, embora discretas, como a solidariedade espiritual, a partilha de bens, o apostolado de vizinhança, o voluntariado social e missionário. A consciência assumida desta realidade contrasta radicalmente com a lentidão de processos de renovação global, com a raridade de projectos comunitários, com a debilidade da rede de comunicações no interior das comunidades e destas com a sociedade envolvente e distante. 3. Vivendo no tempo e no espaço, a Igreja convive com outras realidades que tendem a realizar serviços que tradicionalmente lhe competem. A sociedade comporta uma pluralidade de instituições que realizam as mais diversas funções tanto no campo religioso como social e educativo. Em formas estáveis de presença e intervenção ou esporádicas e ocasionais. Situar-se nos novos contextos sócio-culturais, fomentar a autonomia do secular num quadro de valores evangélicos, manter a própria identidade e entrar em relação com “as múltiplas vozes do nosso tempo” constitui um repto deveras interpelante e urgente. Por exigências de fidelidade crescente à sua vocação e missão, a Igreja está chamada a intensificar o diálogo com as culturas, as religiões e as confissões religiosas num contexto tendencialmente laicista e hostil, a traduzir em formas concretas a sua opção pela centralidade do serviço à pessoa, pelo ecumenismo das confissões cristãs, pela defesa e promoção das grandes causas da humanidade como a luta contra a pobreza imposta, a paz, a justiça, a vida, designadamente humana em tudo o que a pode dignificar. Traduzir e intervir, agindo “nas primeiras linhas”. 4. Salvaguardando sempre a dignidade humana, surge a liberdade religiosa como sua expressão qualificada, como direito fundamental numa compreensão antropológica tipicamente cristã. Sendo imagem e semelhança do Criador no ser e no agir, toda a pessoa reencontra em Jesus Cristo a plenitude que comporta germinalmente e está chamada a ir procurando atingir. Esta é outra área em que “mergulha” o texto conciliar, assumindo a relação da verdade e da liberdade como distintivo da consciência pessoal e da mensagem cristã. O caminho percorrido tem-se deparado com obstáculos que se convertem em oportunidades de aprofundamento de conteúdos e de pedagogias de implementação. Surgem também riscos que “fazem ver” outras faces daquela relação. O encontro com o fundamentalismo e as suas múltiplas expressões provoca atitudes de maior ponderação e retracção. O alastrar do “tolerantismo” como mentalidade perfilhada por muitos gera perplexidades e confusões. O anúncio da verdade torna-se mais exigente e o respeito pela liberdade mais qualificado. O reconhecimento do outro exige a preservação da própria identidade. É este um campo onde, como narra a parábola do Evangelho, se escondem jóias de grande quilate que é urgente descobrir, apreciar e integrar na harmonia da unidade plural. 5. A compreensão da Igreja como ícone da Trindade – povo de Deus, corpo de Cristo e templo do Espírito – introduz um novo dinamismo à instituição e dota os seus membros de energias peculiares que expressam a sua dignidade e os capacitam para a missão. Enquanto povo torna-se o rosto humano mais reconhecível do mistério. Enquanto corpo credencia a sua organização funcional ao serviço da vida a comunicar. Enquanto templo sente-se “habitada” pelo Espírito que a enriquece com os seus dons e credencia os seus membros. A dignidade de todos supõe e exige funções especiais de alguns, como é o caso do ministério ordenado e da vida consagrada. A renovação conciliar expressa e amplia este dado fundamental em passos significativos e coerentes. A comunhão converte-se em pólo de atracção e de irradiação. A participação em via de creditação e identidade. A formação em exigência vitalizadora da consciência de pertença e de intervenção. No entanto, a multiforme riqueza dos dons do Espírito, a memória-profecia da vida e acção das primeiras comunidades cristãs, a pluralidade das necessidades do nosso tempo indiciam claramente a urgência de prosseguir esta renovação e inovação. Há situações de comunidades eclesiais a atender e de áreas culturais a evangelizar que no silêncio fazem ouvir o clamor da sua necessidade. 6. O Vaticano II, como acontecimento histórico, constitui o maior evento eclesial do século XX. Pelas intuições que teve e documentos que elaborou. Pelas sensibilidades que reuniu e correntes que congregou. Pela animação renovadora que suscitou nos cristãos e pela esperança que fez germinar em tantas pessoas de boa vontade. Mas sobretudo por ser a epifania do Espírito que decididamente marca um novo ritmo à Igreja para acertar o passo com a marcha da história e expressar de forma mais eficaz a sua solidariedade com toda a humanidade, sobretudo a empobrecida, fragilizada e indefesa. Os padres conciliares descobriram “o que o Espírito tinha para dizer à Igreja” por meio da oração insistente, da paciência histórica, do diálogo persistente, da organização funcional, da caminhada em conjunto, do apoio colaborante de muitos cristãos e seus movimentos ou comunidades. Realizaram assim uma experiência modelo que actualiza o episódio do cenáculo Pentecostal e aponta uma via a percorrer pelos discípulos de Jesus chamados a serem apóstolos: a sinodalidade eclesial. A via sinodal testemunha o estilo da mensagem cristã no presente e abre caminhos de futuro. O magistério, sobretudo com Paulo VI, assume-o de forma clara e persuasiva. O mesmo fazem muitos bispos e superiores de institutos de vida consagrada. Também alguns párocos e responsáveis de associações laicais, procurando tirar partido da organização participativa e do espírito de corresponsabilidade. É certamente uma das expressões mais qualificadas da actualidade do Vaticano II e da sua actualização sempre indispensável e, quando chegar a hora, da realização de um novo concílio ecuménico. Georgino Rocha, Pres. Comissão da Cultura de Aveiro