ACP e o Catolicismo Português do Século XX

O aparecimento da Acção Católica Portuguesa (ACP) insere-se num contexto de recomposição do catolicismo português, marcado decisivamente pelo contributo que o Concilio Plenário Português (1926) trouxe à Igreja em Portugal, recentemente confrontada com o radicalismo republicano. Nesse contexto, a necessidade de união dos católicos por motivos de recuperação religiosa e de conteúdos políticos fez com que, os Bispos assumissem uma centralidade eclesial e social, capaz de lhe dar uma autoridade católica na sociedade com elevada e verdadeira expressão.

Estas realidades nacionais inseriam-se no contexto da Igreja Universal, pois as orientações de Pio XI eram definidas, desde a origem do seu pontificado (1921), a partir da vigorosa proposta de um projecto de restauração da ordem social cristã, apresentando a Acção Católica (AC) como uma nova proposta de apostolado, que de modo crescente se foi institucionalizando nos diversos países de tradição católica, como Itália (1923), Polónia (1925), Espanha (1926), Croácia, na Jugoslávia e Checoslováquia (1927) e na Áustria (1928).

Apoiando os esforços dos Bispos portugueses, Pio XI dirigiu uma carta ao Cardeal-Patriarca de Lisboa a 10 de Novembro de 1933, a qual é referência decisiva da ACP. Nesta carta, Pio XI considerava «o apostolado dos fiéis» como instrumento adequado para fermentar cristãmente a sociedade, a qual via muitas vezes a fé, como assunto privado, organizando-se sem o reconhecimento do contributo social que o catolicismo era capaz de oferecer. Para o Papa, a acção dos fiéis «sob a direcção dos seus Bispos, dão o seu concurso à Igreja de Deus e completam, de uma certa maneira, o seu ministério pastoral». O lema da ACP, «cor unum, anima una» exprimia a convicção que a eficácia desta iniciativa dependeria em larga escala da organização unitária e do comando unificado, que devia actuar em forma de corpo, na sociedade e no Estado, sobretudo nas suas pretensões hegemónicas e anti-religiosas.

Pio XI estendia a actuação da AC, também à assistência espiritual e material dos operários, à formação religiosa e moral das crianças e dos jovens e à fundação e divulgação da «boa imprensa».

Baseando-se nesta «Carta Magna» de Pio XI, os Bispos portugueses promulgaram as Bases Orgânicas da AC a 16 de Novembro de 1933. Afirmava-se neste momento uma estratégia de grande mobilização dos católicos a nível social e religioso, com a finalidade de se proceder a uma «nova cruzada de reconquista cristã de Portugal», através de uma forte presença do catolicismo na sociedade. Passados dez anos, em 1943, o Papa Pio XII apresentou a encíclica Mysticis Corporis Christi, cuja teologia do Corpo Místico de Cristo foi assumida pela ACP, enquanto espiritualidade de uma organização que se queria assumir cada vez mais como movimento religioso.

A institucionalização da ACP verificou-se no contexto sociopolítico da afirmação do Estado Novo, a qual remetia a intervenção católica para o campo estritamente religioso e sócio-caritativo. Deste modo, a AC ao pretender dar consistência e melhor organização às actividades católicas já existentes, formou uma escola de militantes capazes de intervir nos diversos meios que constituam a sociedade, de modo a evangelizar as populações, acabando por participar, como elemento socialmente valioso, no projecto de restauração nacional do Estado Novo.

A existência da AC nunca figurou na Concordata de 1940, apesar de se saber que foi ponderada a sua referência num protocolo adicional, mas que de facto nunca chegou a ser realizado. O facto de não possuir personalidade jurídica própria, fez com que a AC tivesse de encontrar a legitimidade necessária para as suas actuações, numa articulação directa com hierarquia católica, através de um Bispo que presidia à Junta Central e de Assistentes Eclesiásticos aos diversos níveis organizativos (nacionais, diocesanos e paroquiais).

Esta estrutura evidenciou o grande peso da hierarquia, produzindo-se o controlo directo da acção dos fiéis leigos pelos Assistentes Eclesiásticos; sublinhando-se ainda a fronteira entre o «político» e o «religioso», expresso nas suas bases orgânicas ao afirmar que: «A ACP actuaria fora e acima de todas as correntes políticas, sem deixar de reivindicar e defender as liberdades da Igreja».

Foram os diversos entendimentos sobre o que se entende por «políticas» e como deve ser construída a relação da Igreja com estas, que justificaram alguns posicionamentos por parte das diversas sensibilidades e protagonistas do Catolicismo português, surgindo mesmo como elemento diferenciador da Igreja portuguesa nas décadas de 30 a 70.

A concepção e a organização de uma AC integrada, totalizante, centralizada e fortemente hierarquizada perdurou durante as três primeiras décadas da sua existência. Posteriormente o Concílio Vaticano II (1926-1965) aprofundou e desenvolveu a natureza e a missão dos leigos na Igreja e no mundo, contribuindo para o reforço da «indispensável unidade da ACP e a legítima autonomia dos Movimentos Apostólicos que a integram».

Estes tempos novos fizeram com que o Episcopado, em 1965, considerasse necessário «estudar a oportunidade e os processos de actualização da ACP», entregando simultaneamente a direcção da AC a um leigo, através do cargo de Secretário Geral. A 24 de Junho de 1971, o Episcopado aprovava, a título experimental, um conjunto de princípios básicos, por um período de cinco anos e em 1976, suspendia a AC como estrutura unitária.

Com o desmembramento da AC verificou-se a uma reformulação progressiva dos vários movimentos surgidos como fruto das suas actividades. Assim, os organismos masculinos e femininos do meio operário deram origem a movimentos mistos, mantendo todavia os nomes de LOC e JOC; os organismos adultos dos meios rurais formaram a AC Rural e os de jovens originaram a Juventude Agrária e Rural Católica. Os movimentos dos meios independentes formaram a AC Independente e a antiga JEC e JUC dos estudantes, na ocasião já movimentos mistos, fundiram-se, em 1982, no novo Movimento Católico de Estudantes. Há ainda outros grupos em restruturação.

O reconhecimento de cada uma destas organizações enquanto Movimentos de AC iniciou em 1976 e não aconteceu de modo fácil e imediato, antes exigiu a aprovação interna de novos estatutos e o seu reconhecimento pelo Espiscopado, por vezes em processos de diálogo exigente e até de momentos difíceis de conflituosidade interna.

Concluímos, com um olhar retrospectivo da ACP e verificamos o contributo que proporcionou através dos seus diversos organismos à dinamização e transformação de comportamentos e de mentalidades, proporcionados também pela troca de experiências que os contactos internacionais proporcionaram. Em várias das suas fases foi também uma escola de “leaders” em vários campos da sociedade e ao longo de várias gerações, tendo tido uma elevada capacidade de oferta de boa formação.

A metodologia e a sua dinâmica de reflexão foram de grande significado para a Igreja Católica, contribuindo para a evolução das suas concepções pastorais.

A atenção que a ACP soube dar a certos meios descristianizados, motivou a realização de vários inquéritos e análises que deram origem a diversos estudos de sociologia religiosa. Através desta preocupação pela análise da realidade e das mutações tornou-se experiência inspiradora da teologia dos «Sinais dos tempos» que o Concilio Vaticano II haveria de consignar.

A actual cultura católica, com características mais indutivas, mais participativas e valorativas das experiências cristãs do quotidiano e mais integradora das vivências sociais e pessoais, com a consequente actualização das «realidades terrestres», recebeu muitos contributos do processo pedagógico utilizado pela AC para a transmissão da experiência Religiosa, bem entendida no método da «revisão de vida» e na metodologia analítica e actuante do «ver-julgar-agir».

Senra Coelho, Professor no Instituto Superior de Teologia

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Agência ECCLESIA

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