Isabel Vale é diretora do Serviço Pastoral a Pessoas com Deficiência criado pela Conferência Episcopal Portuguesa em novembro de 2010. Nos dias 17 e 18 o SPPD promove a peregrinação jubilar das pessoas com deficiência ao Santuário de Fátima e espera que este acontecimento seja uma ocasião de mudança na forma como a Igreja Católica acolhe e integra 17% da população portuguesa nas comunidades cristãs, que em muitos casos tem permanecido à margem
Agência Ecclesia (AE) – Em que circunstâncias surge o Serviço Pastoral a Pessoas com Deficiência (SPPD)
Isabel Vale (IV) – Surge da vontade maravilhosa e férrea de Alice Caldeira Cabral que, tendo um filho com uma deficiência grave e pertencendo ao Movimento Fé e Luz, não se conformava por não haver um serviço da Igreja Católica em Portugal que tomasse a sério esta problemática.
AE – Sem esse serviço, as pessoas com deficiência eram esquecidas na pastoral da Igreja Católica?
IV – Não propriamente esquecidas, porque há bastantes anos há dois movimentos da Igreja Católica para pessoas com deficiência: a Fraternidade Cristã de Doentes Crónicos e Deficientes Físicos e o Movimento Fé e Luz, que já tem 40 anos em Portugal (a Fraternidade tem mais). São movimentos das pessoas com deficiência e com pessoas com deficiência.
Em causa estava era um olhar diferente: como é que na Igreja acolhemos e ouvimos as pessoas com deficiência. E aí é que havia uma grande desatenção, uma vez que apenas existiam comunidades dos movimentos, que se implementaram aqui e acolá (no Norte, por exemplo, as comunidades Fé e Luz têm crescido muito por causa da experiência dos seminaristas que, durante um ano no tempo de formação, acompanhavam uma comunidade Fé e Luz).
AE – A primeira aposta do SPPD foi, antes de tudo, sensibilizar as lideranças pastorais para este setor?
IV – Claramente! Sendo um serviço pastoral, dirigimos-mos aos agentes de pastoral que são, de alguma maneira, os párocos. Mas isso depende sobretudo da formação!
17% da população portuguesa é deficiente
AE – De que população estamos a falar?
IV – De acordo com o Eurostat, 17% da população portuguesa tem alguma deficiência (2% desses têm alguma incapacidade por causa da idade). Esta é a média europeia e Portugal não está fora. É uma percentagem igual à taxa de pobreza e superior à dos desempregados. São realidades que, na sua grande dimensão, são completamente esquecidas na sociedade, nomeadamente na Igreja.
Grande parte dos pobres são pessoas com deficiência, porque não têm capacidade de se autossustentar, e o mesmo se passa com os desempregados. Por isso, quando falamos em determinadas faixas da sociedade, não estamos a identificar aí as pessoas com deficiência.
AE – São números que desafiaram a Conferência Episcopal para criar o SPPD?
IV – Penso que foi a partir da pressão da Alice Caldeira Cabral que se foi gerando uma consciência na Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) para este tema. O senhor D. Carlos Azevedo teve um papel muito importante porque ele próprio, enquanto pároco, tinha acompanhado comunidades Fé e Luz e estava na Comissão Episcopal deste setor, a da Pastoral Social. Ele fez a proposta à CEP da criação deste serviço que, para além do apoio, teve a manifestação da preocupação por parte de alguns bispos que nos disseram: “isso na minha diocese é um problema grave e precisamos de instituir esse serviço”.
AE – Como abordar este setor da pastoral, que estratégias para uma pastoral com pessoas com deficiência?
IV – O problema que se prende com a deficiência é a sua diversidade, por um lado, e por outro, saber como nos situamos face à deficiência. Será que as pessoas com deficiência precisam do nosso olhar solidário dando-lhes coisas? Ou, pelo contrário, são cristãos batizados de pleno direito, que têm um papel ativo que nós temos de ouvir e acolher?
AE – Mais do que destinatários deste serviço, são os seus protagonistas…
IV – É evidente! Nas diversas equipas há pessoas com deficiência, que também são os protagonistas deste serviço.
AE – Como foi a implantação deste serviço nas várias dioceses?
IV – Costumo dizer: “dêem-me uma alavanca e um ponto de apoio e eu levantarei o mundo”. A alavanca é este serviço pastoral. Só nos faltam pontos de apoio nas 20 dioceses, onde temos senhores bispos que se têm visto aflitos para encontrar um ponto de apoio. Na Guarda, por exemplo, tem sido o próprio bispo diocesano o ponto de apoio e 45 pessoas da diocese vão à peregrinação nacional, a Fátima. Depois, as mais de 3000 paróquias: só precisávamos de uma pessoa em cada paróquia.
AE – Mas porque é difícil essa mudança: há indiferença em relação às pessoas com a deficiência?
IV – O Jean Vanier diz que também há o medo de olhar. Não é só a diferença, que é muita e é o pior pecado, como diz o Papa Francisco.
Indiferença e medo
AE – Trata-se de ter medo da ameaça da deficiência?
IV – Penso que é o medo de enfrentarmos a nossa finitude e a nossa limitação. Todos nos damos conta de que somos finitos e limitados, somos frágeis e a vida ameaça-nos com a fragilidade, até à fragilidade última que é a morte. Na sociedade, por outro lado, prevalece o ídolo da perfeição.
AE – Que enriquecimento encontramos na deficiência?
IV – As pessoas com deficiência querem ser protagonistas do seu destino, da sua voz na Igreja, têm dons para nos dar, têm capacidade de se exprimirem em formas diferentes. O que é difícil para a Igreja, que gosta de tudo muito organizado. Se nos deparamos com uma cadeira de rodas e é preciso pegar nela ao colo para subir três degraus, isso já nos desorganiza e é mais fácil dizer “fique na rua”. Mas não haverá três rapazes ou raparigas que peguem na cadeira de rodas e a coloquem onde é preciso? Claro que é preciso haver acessibilidades, rampas… Mas, no limite, temos braços, coração e cabeça para resolver os problemas.
AE – E essa é a grande conversão, dos corações, mais do que dos espaços?
IV – São as duas necessárias! Quando se convertem os espaços, verifica-se que o que é bom para as pessoas com deficiência é bom para toda a gente. Por exemplo rampas para levar um carrinho de compras ou de criança ou o elevador para subir uns andares com compras…
A acessibilidade é para todos e humaniza o mundo. Este é um dos exemplos do bem que as pessoas com deficiência nos podem ensinar: o que é bom para nós é bom para vocês! Vocês andam a perder. A relação entre todas as pessoas leva ao que nunca tínhamos imaginado e ajuda a concretizar sonhos!
AE – Em quantas dioceses está o SPPD?
IV – Está formalizado, com equipas diocesanas, em Bragança-Miranda, Algarve, Portalegre-Castelo Branco e Lisboa.
AE – As outras dioceses não têm as portas fechadas ao assunto?
IV – Não! Há muitas outras dioceses que vêm à peregrinação a Fátima: da Diocese de Angra vêm 7 pessoas, um grupo grande de Vila Real, 55 pessoas de Viseu, 45 da Guarda, 50 de Bragança, o Porto e Braga vêm inseridos na Fraternidade e em comunidades Fé e Luz, por ser mais fácil a organização, do Algarve vêm também 50 pessoas, Évora, Santarém, etc.
Peregrinação jubilar das pessoas com deficiência ao Santuário de Fátima
AE – Que relevância tem esta Peregrinação jubilar das pessoas com deficiência ao Santuário de Fátima?
IV – Vai ser um marco para sensibilizar, envolver e procura de caminhos. É mesmo uma peregrinação! Pusemo-nos a caminho há dois anos para chegar a este número de participantes: 400. Queremos que cada um participe como pode. E sabemos que é tudo muito caro: os transportes adaptados, que exigem apoio das câmaras, das instituições e esforço para contornar os obstáculos que surgem.
Há um mês e pouco os vários grupos começaram a enviar propostas de participação. E nós queremos que todos participem, que ninguém fique de fora.
AE – A peregrinação pode ajudar à formalização do SPPD nas restantes dioceses?
IV – Sim. Há grupos que instituíram uma comissão “ad hoc” para a peregrinação para, num segundo momento, pensarem na criação das equipas. Creio que esta peregrinação pode ser uma forma de se encontrarem os “pontos de apoio” que são necessários.
AE – O objetivo do SPPD é considerar igualmente todas as pessoas nas propostas pastorais das comunidades?
IV – Igualdade tem de significar tratar igual o que é igual e diferente o que é diferente. É necessário reconhecer as diferenças e, reconhecendo-as, não excluir ninguém por ser diferente. O que nem sempre é fácil, porque muitas vezes dizemos “isto é igual para todos!” Igual de oportunidades e de reconhecimento, mas as participações podem ser diferentes, a maneira de exprimir é diferente, assim como o diálogo e o que se pode esperar de cada um.
AE – Como se deve enquadrar a participação nos sacramentos das pessoas com deficiência?
IV – A participação nos sacramentos prende-se à pertença e à vivência na Igreja. É importante haver uma catequese adaptada, que os catequistas tenham uma formação. E também importante que não fiquem perdidas as experiências interessantes de integração de crianças ou adultos que já existem. E esse é um dos objetivos do nosso serviço: recolher informação, experiências. Como não queremos que cada pessoa com deficiência fique sozinha, também não queremos que os catequistas fiquem sozinhas.
AE – Mas como encaminhar as pessoas com deficiência no acesso aos sacramentos?
IV – Se alguém se preocupou em ir ao encontro das pessoas com deficiência foi Jesus Cristo, que foi ao encontro dos cegos, dos surdos, dos leprosos…
Podemos ter um olhar sobre as capacidades de compreensão de cada um de nós acerca dos sacramentos ou assumirmos que o sacramento é um sinal eficaz da graça. E nesse caso, a eficácia não está na capacidade intelectual de quem o recebe, mas em Nossa Senhor Jesus Cristo.
Se a participação de uma criança na missa é a sua capacidade de estar muito controlada e ter o comportamento esperado, há crianças que nunca vão à missa. É necessário que as comunidades reconheçam uma criança ou um adulto e a sua forma particular de se exprimir, nem que seja com um grito em determinada altura da missa, que toda a gente acaba por reconhecer, como o momento mais importante onde se exprime como pode.
Percebe-se, nessas ocasiões, que essa pessoa é sacramento para a comunidade, é presença de Jesus na comunidade.
Não há nada do ponto de vista formal na Igreja Católica que exclua uma pessoa com deficiência. O complicado é gerir as informações estando distantes, uma vez que à medida que conhecemos as pessoas com deficiência, tudo se resolve.
AE – Que projetos tem o SPPD, para além do desejo de, a breve prazo, as equipas diocesanas possam estar a funcionar?
IV – Há um aspeto muito importante: o papel e a responsabilidade dos meios de comunicação social. As referências e a ajuda da Ecclesia, por exemplo, tem tido muito importante! Temos tido uma grande proximidade com os meios de comunicação social, e ainda bem! Obrigado!
Depois, temos o exemplo de organismos internacionais que nos podem inspirar, nomeadamente a Conferência Episcopal Italiana, que tem um departamento para pessoas com deficiência em cada Comissão Episcopal, onde o catecismo está disponível com todos os tipos de comunicação, na mesma edição, em braile e também na linguagem dos símbolos, que permite a participação de outras pessoas.
Depois, o Santuário de Lourdes tem um serviço permanente de acolhimento a pessoas com deficiência muito interessante que seria bom ver replicado em Fátima. Eles estão disponíveis par anos ajudar!