Abusos sexuais, justiça e perdão

Pedro Vaz Patto, Diocese de Lisboa

Foto Agência Ecclesia/PR

Falar de perdão a propósito dos crimes de abusos sexuais de crianças e adolescentes tem suscitado grande incompreensão, e até escândalo.

Para afastar essa incompreensão, é de sublinhar, antes de mais, que, na perspetiva da doutrina cristã, o perdão não substitui a justiça (como a caridade não a substitui), pressupõe-na e vai para além dela.

Precisamente a propósito desses crimes, foram marcantes as palavras de Bento XVI na sua visita a Portugal, em 2010: « …a maior perseguição da Igreja não vem de inimigos externos, mas nasce do pecado na Igreja, e (…) a Igreja, portanto, tem uma profunda necessidade de re-aprender a penitência, de aceitar a purificação, de aprender por um lado o perdão, mas também a necessidade de justiça. O perdão não substitui a justiça.»

Sobre a relação entre a justiça e o perdão, é notável a mensagem, de São João Paulo II para o Dia Mundial da Paz de 2002 Não há Paz sem Justiça, não há Justiça sem Perdão. Nela se afirma:

«Muitas vezes me detive a refletir nesta questão: qual é o caminho que leva ao pleno restabelecimento da ordem moral e social tão barbaramente violada. A convicção a que cheguei, raciocinando e confrontando com a Revelação bíblica, é que não se restabelece cabalmente a ordem violada, senão conjugando mutuamente justiça e perdão. As colunas da verdadeira paz são a justiça e aquela forma particular de amor que é o perdão. (…) Por isso, a verdadeira paz é fruto da justiça, virtude moral e garantia legal que vale sobre o pleno respeito de direitos e deveres e a equitativa distribuição de benefícios e encargos. Mas, como a justiça humana é sempre frágil e imperfeita, porque exposta como tal às limitações e aos egoísmos pessoais e de grupo, ela deve ser exercida e de certa maneira completada com o perdão que cura as feridas e restabelece em profundidade as relações humanas transformadas. (…) O perdão não se opõe de modo algum à justiça, porque não consiste em diferir as legítimas exigências de reparação da ordem violada, mas visa sobretudo aquela plenitude de justiça que gera a tranquilidade da ordem, a qual é bem mais do que uma frágil e provisória cessação das hostilidades, porque consiste na cura em profundidade das feridas que sangram nos corações. Para tal, justiça e perdão são essenciais (n. 2-3)».

Este tema da relação entre a justiça e o perdão é também abordado na encíclica do Papa Francisco Fratelli tutti.

Esta encíclica diz-nos que «a verdade, a misericórdia e a justiça são essenciais para construir a paz e cada uma delas impede que as restantes sejam adulteradas» (n. 227). «Amar a todos significa amar também o opressor, mas tal não significa consentir que este continue a oprimir ou levá-lo a pensar que é aceitável o que faz; amar corretamente é procurar que ele deixe de oprimir, tirar-lhe o poder que não sabe usar e que o desfigura como ser humano; a justiça é guardar a dignidade da vítima, uma dignidade que lhe foi dada por Deus; o perdão não anula as necessidades da justiça, reclama-as» (n. 241). Por isso, o perdão não conduz à impunidade: «a justiça procura-se de modo adequado só por amor à própria justiça, por respeito das vítimas, para evitar novos crimes e visando preservar o bem comum, não como a suposta descarga do próprio rancor. O perdão é precisamente o que permite buscar a justiça sem cair no círculo vicioso da vingança nem da injustiça do esquecimento» (n. 252).

Relembra também esta encíclica que o perdão não é algo que possa ser imposto às vítimas. Na esfera pessoal, alguém pode renunciar a exigir um castigo, mesmo que a sociedade e a justiça o busquem legitimamente. Mas ninguém pode arrogar-se o direito de perdoar em nome dos outros. «É comovente ver a capacidade de perdão de algumas pessoas que souberam ultrapassar o dano sofrido, mas também é humano compreender aqueles que não o podem fazer. Em todo o caso, o que nunca se deve propor é o esquecimento» (n. 246). Mas o perdão é sempre possível: «Mesmo que haja algo que jamais pode ser tolerado, justificado ou desculpado, todavia podemos perdoar» (n. 250). E, se o perdão é gratuito, «então, pode-se perdoar até a quem resiste ao arrependimento e é incapaz de pedir perdão» (n. 250).

Estes princípios valem para todos os pecados e crimes, também para os de abuso sexual de crianças e adolescentes.

Há que respeitar, antes de mais, as exigências de justiça, as exigências de «reparação da ordem violada»: reconhecer a vítima como tal; reparar e compensar, na medida do possível, os danos que esta sofreu; cumprir uma pena (no âmbito civil e canónico) adequada à gravidade do crime cometido.

De modo especial nos crimes de abusos sexual, as vítimas podem ter dificuldade em perdoar e isso deve ser respeitado, porque o perdão não pode ser imposto.

Mas o perdão tem sempre um efeito libertador, também para a vítima. Permite «a cura em profundidade das feridas que sangram nos corações», permite o restabelecimento de laços que se quebraram (também os laços com a Igreja quando os crimes ocorreram no seu interior), um recomeço, uma nova vida.

Neste sentido pode ser invocado o nosso sistema penal, que rejeita penas de duração perpétua para quaisquer crimes e acredita na reabilitação de qualquer delinquente. E podem ser invocados muitos episódios do Evangelho: do filho pródigo, da conversão de Zaqueu, da mulher adúltera ou do bom ladrão.

Pedro Vaz Patto

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Agência ECCLESIA

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