Pe. Hugo Gonçalves, Diocese de Beja
A Eucaristia é a “fonte e ápice de toda a vida cristã”, como nos ensina o Concílio Vaticano II. É nela que a Igreja encontra o coração do seu ser, o memorial vivo da Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus Cristo. No entanto, infelizmente, nem sempre esta celebração é conduzida com a reverência, fidelidade e sobriedade que o seu mistério exige. Basta, por vezes, sintonizar uma transmissão televisiva de uma Missa dominical para nos depararmos com situações que não são meramente “criativas”, mas verdadeiros abusos litúrgicos que desfiguram o sentido da Liturgia.
Liturgia ou Teatro?
Não é raro encontrar Missas onde a solenidade foi substituída por uma espécie de encenação, com trajes de época, figurantes e gestos que mais pertencem a uma peça teatral do que ao culto divino. A presença recente, em plena celebração, de encenações envolvendo figuras históricas como o Marquês de Pombal — homem com um historial ambíguo perante a Igreja, sobretudo no que toca à perseguição dos jesuítas — levanta sérias questões sobre o discernimento pastoral que orienta tais escolhas.
Ainda mais perturbador é quando tudo isto culmina com a distribuição de vinho do Porto no interior da igreja, como se a assembleia se encontrasse num evento social e não diante do Santo Sacrifício do altar. Esta dessacralização não só banaliza o mistério da fé, como escandaliza os fiéis e compromete a unidade da Igreja.
Outros exemplos incluem a reprodução da Última Ceia com pão e vinho dispostos sobre uma mesa “à moda de Jerusalém”, com o celebrante e ministros sentados em torno, como se se tratasse de uma peça dramatúrgica. Há também quem tome liberdades graves na seleção de leituras, orações eucarísticas ou orações da coleta, substituindo textos litúrgicos aprovados por composições pessoais ou recolhas sem critério litúrgico, teológico ou eclesial.
Por fim, uma das práticas mais alarmantes é a chamada “comunhão self-service”, onde os fiéis se servem diretamente da Eucaristia sem a devida distribuição por parte do ministro ordenado ou ministro extraordinário devidamente instituído. Tal prática fere profundamente a disciplina litúrgica e a fé na Presença Real de Cristo na Hóstia Consagrada.
O que nos diz a Igreja?
A Constituição Sacrosanctum Concilium, do Concílio Vaticano II, estabelece com clareza que:
“Ninguém, mesmo que seja sacerdote, acrescente, tire ou mude por sua iniciativa qualquer coisa na Liturgia.” (SC, 22)
Este princípio não é uma rigidez institucional, mas uma defesa da unidade eclesial e da fidelidade ao Mistério. A Liturgia não é propriedade de nenhum padre, comunidade ou grupo. Ela é ação de Cristo e da Igreja, e como tal, deve ser celebrada segundo as normas estabelecidas pela autoridade competente.
A declaração Dominus Iesus (2000), da Congregação para a Doutrina da Fé, sublinha a centralidade de Cristo e a singularidade da Igreja na economia da salvação. Mesmo sendo um documento de índole doutrinal mais ampla, tem implicações claras para a Liturgia, ao recordar que:
“A Igreja não tem origem humana, mas é fundada por Jesus Cristo como sacramento universal de salvação.” (DI, 1)
Logo, deturpar a Liturgia é deturpar a expressão sacramental da própria fé. Introduzir elementos arbitrários, inventar orações ou teatralizar a Missa não são gestos inofensivos, mas formas de obscurecer a centralidade de Cristo e a natureza sobrenatural do que está a acontecer no altar.
Há quem justifique estas inovações como expressão de criatividade pastoral ou de inculturação. No entanto, como lembra a Instrução Redemptionis Sacramentum (2004), da Congregação para o Culto Divino:
“Os abusos litúrgicos não são uma expressão autêntica de liberdade, mas uma infração contra a natureza da Liturgia.” (RS, 7)
A verdadeira inculturação e adaptação litúrgica só pode ser feita dentro das balizas traçadas pela Igreja e sempre com aprovação da Santa Sé, quando necessário. A criatividade não pode ser um álibi para a desobediência.
A Eucaristia não é um palco, nem um pretexto para o exibicionismo espiritual ou cultural. É o memorial vivo do Sacrifício de Cristo, a presença real do seu Corpo e Sangue, a comunhão do Céu com a Terra. Os abusos litúrgicos — sejam eles fruto de ignorância, vaidade ou ideologia — não só desfiguram este mistério, como põem em risco a fé dos fiéis.
Recuperar o sentido do sagrado, da obediência e da dignidade litúrgica não é voltar ao passado, mas reencontrar o centro. Como nos recorda Bento XVI, “a Liturgia não vive de invenções, mas de fidelidade à Igreja e à sua Tradição viva”.
Que os nossos altares deixem de ser palcos, e que, em cada Missa, brilhe apenas a luz de Cristo.
Pe. Hugo Gonçalves
Diocese de Beja
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