Abusos/Igreja: «Dizer ‘os casos estão prescritos, não há nada a fazer’ seria uma machadada na reputação» – Ricardo Barroso

Presidente da Sociedade Portuguesa de Psiquiatria e Psicologia da Justiça acredita que o processo vai permitir à Igreja mudar a sua imagem e reputação, se avançar com as medidas certas ao nível da prevenção e formação, respeitando e valorizando as vítimas

Entrevista conduzida por Ângela Roque (Renascença) e Octávio Carmo (Ecclesia)

Como é que viu a iniciativa de a Igreja pedir esta investigação a uma comissão independente? E como é que acompanhou o processo e a metodologia que foi seguida?

Tenho uma perspetiva muito positiva do trabalho que foi feito pela Comissão, e tenho também uma opinião muito positiva pelo facto de ter sido organizada e proposta nos moldes em que foi, nomeadamente, por ter sido sempre destacada a independência da Comissão e de todo o processo.

Há um aspeto que gostava de destacar: estas comissões têm vindo a surgir em vários países, a ideia é perceber o que se passa em relação às circunstâncias de abuso sexual cometidas, nomeadamente por parte de elementos da Igreja Católica. E vêm procurar – de uma forma lenta, provavelmente – fazer justiça ao que se tem passado nas últimas décadas, e que vamos conhecendo, e que é um problema transversal e que podemos afirmar, neste momento, que se tornou sistémico.

Isto acontece em todas as confissões religiosas, têm vindo a ser detetados casos tanto em igrejas católicas como em igrejas protestantes. Neste momento há uma discussão pública muito intensa nos Estados Unidos em torno da Igreja dos Mórmons, como é habitualmente conhecida – a Igreja de Jesus Cristo dos Santos Últimos Dias – em relação um conjunto de abusos que sucederam ao longo dos anos. A Igreja Metodista tem também alguns problemas noutros países, e a Igreja Batista está a braços com vários problemas no Canadá e nos EUA. Isto é transversal a muitas outras confissões religiosas. Isto é transversal a muitas confissões, porque as igrejas funcionavam da mesma forma. Havia um motivo principal, a proteção da reputação da Igreja, e isso foi sendo considerado prioritário, em detrimento do impacto que isto poderia ter nas vítimas.

 

Independentemente do contexto da comunidade religiosa, e do contexto nacional, é possível identificar isso?

É possível identificar, dentro destas igrejas e contextos, circunstâncias muito próprias que iam mantendo muitos destes comportamentos de agressão sexual. Por um lado, a prioridade sempre foi a reputação da Igreja e, com isso, todas as confissões, de alguma forma, descredibilizavam as vítimas. Havia até alguma intimidação. Quando muito, havia o afastamento de padres, ou pastores, para outras igrejas, muitas vezes até para missões fora do país – África, Ásia, América Latina.

Depois havia uma circunstância associada à própria fé das pessoas. Em todas estas confissões religiosas destaca-se muitas vezes o perdão, como pilar da fé. Tudo era resolvido com o argumento do perdão – ou que haveria algum problema em quem não perdoasse.

Eu recordo, pelo menos, uma das pessoas que cheguei a ouvir, há uns anos, que dizia que, a partir de certa altura, a mãe insistiu que tinha havido determinado problema, houve uma espécie de admissão de que o problema tinha ocorrido, mas que tinha de se ultrapassar, com os argumentos todos centralizados na questão da Igreja e da importância do perdão. Houve um momento em que ela não estava a conseguir perdoar, e sentiu uma inversão da responsabilidade.

 

Este trabalho que foi feito em Portugal, pela Comissão Independente, serviu também para fazer essa inversão e colocar o ónus em quem abusou, e não nas vítimas?

Eu creio que sim, ou seja, o trabalho que a Comissão faz – reconhecendo o valor profissional das pessoas que a integram -, creio que é um trabalho correto, isento e independente. E que todas sabiam que a pressão que iam ter era enorme, e que iria haver desvalorização das denúncias…

Creio que esse trabalho foi positivo e há aqui também uma estratégia, que me parece que foi interessante e propositada, quando em outubro [2022] foi comunicado numa conferência de imprensa que a Comissão tinha validado 400 e poucos casos. É que há um aspeto no processo de regulação do abuso sexual, em que as pessoas tipicamente sentem muita desconfiança. Vão revelar a quem? Parte muito da perceção que têm, se eventualmente vão ser protegidas, se não vão ser enxovalhadas ou intimidadas, etc. Creio que a Comissão procurou fazer isso bem, ao deixar ficar claro que as pessoas podiam fazer essa denúncia.

Depois, ao anunciarem que havia 400 e poucos casos validados, entendi isso como uma mensagem, na reta final do funcionamento da Comissão, no sentido de dizer que quem estiver com dúvidas em relação a isso, não está só. Creio que foi essa a mensagem. Confesso que tenho alguma curiosidade em perceber o número total de casos que foram detetados, e se nestas últimas semanas e meses não houve até um aumento deste número de casos.

 

Sendo que os casos validados foram os recebidos até ao final de outubro. Ou seja, a Comissão pode ter recebido outros casos posteriormente, mas os que analisaram e serão revelados agora, são apenas os que foram encaminhados até essa altura. Em relação à Igreja Católica, nesta questão dos abusos, fala-se sempre no celibato, há quem insista que é uma das causas para os abusos acontecerem. É um fator relevante, tendo em conta que referiu há pouco que ocorrem noutras Igrejas onde não há a questão do celibato?

É uma boa questão. Isto acaba por ser transversal a muitas outras Igrejas. Obviamente, a discussão em torno do celibato, é um assunto que diz respeito à Igreja Católica e ao seu modo de funcionar, confesso que não tenho opinião sobre isso…

O que é importante destacar é que não há nenhum estudo que nos diga que os abusos sexuais ocorrem devido ao celibato. Temos de ter a noção de que estamos a falar de pessoas. Temos casos de abuso sexual praticados por professores, médicos, as mais variadas profissões, e pais, avós, elementos da família. Não podemos atribuir ao celibato a responsabilidade por este tipo de atos. O que temos é pessoas que, em determinados momentos, têm problemas ao nível da sexualidade. E aqui vai tocar um dos pontos que, para o futuro, parece-me importante olhar: reconhecer que a sexualidade faz parte do ser humano, independentemente de ser religioso ou não, e que em determinados momentos pode haver a necessidade de intervenção.

As próprias religiões, confissões religiosas, têm de ter esta noção de que há pessoas que se envolvem (nas religiões) porque isso lhes permite um maior contacto com pessoas ou famílias mais frágeis, e pode haver esse aproveitamento das situações. O que quero dizer é que há aqui um padrão de funcionamento dos agressores sexuais que tende a ser semelhante, no contexto religioso ou não.

 

Portanto, seja num contexto educativo ou do desporto, o padrão pode ser identificado como sendo o mesmo?

É muito semelhante. Aquela ideia que muitas vezes se tem, de que o agressor sexual é um predador que está ali atrás da esquina, à espera de atacar a vítima. Evidentemente que isso acontecer – e acontece nalguns casos –, mas não corresponde à maioria dos casos, e em especial quando estamos a falar de abuso de crianças e adolescentes.

O que acontece é que há um padrão e uma dinâmica de funcionamento: uma aproximação sucessiva, para ganhar a confiança da criança ou do adolescente, o que fôr mais frágil do ponto de vista emocional, ou tenha menos ligações ao contexto da família, perceber se podem ter uma ascendência sobre a criança.

O processo de abuso, muitas vezes, até é continuado e tem características muito próprias, em termos do funcionamento. A partir de certa altura tende a começar a complicar-se, a haver maior culpabilização da vítima, responsabilizando-a ao mesmo tempo por aquilo que fez. O padrão de funcionamento tende a ser muito semelhante, seja fora da Igreja ou dentro da Igreja.

As circunstâncias em que as Igrejas em si funcionam, de alguma forma, podem proporcionar esse contacto com mais vítimas. Aquelas circunstâncias de que falámos há pouco, da proteção, da própria reputação, do não levantar muitas ondas, ter uma estratégia de descredibilizar as vítimas, essa postura protege o agressor. E muitos deles estavam em contextos onde se sentiam protegidos, porque sabiam que, quando muito, no limite dos limites, podiam apenas ser afastados de onde estavam. A única diferença que eu consideraria – de ser fora da Igreja, ou dentro, vamos dividir assim – era, de facto, as circunstâncias da própria Igreja, que protegiam os agressores.

 

Amanhã teremos uma melhor noção da dimensão dos abusos, e é preciso olhar para o que se segue. O que é que os resultados podem fazer mudar, em primeiro lugar na Igreja, mas também na forma como se olha este fenómeno?

A Igreja Católica em Portugal, na minha opinião, está num momento crucial para marcar a diferença, não só em termos nacionais, que evidentemente é o que importa. Mas creio, sinceramente, que pode marcar a diferença com o que aconteceu em muitos países. Por um lado, é reconhecer que isto aconteceu e, mais importante, reconhecer que isto pode vir a acontecer no futuro. E seguramente vai acontecer no futuro…

Eu costumo dizer que as entidades são como as pessoas: devem reconhecer o erro, procurar que não se repita, e pedir desculpa quando necessário. E este é um aspeto importante. E mais do isso, haver esta preparação para o futuro, com formação interna sobre o que é que é o abuso sexual, os elementos da Igreja Católica perceberem como é que funcionam tipicamente os agressores, que cuidados é que devem ser tomados, e que há pessoas que se envolvem nas igrejas precisamente com este tipo de intenções…

 

O cuidado ao nível da prevenção tem de se uma prioridade?

Não só, mas também. Infelizmente não podemos afirmar, seja em que contexto fôr, que se reconhece o problema e não vai voltar a acontecer. Não acredito. Tem de haver este trabalho de prevenção, assumir que a sexualidade é um tema que tem de ser abordado como qualquer outro, e que as igrejas, pelas suas características, muitas vezes podem levar a que algumas pessoas se envolvam no seu funcionamento, com outro tipo de intenções.

Há um pensamento que muitas vezes surge em muitas igrejas – seguramente já ouviram – que é: ‘aqui não há disso’. Seja na igreja da aldeia x, da vila y ou da cidade z, muitas vezes é isto: ‘isso não há cá’. Não, não! Pode eventualmente um dia vir a acontecer! E tem de haver esta formação interna, dos próprios membros da Igreja católica, sobre o abuso sexual, como é que funcionam os agressores, desenvolver planos de segurança, e quando houver queixas, qual é o fluxo e o seguimento que têm de ter. Tudo isto é importante.

 

Falamos muito do acompanhamento das vítimas, que é uma questão central. E o acompanhamento dos agressores, de quem cometeu os abusos? O que é que é preciso fazer? Como é que se pode evoluir neste campo?

É uma boa questão. Creio que também aí tem de ser assumido que podem estar envolvidos em qualquer igreja, e que têm necessidade de fazer este acompanhamento psicológico.

Neste momento existem um conjunto de intervenções que têm vindo a ser testadas com uma eficácia bastante significativa, que permitem que estas pessoas possam recorrer a ajuda técnica, atualmente até online e por vídeo conferência. Aquilo que queremos com muitas destas intervenções, até é ao nível da prevenção primária. E também isto pode fazer parte destas formações internas de que falávamos há pouco: haver um número, um contacto, que é possível que ocorra de forma anónima, mas que haja uma resposta, ‘se lhe acontecer isto e isto, pode recorrer a esta ajuda’.

Com isto, o que pretendemos é que nunca venha a ocorrer o episódio de abuso, é mesmo num nível de prevenção primária.

 

Está envolvido num projeto internacional, de prevenção da pedofilia, o ‘Troubled Desire’, que dá apoio a pessoas que se sintam sexualmente atraídas por menores. Trouxe este programa para Portugal. Em que ponto está?

O programa já está a funcionar. Se consultarem o site www.troubled-desire.com, que tem versão em português, vão encontrar essa informação, e já é possível, através de uma conversa de Chat, totalmente anónima – deixem-se dizer que o site está sitiado no contexto alemão onde, devido a questões legais e do próprio processo, a intervenção é totalmente anónima.

Através de um chat, de um registo que a pessoa pode fazer, encontra uma ajuda psicológica e psiquiátrica também, ou um encaminhamento para uma consulta especializada mais tarde. Portanto, já está a funcionar. No futuro vai ter uma outra vertente, um sistema de inteligência artificial que vai estar associado às próprias respostas, não é um computador que conversa com as pessoas, é um profissional, o que vai é aumentar a velocidade e capacidade de resposta. Desde que o processo está a funcionar em língua portuguesa, temos tido muito mais interações da população brasileira, ou de outros países de língua oficial portuguesa, do que propriamente do contexto nacional.

 

Já apoiaram muitas pessoas?

No espaço de um ano e meio foram 26 pessoas envolvidas no processo de intervenção. Umas só estiveram numa primeira fase, depois as coisas estabilizaram e ficou uma porta aberta para o caso de surgir mais tarde alguma questão. Outras fizeram um primeiro contacto, mas optaram por uma intervenção presencial e foram encaminhadas para especialistas na área. Mas, esta é uma possibilidade de resposta a estas pessoas.

 

Porque, de facto, não há muitas respostas e não será fácil um agressor procurar ajuda…

Não. Aliás, uma das questões que pomos nas primeiras interações que temos é: ‘mas, alguma vez falou sobre isto a alguém?’. E não. E muitas vezes são pessoas casadas, até com bons contactos familiares, mas nunca falaram, nem com irmãos, nem com companheiras ou companheiros, não falaram com rigorosamente ninguém, até porque é um assunto em que claramente há a probabilidade de serem criticados, colocados de lado, das outras pessoas não entenderem.

Na verdade, para quem ouve, este é um assunto muito difícil de ouvir. Pensar em pessoas depravadas do ponto de vista mental, predadores sexuais, a maioria não é, a maioria são pessoas que estão perfeitamente integradas na sua vida pessoal e profissional, têm é um conjunto de conexões sexuais – pensamentos, aquilo que do ponto de vista técnico, chamamos fantasias sexuais – que as ativa para aquele estímulo, que é desviante, não pode acontecer e que necessita de algum acompanhamento para esse controle de impulsos.

 

Antecipando já a divulgação do relatório pela Comissão Independente, e a conferência de imprensa de resposta dos bispos portugueses, acredita que este pode ser um momento de mudança, de viragem?

Acredito que sim, sinceramente. Por um conjunto de mensagens, umas mais claras, outras menos, que foram ocorrendo nos últimos meses, acredito que vai mudar, que se vai começar a olhar para as vítimas mais do que pensar na reputação da Igreja, sendo que essa reputação da Igreja, na minha opinião, vai subir consideravelmente da forma como a Igreja olha para as vítimas. Isto ao longo do tempo, são coisas que demoram décadas, muitas vezes.

Enfim, isto é como as pessoas… a reputação das pessoas demora muito tempo a ser construída e neste momento, claramente, há aqui um impacto na reputação da Igreja Católica, mas seguramente, se forem tomados um conjunto de passos e as pessoas vejam que as vítimas são respeitadas, e há acompanhamento, creio que é muito importante. Se me perguntar o que é que de pior a Igreja pode fazer para estragar isto tudo? Na minha opinião é proteger-se em torno da prescrição dos casos.  Espero que não aconteça. O pior seria dizer ‘os casos estão prescritos, não há nada a fazer’. Seria uma machadada na reputação. Isto infelizmente acontece na criminalidade em geral, e na criminalidade sexual, mas não pode acontecer na Igreja Católica.

 

No caso do Direito Canónico, a prescrição tem uma abordagem diferente da lei civil portuguesa, e é sempre passível de ser contornada. Há uma questão que tem a ver com o facto de a Comissão Independente acabar o seu trabalho, com a apresentação deste relatório. Seria desejável alargar este trabalho, ou um trabalho semelhante ao desta Comissão, de recolha de testemunhos e reflexão, a toda a sociedade portuguesa?

Com certeza que sim. Creio que há aqui um conjunto de lições que vamos aprendendo. Há estudos comunitários que têm vindo a ser feitos nos últimos anos, e vamos conhecendo o terreno desde a adolescência até aos adultos. Vamos conhecendo o fenómeno da violência sexual e a sua ocorrência em Portugal. Este tipo de comissões permite, de uma forma independente, isenta e profissional, outro tipo de acolhimento das próprias queixas.

Neste processo deixe-me reconhecer o trabalho que a APAV (Associação Portuguesa de Apoio à Vítima) tem vindo a fazer nos últimos anos, como instituição e contacto privilegiado, de acolhimento das próprias vítimas, do seu encaminhamento jurídico e acompanhamento técnico, psicológico e psiquiátrico, em alguns casos. Portanto, eu diria que em Portugal já tem vindo a acontecer, há alguns anos, no caso da APAV. Mas, creio que há a necessidade de um trabalho mais apurado do próprio Estado em todo este processo.

No acompanhamento que é feito aos agressores sexuais, uma coisa interessante é que os tribunais – os juízes e os magistrados – ficaram consciencializados e com uma ideia muito mais clara, até pelas formações internas que foram ocorrendo, da necessidade de intervenção psicológica junto destes indivíduos. Ou seja, não era mandá-los para a prisão que ia resolver o assunto. Em muitos casos tem de ser, evidentemente, mas em muitos outros é possível fazer este seguimento na comunidade. O problema é para onde enviar, e aquilo que temos neste momento é uma intervenção que é feita de uma forma muito deficitária. Posso dizer que só nas grandes cidades do país é que vai havendo este acompanhamento, que não existe noutras localidades ou regiões. Este é um problema.

Todo este trabalho que a Igreja Católica está a fazer, e as suas consequências, devem-nos fazer pensar no futuro, reconhecer o que está bem e, evidentemente, alterar para melhor, em termos de acompanhamento técnico.

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