A vida nova de quem contempla as estrelas

Pe. Miguel Peixoto, Diocese de Lamego

Com o aproximar do tempo pascal e o percurso dos desafios de conversão que a quaresma suscita, a vida vai desenlaçando o sentido profundo dos nossos dias. A natureza adormecida, que nos envolve, brota com o vigor da força que se renova e o coração humano pode escutar e voltar a bater ao ritmo da “vida vivente” (cf. D. António Couto, Mensagem para a Quaresma 2025) que o Filho ressuscitado ensina.

Durante muito tempo, transcorremos adormecidos a sucessão do tempo. Vivemos sem fruir dessa “vida vivente”. Deixamos que os nossos dias se agarrem aos ponteiros do relógio sem que o seu movimento tenha um impacto real na terra que pisamos e de que somos feitos. Ocupados e atolados com os nossos afazeres, não experimentamos o que realmente importa. Somos terra levantada que desmoronou, onde o “Ruah” permanece, mas sem habitar e agitar de verdade o coração.

As pausas que o tempo nos instiga deitam por terra a terra que um dia se elevou, descobrindo que afinal não somos mais que pó no meio de um projeto tão pequeno porque apenas nosso. É aí, nesse chão, nessa terra, nesse pó tão ressequido, que a vida pode começar a germinar e, de novo, levantar o que um dia Deus desejou para cada um de nós. É para esse horizonte de impossíveis que Jesus nos levanta, ressuscitando e abrindo, ao pó e terra que somos, a eternidade.

A Comissão Teológica Internacional, a propósito do 1700º aniversário do Concílio de Niceia, apresentou o documento “Jesus Cristo, Filho de Deus, Salvador” onde sustenta que “a ressurreição significa para nós a entrada na vida divina, a humanização e a divinização ao mesmo tempo… e porque ele nos salva como Filho, gerado pelo Pai, esta divinização é filiação adotiva e conformação a Cristo… somos amados e regenerados pelo mesmo amor com que o Pai ama e gera eternamente o Filho” (33).

O húmus de amor divino rebenta na vida em pó que teimosamente queremos manter, mas o amor, que é mais forte do que a morte ou o pecado, faz abrir os olhos à luz que é Jesus. Sabemos quão difícil é contemplar essa luz. Os nossos olhos, demasiado habituados à sombra do pão, da flor ou até mesmo da melodia e conteúdo da poesia, desejam mais, muito mais, porque no fim tudo isso sabe a pouco.

No limiar da Páscoa fazemos caminho, qual transumância filial, para vivermos algo novo que a cinza, o pó e o pecado não deixam saborear. É, então, que a luz do lume novo nos recorda com admiração e espanto a extraordinária maravilha de contemplar a luz das estrelas que não desaparecem com o nosso tempo, mas continuam a brilhar mesmo depois de “mortas”. Precisamos dessa luz que ilumina as trevas de uma vida por terra, para nos erguermos e levantarmos como Cristo na manhã de Páscoa. A nossa vida também pode continuar a brilhar para além da morte, não já como as estrelas, mas alimentada pela luz imortal.

Temos uma “vida vivente” pela frente, uma vida nova para quem contempla a beleza das estrelas, mas nelas não prende o seu futuro, pois está acorado na esperança de quem sabe que o tempo não é tudo, mas a oportunidade de viver eternamente. Tudo isto não é uma fábula ou mera alienação, trata-se de uma vida nova, plena na sua regeneração.

Ainda temos tempo para fazer do nosso tempo, amor à ressurreição. Que a Páscoa não fique enclausurada no dia 20 de abril deste ano, antes abra a “vida vivente” que a luz da nova aurora faz brilhar a cada ser humano que se descobre verdadeiro filho com o Filho. Há muito para perguntar e muito para meditar, pois são tantas as dúvidas que nos assolam e continuam a inquietar. Porém, há algo decisivo que, lembrando Oseias (13,14) e Paulo (1 Cor 15,55), podemos repetir sem recear: “Ó morte, sempre vencedora, onde está agora a tua vitória?”. Esta é a Páscoa da “vida vivente”, esta é a Páscoa de quem se levanta para seguir na terra a Luz Transcendente.

Pe. Miguel Peixoto, pároco de Castro Daire

(Os artigos de opinião publicados na secção ‘Opinião’ e ‘Rubricas’ do portal da Agência Ecclesia são da responsabilidade de quem os assina e vinculam apenas os seus autores.)

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