Homilia do Bispo da Guarda 1. Depois de termos celebrado a alegria do Natal, estamos a iniciar a segunda etapa importante do nosso ano litúrgico. Este é já o início da segunda semana do Tempo comum, que nos acompanhará até ao princípio da Quaresma, este ano colocado no dia 21 de Fevereiro. Coincide o domingo de hoje com o dia mundial do migrante e do refugiado. Na Mensagem para esta jornada Mundial centrada sobre as dificuldades de quem tem de deixar a sua terra, seja por razões de perseguição, seja por razões económicas, o Papa Bento XVI critica principalmente as condições dos campos de refugiados e as dificuldades colocadas ao reagrupamento familiar. Não esquece o drama sobretudo de mulheres e crianças envolvidas na exploração sexual, às vezes por razões de sobrevivências, outras vezes porque vítimas de verdadeiras escravaturas. Lembra também a mobilidade estudantil, chamando a atenção para a necessidade de desenvolver esforços e tomar medidas que permitam a integração cultural e social dos jovens estudantes nos países e culturas onde pretendem cumprir uma parte importante da sua formação científica. Como lembra o Papa na sua mensagem, este 93º Dia Mundial do Migrante e do Refugiado é uma oportunidade propícia para sensibilizar as comunidades eclesiais e a opinião pública para as necessidades e para os problemas, mas também para as potencialidades positivas das famílias migrantes. O que está em causa é criar condições para que a vida de todos e de cada um seja respeitada e os seus direitos promovidos, mesmo longe dos seus ambientes e tradições familiares, culturais e sociais. E porque a vida de cada um constitui em si mesmo um valor que há-de ser tratado acima e para além de todos os condicionamentos económicos, materiais, culturais, sociais ou outros, esta jornada constitui também apelo para que, no centro de todas as decisões, esteja sempre a preocupação fundamental pela defesa e promoção da vida humana. 2. A Palavra de Deus hoje proclamada centra-nos no quadro Bíblico do primeiro milagre de Jesus em Caná da Galileia. Um quadro onde encontramos Jesus e os seus discípulos, por um lado; os noivos, seus familiares e convidados, por outro; e, no meio, a figura de Maria, Mãe de Jesus. A Festa é um valor humano fundamental e com mais razão ainda o é uma festa de casamento. Tudo foi preparado para a Festa, mas chegou um momento difícil, que foi faltar o vinho. Talvez mesmo antes de os noivos, seus familiares e convidados, se aperceberam da dificuldade, Maria, sempre com atenção esmerada ao pormenor das situações, deu conta e tomou a iniciativa de procurar a resposta. Jesus e os apóstolos tinham também sido convidados para a festa e Maria dirige-se a Jesus com plena confiança em que as suas preocupações iriam ser atendidas. E a confiança manteve-se, mesmo depois da primeira resposta de Jesus, que, pelo menos aparentemente, parece não demonstrar a prontidão que seria legítimo esperar para intervir em favor daquela família que começava a estar em dificuldade. Prova disso é a recomendação de Maria aos serventes: “Fazei tudo quanto Ele vos disser”. A grandeza e a importância de Maria esteve, como hoje continua a estar, no gesto de apontar para a pessoa e para a acção salvadora de Jesus. Também essa é a missão da Igreja e de cada um dos cristãos identificados com Cristo pelo Baptismo. Pertence-nos aplanar caminhos para que Jesus continue a realizar o milagre da vida, no meio de nós, no meio do mundo. Apontando para o sacramento do Matrimónio, mas também da Eucaristia e do Baptismo, este primeiro milagre de Jesus é realmente o milagre da Vida que tem na família o seu santuário; da vida em sua expressão terrena e material, mas também da vida que tem a sua fonte em Deus e para Ele se orienta. O mistério da vida remete-nos para a relação com Deus como sua fonte e verdadeira medida. É essa também a mensagem que nos transmite hoje o profeta Isaías, na primeira Leitura. Só quando se deixam revestir pela Justiça Divina, só quando se tornam espelho da Glória Divina e da Salvação também de Deus é que a cidade de Jerusalém e todo o Povo nela representado cumprem a sua missão e vocação. É passando a velha Jerusalém abandonada e deserta para a nova Jerusalém predilecta e desposada que o Senhor do universo cumpre os seus desígnios de amor, tornando-se esposo divino e criador da verdadeira vida. Por sua vez, a vida é, em si mesma, um dinamismo imparável que, partindo da sua fonte em Deus, mobiliza todas as pessoas para projectos comunitários, onde cada um é completado pelos outros e nunca se sente a mais. Pelo contrário, sabe experimentar em si e contribuir para que todos também experimentem a alegria indizível de colocar os seus carismas pessoais ao serviço dos outros e do bem comum da comunidade. É esta a mensagem que hoje nos transmite a passagem da 1ª Carta aos coríntios considerada um dos lugares clássicos, no Novo Testamento, para nos ajudar a contemplar a beleza da unidade feita de diversidades e também a consciência de que a grandeza do homem que vive é colaborar com Deus na obra maravilhosa de levar a história à sua máxima perfeição. É assim que o valor de vida humana se mede pelas capacidades pessoais de cada um, mas mais ainda pelo desenvolvimento destas capacidades em projectos que coloquem cada um de nós em cooperação e em diálogo com os outros seres humanos; e principalmente quando colocamos as nossas capacidades ao serviço de Deus e do Seu plano de reconstrução de história humana. Esta é, sem dúvida, a medida máxima da vida que nos foi dada para vivermos no tempo e na eternidade. É por isso que, diante de qualquer vida humana, eu tenho de respeitar e valorizar principalmente a sua vocação de eternidade e tirar ilacções para toda a sua trajectória desenrolada no tempo. 3. Tenho, assim, todas as razões para respeitar, defender e promover a vida humana, qualquer que seja a sua expressão dentro do tempo. Mas a principal razão é que, diante de qualquer vida humana, que está a ser vivida no tempo eu sinto-me a tocar a eternidade, a tocar a fonte divina e a meta também em Deus dessa vida. Por isso quando alguém se lembra de referendar a vida, chamando os cidadãos a pronunciarem-se sobre se uma vida humana indefesa e a precisar de máxima protecção, ainda no ventre de sua mãe, pode ser eliminada, a resposta só pode ser “não”. Porque a cultura da vida, contrariamente à cultura da morte, é a única que pode dar futuro à humanidade; porque só seremos verdadeiramente felizes, criando condições para que os outros também sejam felizes; porque ninguém pode ser feliz à custa da infelicidade dos outros e a máxima infelicidade é ser privado do direito a viver; e porque muito menos uma mãe ou um pai podem construir o seu bem estar pessoal, familiar ou mesmo social à custa de morte imposta aos seus filhos mesmo que sejam não nascidos. Em vésperas de participarmos num referendo sobre o aborto, nos termos já conhecidos, é inevitável que nos perguntemos e ajudemos os cidadãos comuns a fazerem-se esta pergunta. – Mas então será o aborto mesmo um crime? Claro que a resposta a esta pergunta está dependente da resposta a uma outra pergunta anterior e que é a seguinte – O que é aquilo que uma mãe traz no seu ventre depois da concepção? Será um simples amontoado de células ou será alguém com projecto próprio de vida definido, desde o início, no seu código genético, absolutamente único, que só não atingirá a maturidade se alguém decidiu interromper o processo? Se tivermos a coragem de respeitar as conclusões da ciência, só podemos considerar o nascituro um ser humano desde o início. E se assim é qualquer intervenção destinada a tirar-lhe a vida só pode constituir matéria de crime. O aborto é, portanto um crime; e um crime abominável, como sempre lhe chamou e continua a chamar o Magistério da Igreja. E por isso é também considerado um pecado reservado ou seja que nem todos os sacerdotes confessores estão normalmente autorizados a absolver. Sendo um crime e abominável, pode o aborto ser descriminalizado? Claro que não. E se a lei civil o descriminalizasse, teríamos mais um caso sempre lamentável em que a lei civil se coloca contra a lei moral. Claro que pode haver circunstâncias psicossociais capazes de tornar inimputável ou de considerar com responsabilidade atenuada quem praticou um aborto ou para ele contribuiu. Mas isso não retira ao acto em si mesmo a sua natureza criminosa, que nunca pode considerar-se apenas decorrente da subjectividade de quem o pratica mas também da gravidade da acção em si mesma considerada. Sendo o aborto um crime e um crime de dimensões exponenciais que a tradição cristã classifica de abominável ou particularmente grave e, por isso, abjurável, é legítimo perguntar-nos ainda se será possível despenalizar o aborto. A resposta a esta pergunta exige saber se, do ponto de vista legal, é possível definir um crime sem lhe atribuir uma pena. Independentemente da resposta que os juristas possam dar a esta pergunta, não podemos esquecer a função pedagógica, a função educativa que a lei deve ter. O caminho certo não seria, por isso, despenalizar, mas levar em linha de conta, em sede de julgamento, as eventuais circunstâncias atenuantes do crime praticado. E é fácil de perceber que o grau de responsabilidade não é o mesmo, seja entre as mulheres que pedem o aborto seja entre aqueles ou aquelas que as condicionam e, muitas vezes, para aí as empurram. Qualquer que seja a relação estabelecida entre o crime do aborto e pena que lhe for devida, não podemos aceitar a sua legalização e liberalização, ou que ele seja considerado um direito da mulher. Nenhuma pessoa pode arrogar-se o direito de dispor da vida de outra pessoa, como é o que está em causa na questão do aborto. E também entendemos que qualquer lei, que se preze de ser lei justa, ou o Estado, enquanto pessoa de bem, não podem abandonar uma criança de 10 semanas de vida, embora a viver ainda no seio da sua mãe, mas têm de a proteger e impedir o acto criminoso de quem lhe queira tirar a vida, mesmo que seja a sua mãe, o seu pai ou qualquer outra pessoa. Para terminar, julgamos absolutamente necessário esclarecer todos cidadãos sobre o seguinte: o que vai estar em causa no próximo referendo não é só a despenalização do aborto. É muito mais do que isso. Os cidadãos portugueses vão decidir se querem ou não que o aborto seja legal e completamente livre; e mais ainda se querem que os dinheiros públicos sejam aplicados na prática legalizada do crime do aborto, quando eles deviam servir só e sempre para a defesa e promoção da vida. 14 de Janeiro, 2º Domingo do Tempo Comum +Manuel da Rocha Felício, Bispo da Guarda