Se as sondagens de opinião determinassem “o que é verdade” teríamos de concluir que, de facto, não há verdade na política: esta seria o reino do embuste, da mentira, do oportunismo, da palavra e da promessa não cumpridas, da luta do poder pelo poder… Juízo sombrio e conclusão fatalista retirada no viso da crítica e no lamento de não haver verdade na política, quando deveria existir! É que «todos os homens desejam a verdade [compreender]; não existe ninguém que não o queira. Mas nem todos querem acreditar.» Ora, «se se retira a confiança das coisas humanas, quem não vê a grande perturbação, a horrenda confusão que se seguirá?» (Sto. Agostinho, Sermão 43, 4; De fide rerum quae non videntur, 2, 4)
De acordo com este diagnóstico de Sto. Agostinho sobre o divórcio entre a Inteligência e a Vontade, e apesar do desejo de verdade inscrito no mais fundo do homem («Ó Verdade, Verdade, quão intimamente a medula da minha alma suspirava por ti», Conf. III, 6, 10), o que constitui a primeira grandeza política é a relação fiduciária, a relação de confiança na palavra e na ação justa, pois «sem justiça, o que são os impérios senão quadrilhas de ladrões?» (De Civitate Dei, IV, 4; XIX, 4)
O que destrói a relação de confiança política não são as diferentes respostas acerca de ‘o que é a verdade?’ em geral (questão que está para além da política), mas em primeiro lugar a mentira, a perfídia, a hipocrisia, a injustiça e o cinismo de quem nem sequer escuta o que outro tem para dizer. É célebre o desinteresse cético de Pilatos, o hábil político romano, pela resposta à pergunta que ele próprio coloca a Jesus: «Quid est veritas?» Um político tem sempre coisas mais importantes a fazer – mesmo que seja lavar as mãos – do que pensar… Perigosamente, Platão, que pensava seriamente e várias vezes foi tentado pela política ativa, apesar não pôr em causa a primazia da Verdade (alêtheia) no plano teorético, parece ter aceitado sem grandes pruridos (República, 414 c) a célebre lenda fenícia – o mito dos metais que narra o nascimento das diferentes raças de homens: ouro, prata, bronze e ferro – como uma “nobre mentira” (genaion pseudos) útil para persuadir e gerar a aceitação e a confiança dos concidadãos acerca do lugar que cada um ocupa na pólis. Volens nolens, Platão acabou abrir uma caixa de Pandora, e por essa nesga trouxe para o debate político a questão de se a todos os homens, em todas as circunstâncias, é devida a verdade (ou pior: se eles são dignos dela), colocando-se a hipótese de, em certas situações, a mentira poder ser “a mais piedosa” das saídas. Sabemos que este princípio da ‘noble lie’, taxativamente rejeitado por Agostinho e por Kant, acabou aceite nas teorias de grandes pensadores políticos (Maquiavel, Espinosa, …), ou, pior ainda, por informar a prática de regimes totalitários (Estaline, Hitler, …) no sentido de uma verdadeira política de mentira sistemática.
Nestes casos extremos mentira e política são equivalentes. Mas para quem quer pensar a relação da verdade com a política em contexto de pluralidade democrática, o problema reside nas imbricação das situações concretas, aquelas em que, por exemplo, os políticos mentem por omissão, aparentam sinceridade, mas enganam com meias-verdades, prometem com reserva mental, não têm escrúpulos, refinam o cinismo com a retórica, dissimulam a ganância do poder pelo poder com mui nobres desígnios de serviço público, etc..
Por outro lado, importa referir que a Palavra está no centro da atividade política; ela cria a própria realidade política. Assim, v.g., para superar uma situação de crise, um político pode convencer-se (com maior ou menor grau de má-fé) que o melhor é não falar dela e sublinhar antes as capacidades do povo. Pode apaziguar a consciência, se a tem, dizendo que nas atuais sociedades complexas e globalizadas, é quase impossível explicar os complexos processos políticos, económicos e sociais a cidadãos impreparados. Temos de criticar severamente o paternalismo oportunista e irresponsável que se legitima à sombra do argumento terrorista da ignorância povo, mesmo reconhecendo o alcance político do efeito de Pigmaleão: apresentar o melhor cenário ajuda a que ele se cumpra. Pretensamente, a mentirinha, a omissão de factos, a parcialidade, etc., justificar-se-ia em benefício dos governados. Mas os fins nunca justificam os meios. Uma situação de grave crise, como a que estamos a viver, legitimará alguma vez que se branqueiem opções erradas, ilegalidades, clientelismo, corrupção, manipulação de informação, falta de transparência da justiça? A resposta só pode ser liminarmente negativa. Um sério problema das atuais democracias, mesmo das mais maduras, é o modo como a comunicação e o marketing políticos incorporaram a pura mentira de modo a justificar decisões perante as suas opiniões públicas internas, como aconteceu, por exemplo, com a invasão do Iraque a coberto da suposta existência de armas de destruição maciça.
É certo não há, nem pode haver, em democracia, apenas uma verdade política, no sentido daquilo que pode ser feito. A existência de uma pluralidade de opiniões é a essência da política em democracia. Mas é decisivo assegurar nesta órgãos de informação independente, veraz, rigorosa e plural que permita a correta formação da opinião e da consciência dos cidadãos. É uma perversidade que destrói a política pensar alguém que, se for eleito, pode anular a legítima condenação de um tribunal. A democracia é o regime da responsabilidade de todos perante todos, por isso deve fomentar o crescimento de todos como cidadãos responsáveis e pessoas livres. Mas se não pode haver uma única verdade em política, isso não exime os agentes políticos de serem verdadeiros naquilo que dizem. A mentira (pensar uma coisa, dizer outra e planear talvez fazer uma terceira), a omissão intencional, a corrupção, a falsidade, a propaganda de ilusões, a manigância são sempre intoleráveis! A mentira corrói a nossa capacidade de acreditar e assim destrói a vontade viver juntos, que é o cerne da vida política.
José Maria Silva Rosa
Professor da Universidade da Beira Interior