A TV precisa de trazer o bem às pessoas

À conversa com Júlio Isidro VP – Em traços gerais, quais os passos e funções principais que foi seguindo e pisando na sua longa carreira? Júlio Isidro (JI) – Penso que em TV fiz tudo o que há para fazer. Portanto, faço programas em directo, de entretenimento, de informação, muita reportagem, feitos a partir do estrangeiro, mas, fundamentalmente, programas de carácter cultural. A área onde talvez sou mais conhecido é o entretenimento, de longa duração. Fui eu que criei esse tipo de programas, dos quais todos estes são derivados dos programas da manhã, da tarde e da noite, quer da RTP, da TVI e da SIC. Foram formatos que criei para Portugal há 20 e tal anos. VP – Qual desses programas lhe deu maior gozo fazer e lhe fez sentir melhor, enquadrando perfeitamente com a sua pessoa/personalidade? JI – É um bocado difícil de responder a isso, porque fui autor de todos. Portanto, nunca fui apresentador do trabalho de outros. Se eu fazia aquilo é porque gostava. São estéticas diferentes dentro dum mesmo conceito básico, que é o programa de entretenimento variado, de múltiplas facetas. Posso dizer que o primeiro, o “Passeio dos Alegres”, que inventei do nada em 1981, evidentemente tem uma marca especial. Só por isso! VP – Sente uma grande responsabilidade pela imagem de Portugal que se criou e se vai criando lá fora, ao ter sido o pioneiro da RTP Internacional e da RTP África? JI – Criei os primeiros programas especificamente para ambos os canais. Não fui o fundador, pois o canal até já existia, mas essencialmente com material produzido no 1.º e 2.º canais da RTP, daquela altura. Fui a primeira pessoa a fazer programas especificamente a pensar nos portugueses residentes lá fora. O que eu me sinto fundamentalmente responsável é uma responsabilidade de imagem, é transmitir a eles a imagem do Portugal que hoje temos: o Portugal rejuvenescido, o Portugal diferente, o Portugal certamente melhor – desejamos todos o melhor – e, sobretudo, a responsabilidade de os ouvir e sentir o seu pulsar. VP – Falando nos portugueses “lá fora”, acha que com essa evolução a imagem de Portugal melhorou, após os eventos que nos cercaram e envolveram, e que os emigrantes, ao regressarem onde estão das férias, vão fixar apenas essa mesma imagem curta e recente? Irão sentir maior saudade? JI – Pelo quadro específico que conheço da emigração é que a primeira e, eventualmente, a segunda geração acho que vivem lá fora a pensar no dia em que voltam. A primeira foi. Depois de lá nascerem penso que é muito difícil imaginarem-se de volta. E creio que há muitos emigrantes da primeira geração que nunca mais voltam a Portugal por causa dos filhos e dos netos que já lá vêm. Penso que é este o fenómeno. Agora, não tenho dúvidas nenhumas, de que há muitos que deixaram um Portugal e que, ao longo dos anos, foram assistindo, certamente durante as férias, ao renascer do país. VP – Confidenciou já na TV que se sente tímido e intimidado quando entra num café ou quando se abeira de si uma multidão de pessoas. Por outro lado, apresenta-se na TV duma forma bem à vontade, com uma certa boa dose de humor. Qual é o truque para esta mudança reactiva? JI – Há uma duplicidade na nossa personalidade e há também uma coisa que alguém uma vez disse e eu também o digo – penso que o disse já, de minha autoria – “o palco, e veja-se a TV como tal, é uma espécie de sofá de psiquiatra”. Nós quando pisamos um palco, neste caso, quando estamos num estúdio, abrimo-nos como quando estamos sentados ou deitados num sofá de psiquiatra, ou seja, sai outra pessoa. E essa outra pessoa sou eu. Independentemente disso, eu creio que o meu sentido profissional é tão apurado – isto não é um auto elogio – realmente não se pode viver nesta vida sem ser profissional. Eu sou ultra profissional. Mesmo que me sinta menos bem ou mais triste eu tenho um carisma dentro de mim que, quase sem esforço ou até com algum, faz com que esteja em frente às câmaras muito bem disposto. VP – E assim consegue esconder as suas limitações e fraquezas? JI – É um carisma. Não tenho que estar a mostrar isso às câmaras. Mas sou, naturalmente, uma pessoa tímida. Conheço pessoas cheias de talento muito mais tímidas ainda. Até mesmo introvertidos. Não vou falar de nomes, porque os conheço, se quiserem eles que falem disso. Mas há muita gente que quando está no “palco” é uma coisa e quando está cá fora é outra. Até porque penso que isso é importante, para também o público não imaginar que somos uns tontinhos, que estamos sempre na vida com um sorriso “de orelha a orelha”. É que a vida não nos motiva muito para estarmos sempre a sorrir dessa forma. VP – Ter um sorriso permanente “de orelha a orelha” é talvez um ideal. O que é que acha que seria necessário e que urge fazer para que o tal estado de espírito animador venha para ficar de vez? JI – Para ficar de vez é impossível. A TV, pelo menos em termos informativos, deve reflectir o estado do mundo, quer dizer não é possível estar feliz quando se liga a TV com o noticiário e entram as bombas pela casa dentro, assim como as desgraças entre os povos e os grandes desastres que vão acontecendo. São coisas terríveis. É natural que o cidadão consciente assimile isso. Talvez que independentemente do retratar da vida do mundo – fazer o contrário era estar a mentir – não vamos dar isso às pessoas porque as incomoda. Incomoda todos os dias. Mas, para além disso, há uma programação em termos de TV, de rádio, de artigos de jornais que podiam ter uma atitude mais positiva, para ajudar a auto-estima dos portugueses que, neste momento, está afastada e em baixo. Saiu, em finais de Agosto, um artigo na POP que revela isso. VP – Então o Euro2004 de pouco serviu ou serviu apenas para levantar a poeira instalada… JI – Era um simples facto. Era fazer de conta. Mas, pronto, fizemos de conta! VP – Há outra realidade, mesmo que pouco ou nada dada a conhecer pelos O.C.S., que tem a ver com acontecimentos revestidos pela Fé e Religiosidade popular e a maioria dos portugueses, senão praticamente todos, são cristãos. Por que razão não nos é mostrado devidamente esse outro mundo mais equilibrado e mais favorável? JI – Vou dizer-lhe o que penso a esse respeito. Penso que a fé, o fenómeno da fé, propaga-se, comunica-se. E, por exemplo, um trabalho como aquele que eu fiz há tempos atrás, o “Terço ao Vivo” – convidaram-me para o fazer e deu-me uma enorme honra – é um espectáculo da fé no bom sentido do termo. Sem demagogia, sem coisa nenhuma. Tanto quanto sei, no dia seguinte na RTP e não só, disseram-me, outros telefonaram-me, que foi algo impecável. Portanto, eu penso que a TV também pode transmitir. Mas há uma outra questão: disse que os portugueses na sua maioria são cristãos, mas na sua maioria não são cristãos praticantes. É bem diferente. As outras religiões quase não têm esse conceito: quem é religioso pratica a religião. Portanto, sem se praticar a questão da fé não se põe. Acho que se perde muitas vezes até. Costumo inverter a tradicional expressão: «enquanto há vida, há esperança». Penso que é o contrário: “enquanto há esperança, há vida”. Em relação à fé é a mesma coisa. Mas, quem é que nos vai dar um bilhete do gesto solidário? Quem é que nos dá o exemplo da honestidade? Quem é que nos dá a bondade, sem ser o brincar à ‘caridadezinha’? Quem nos dá o prisma da verticalidade, da moralidade, sem ser a ‘moralidadezinha’? Nós não temos muitos exemplos vindos de cima. Acho que os portugueses, hoje em dia e sobretudo, perderam a fé nos seus dirigentes, não me refiro aos dirigentes religiosos mas aos políticos. Acho que olham para eles, e penso que duma maneira justa, com descrença, com desagrado, alguns com troça até. Isso é trágico! VP – E o que diz da nova fornada de beatificações e canonizações de portugueses? Não serão epifania dos sinais dos tempos? JI – Devo dizer que a circunstância de termos mais beatos e santos, mais portugueses mais crentes que levaram uma vida exemplar, infelizmente, parece-me ser a excepção para confirmar a regra do que acabei de abordar. VP – Referindo agora o seu último trabalho que vai fazendo, o “Tributo” a grandes figuras portuguesas de todas as áreas, questiono qual vai sendo o grande critério de selecção. Refugia-se na orla das amizades? JI – Não. A filosofia do programa é fazer, essencialmente, aquilo que pouca gente faz. É dizer ‘obrigado’ às pessoas pelo nosso meio, que têm uma vida inteira de prestação de serviço público. Este é o meu conceito, porque acho que, para além da falta da fé, há sobretudo falta de memória. Portanto, acho gravíssimo que não se diga às pessoas em determinada altura das suas vidas – não têm que ter 80 ou 70 anos, nem 40, têm que ter biografia – “muito obrigado!”. É ainda muito bom que praticamente não prestei tributo a pessoas desactivadas. O importante é ter biografia e, de preferência, que tenham ainda futuro, na prestação do seu serviço, no contributo para a sociedade. Tem sido uma das maiores lutas da minha vida profissional o dizer à RTP, fazê-los acreditar, que é urgente dizer a certas pessoas “muito obrigado” pelo que nos têm estado a dar, e não pelo que deram. Não estou aqui a fazer uma lápide para pessoas no fim da vida, não! Portanto, faço isso com grande amor, independentemente de ter maior ou menor amizade por alguns. Alguns até são mais velhos do que eu e foram apenas meus ‘heróis’, tanto da minha geração como de gerações anteriores. VP – Vivemos uma hora de luto, todos nós e a TV. Quis Deus chamar esse grande homem, o primeiro do “triunvirato” da TV. Em tempos prestou homenagem em vida ao Fialho Gouveia. Que homenagem lhe presta agora na nova vida que acreditamos que ele vai ter? JI – Quero dizer-lhe que lá nas alturas ele continue a ser tão bom como sempre foi. Vai ser premiado, com certeza, por isso. E que viva alegre entre os anjos. VP – Haverá alguém capaz de continuar o trabalho e as qualidades dele, a fim de avivar eficazmente a tal memória de há pouco abordava? JI – Eu desejo bem que se possa encontrar e apostar em pessoas que sejam tão boas – o que é difícil hoje em dia – porque a TV, de facto, está doente. E, portanto, acho que a TV precisa de gente com saúde, saúde respeitante à maneira de estar na vida: a alegria, o comunicar com as pessoas, a trazer o bem às pessoas, o comunicar as coisas insubstituíveis da vida. Desejo sinceramente que haja muitos sucessores, porque estão lá com certeza. É só uma questão de permitir que ponham em prática essa missão, pois estar à frente da TV é uma missão. Aspectos de Eleição VP – Melhor Programa televisivo… JI – O do Jô Soares. VP – Melhores Canais televisivos… JI – “People & Arts”, “Canal História” e “Mezzo”. VP – Melhor Informação nacional… JI – “Sic Notícias”. VP – Melhor lazer da vida… JI – Objectivamente é viajar. Tenho dificuldade de conceber umas férias onde faça somente praia. Entrevista de André Rubim Rangel, Voz Portucalense

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