A Teologia de S. Paulo

Não dissequemos S. Paulo em tranquilas ideias teológicas, seguramente redutoras, mas acompanhemos os caminhos poeirentos e tortuosos da sua vida 1. A Igreja prepara-se para viver intensamente o Ano Paulino, que o Papa Bento XVI anunciou publicamente no passado dia 28 de Junho de 2007, na Homilia da Celebração das Primeiras Vésperas da Solenidade dos Apóstolos S. Pedro e S. Paulo, e que decorrerá de 28 de Junho de 2008 a 29 de Junho de 2009, para comemorar os 2000 anos do nascimento de S. Paulo, que os historiadores situam entre os anos 7 e 10 d. C. 2. Foi-me proposto tratar sumariamente o tema «A Teologia de S. Paulo». Devo confessar, antes de mais, que não é por aqui, em tempos modernos, que os estudiosos se abeiram de S. Paulo. Outros o fizeram em tempos idos, e as propostas de pórticos de entrada no mundo teológico de S. Paulo foram várias: a tensão entre judeo-cristianismo e gentio-cristianismo (Baur), a justificação pela fé (Bultmann, Käsemann), a participação em Cristo (Schweitzer), a teologia da Cruz (Wilckens), alguns temas fundamentais da antropologia Paulina (Braun), a história da salvação Cullmann), e muitos outros. Os estudos mais recentes procuram evitar a armadilha do fixismo patente nos exercícios atrás mencionados e sugerem que se entre no mundo teológico de S. Paulo através de uma lente ou objectiva hermenêutica, focada a partir da apocalíptica, da vida da comunidade, da própria experiência de Paulo (Krentz, Hays, Bassler). O último grande estudo que tenho sobre a mesa de trabalho é «A Teologia de Paulo, o Apóstolo» (The Theology of Paul the Apostle), de James Dunn, T & T Clark, de 1998 (808 p.), que, para fugir à armadilha do fixismo e da abstracção, elegeu como pórtico de entrada a Carta aos Romanos. 3. É do domínio público que Paulo não nos deixou tratados teológicos. Deixounos Cartas, que são sempre escritos de circunstância, endereçados a comunidades concretas ou a pessoas concretas. É igualmente sabido que as Cartas endereçadas de Paulo surgem quase todas (a excepção é a Carta aos Romanos) depois do contacto pessoal de Paulo com as comunidades ou com as pessoas a que a Carta é enviada. É, portanto, inquestionável que as Cartas de Paulo não são tratados teológicos temáticos abstractos, mas teologia «activa» e «interactiva», que deixam ver Paulo como teólogo, mas sempre também como apaixonado missionário, pastor, pai, apóstolo. É, por isso, absolutamente de evitar dissociar o Paulo teólogo da sua vida real, das suas comunidades concretas, dos seus caminhos poeirentos. Uma vida tão intensa não pode ser simplesmente anestesiada e dissecada. E é imperioso visitar e revisitar, frequentar, uma e outra vez, com redobrada atenção e amor, a paisagem epistolar (não paisagem lunar!) Paulina, em ordem a podermos compreender e receber o forte impacto da mensagem cristã vivida e endereçada que a atravessa. 4. Dado que na teologia de Paulo se entra por caminhos concretos e por Cartas endereçadas, convém começar por enumerar as sete Cartas autênticas de Paulo, aquelas que consensualmente se atribuem a Paulo: 1 Tessalonicenses, 1 e 2 Coríntios, Gálatas, Filipenses, Filémon e Romanos, sendo que a primeira (1 Tessalonicenses) terá sido escrita de Corinto no ano 50 ou 51, e a última (Romanos) terá sido escrita também de Corinto, talvez no Inverno de 55-56. A Segunda Carta aos Tessalonicenses, e as Cartas aos Efésios e Colossenses são hoje consideradas Cartas editadas tardiamente, depois da morte do Apóstolo, pelos seus discípulos. Mais tardias ainda serão as chamadas Cartas Pastorais (duas a Timóteo e uma a Tito). 5. Nota-se, neste elenco, o lugar privilegiado que ocupa a Carta aos Romanos. É a última Carta autêntica de Paulo, e a única que escreve a uma comunidade que ainda não conhece pessoalmente. O que escreve não tem, por isso, tanto a ver com a situação da comunidade cristã de Roma, mas com as preocupações e anseios que Paulo vive nessa altura, depois de dar por terminada a sua missão na parte oriental do império romano (Rm 15,19 e 23), e antes de partir para Jerusalém na mais arriscada das suas viagens, a viagem da comunhão das Igrejas em Cristo, a viagem da unidade, a verdadeira viagem da sua vida. A Carta aos Romanos é o último escrito saído da mão de Paulo, obra madura, amadurecida nas esperanças e nas dores, súmula das suas cartas anteriores e de todas elas a mais extensa (7101 palavras) e completa, que bem podemos considerar o testamento espiritual do Apóstolo. De facto, Paulo vive, anuncia, ensina e escreve a unidade e a liberdade de todos em Cristo, e é por esta realidade que dará a vida. 6. É quase um aforismo dizer-se que a história da teologia cristã se revê na história da interpretação da Carta aos Romanos. Ou que «as grandes horas da história » são as da Carta aos Romanos (P. Althaus). É sabido que Agostinho consumou a sua conversão quando, como ele conta nas Confissões VIII, 12, motivado pelo canto de uma criança que repetia «Toma e lê! Toma e lê!», pegou nas Cartas do Apóstolo, abriu à sorte e à sorte leu Rm 13,13b-14: «Não em orgias e bebedeiras, não em devassidão e libertinagem, não em rixas e ciúmes, mas revestivos do Senhor Jesus Cristo e não presteis atenção à carne através da concupiscência ». Nascia assim um dos teólogos mais influentes da história do cristianismo. Grande impacto para o cristianismo e para a civilização ocidental teve outra vez a Carta aos Romanos, quando Lutero começou a proferir sobre ela as suas primeiras lições, na Universidade de Wittenberg, em 1515-1516. «Uma bomba no recinto de recreio dos teólogos»: foi com estas palavras que Karl Adams definiu o enorme impacto do grande Comentário sobre a Carta aos Romanos de Karl Barth, publicado em 1918 (2.ª ed. Muito melhorada em 1022), e que inaugurou uma nova era na teologia do século XX. A Carta aos Romanos marcou indelevelmente a Igreja primitiva, mas também a Idade Média e a Idade Moderna. E marcará também seguramente todos aqueles que ousarem confrontar-se com ela de forma séria. Um pouco como confessa o conhecido exegeta Lagrange que, em 1916, publicou Saint Paul, Épître aux Romains, e confessa: «O primeiro contacto foi arrasador» (Avant-propos, III). 7. Salta à vista que não se pode anestesiar tamanho impacto, sob pena de ficarmos com uma ideias sobre S. Paulo, mas de não o recebermos correctamente. Proponho, pois, que não dissequemos S. Paulo em tranquilas ideias teológicas, seguramente redutoras, mas o acompanhemos nos caminhos poeirentos e tortuosos da sua vida. 7.1. Que tesouro transporta, com orgulho, este judeu piedoso, organizado, determinado e apaixonado? (2 Cor 11,22; Rm 11,1; Fl 3,5-6; Gl 1,13-14). 7.2. A «reviravolta» ou o novo começo de Paulo, imprevisível e não programável, operada por uma luz que vem de fora, por Cristo, dita com dois verbos de Revelação (1 Cor 15,3-5.8-10; Gl 1,11-12.15-16) e um de Luta (Fl 3,12-13). 7.3. A experiência da Graça e do Amor novo, que não pode mais deixar de dizer: é assim que abre e fecha todas as suas cartas. 7.4. O coração e os olhos de uma testemunha, com um Amor perfeito e um Ver perfeito (1 Cor 9,1), o que significa que Paulo não deixará mais de amar e ver Cristo Ressuscitado. Paulo sabe que Outro morreu por ele, por amor. É, por isso, que é um bom teólogo, para usar as palavras de Soren Kierkegaard. 7.5. A necessidade de anunciar esta imensa notícia de Cristo, que não pode conter, porque transvaza dele (1 Cor 9,16). 7.6. A Igreja como ekklêsía, obra de um Deus que chama e ama. 7.7. A metodologia maternal e paternal da Evangelização que Paulo vive e efectua: gerar, dar à luz, acalentar, tratar com ternura e afecto entranhado (1 Cor 4,14- 15; Flm 10; Gl 4,19; 1 Ts 2,2-12; Fl 1,7-8). 7.8. A outra rede da missão feita de muitos e bons cooperadores (Rm 16,1-15). D. António Couto Bispo Auxiliar de Braga

Partilhar:
plugins premium WordPress
Scroll to Top