Nunca nos faltariam apelos exteriores e interiores para o tempo da quaresma. Não nos é difícil encontrar pecado em nós e à nossa volta, infidelidade ao Evangelho e à santidade a que nos comprometemos viver desde o batismo e no exercício dos nossos ministérios ou estados de vida. S. Paulo exprimiu isto muito bem quando escreve que guardamos tesouros em vasos de barro. Contudo, este ano temos diante de nós o relatório da comissão independente sobre os abusos sexuais dentro da Igreja, já depois de termos conhecido outros noutros países. Apesar de só um pequeno número ter tomado parte nestes abjetos delitos, é toda uma Igreja que se sente triste, abalada, ferida, perturbada, dilacerada pelas profundas misérias e contradições que aninha no seu ventre, em profunda contradição com a sua missão e com o Evangelho que proclama. É uma Igreja a precisar de renovação e de uma profunda terapia, quem sabe quimioterapia, exigente e dolorosa, mas libertadora e purificadora.
Nesta quaresma que se aproxima, escutaremos a força e a veemência das palavras da Profecia de Joel, que vamos escutar na quarta-feira de cinzas: «Convertei-vos a Mim de todo o coração, com jejuns, lágrimas e lamentações. Rasgai o vosso coração e não os vossos vestidos. (…)Tocai a trombeta em Sião, ordenai um jejum, proclamai uma reunião sagrada. Reuni o povo, convocai a assembleia, congregai os anciãos, reuni os jovens e as crianças. Saia o esposo do seu aposento e a esposa do seu tálamo. Entre o vestíbulo e o altar, chorem os sacerdotes, ministros do Senhor, dizendo: ‘Perdoai, Senhor, perdoai ao vosso povo e não entregueis a vossa herança à ignomínia e ao escárnio das nações.»
No entanto, o que me faz discorrer estas palavras, é o paganismo que cada vez mais prolifera na sociedade, paganismo que anda também por aí bem dissimulado nos corações e mentalidades de muitos cristãos e no coração da própria Igreja. Em 2009, numa conferência, o Rabi Adin Steinsaltz afirmou: «vivemos hoje num mundo ocidental que está esvaziado do cristianismo e do judeo-cristianismo. E este vazio está agora a ser preenchido por outra coisa, e essa outra coisa é o paganismo». Os deuses pagãos da época pré-cristã dominam a sociedade, mascarados com novos nomes, novas imagens, novos templos, com adoradores em todo o lado.
O primeiro desses deuses é Baal, o deus do poder e do dinheiro. Mandar e dominar e ser rico continua a ser o ideal da maioria das pessoas e das empresas, em sacrifício de muitas «vítimas», que parece que não nasceram para ter dignidade e realização humanas, exploradas e espezinhadas a toda a hora. Os seus templos são as sacrossantas instituições financeiras e os seus sacerdotes são os executivos e os gestores.
O segundo deus pagão que prevalece na cultura atual é o deus ou a deusa da fertilidade e do sexo, ou se quisermos, do prazer, Astarte. Venha donde vier, mesmo em prejuízo de princípios e valores, o prazer tornou-se o critério decisivo da atividade e da conduta humana, tornou-se um íman escravizante, moldando comportamentos e atitudes, pouco importando as muitas vítimas que arrasta atrás de si, obrigadas a descer a níveis de desumanização inconcebíveis. Prazer e bem-estar tornaram-se os polos condutores da vida.
O terceiro deus pagão que impera na sociedade europeia contemporânea é uma musa promovida a deusa: Calliope, a deusa da fama. Ser conhecido, admirado, falado, considerado, andar nas bocas do mundo, ter prestígio, por puro orgulho e vaidade, com exibicionismo quanto baste, é o sonho e a aspiração da vida de muitas pessoas, a conceção de que quanta mais visibilidade se tem, mais valor se tem. Na senda de Descartes, sou conhecido, logo existo, pouco importando a verdade e a consistência do que verdadeiramente se é e se faz, não se percebendo que se pode viver muito bem sem isso e que é cansativo e chato viver para os outros, e que quando se escolhe este caminho acabar-se-á por se encontrar a falsidade, a ilusão, a desilusão, o vazio, o fracasso, a imposturice e a frivolidade. Com esta deusa, nasceram as denominadas celebridades, nas palavras do Rabi, «um ninguém muito conhecido», mas que ninguém conhece muito bem o que faz e porque merece ser célebre. Não faltam por aí as suas vítimas, com vidas de fachada, sem substância e sem alma. O seu templo é a televisão e outros meios de comunicação.
Lá no fundo, são as célebres tentações que Jesus enfrentou e venceu, que, de facto, são diabólicas, viram a vida ao contrário, dividem e nos viram contra Deus e contra os outros.
O paganismo aí anda a moldar mentalidades, ideias, pensamentos, ritos e práticas, e também aí anda a deformar e a adulterar a vivência cristã e a vida da Igreja. Um pouco na linha das chamadas de atenção do Papa Francisco para o perigo da mundanidade e do mundanismo espiritual no seio da Igreja. Não é por aqui que passa a vida dos cristãos e a realização da vida humana. E sabemos qual o caminho a seguir: regressar a Cristo e ao Evangelho. Poderemos assim combater a acusação que o padre ortodoxo, Paul Evdokimov, nos fez, de vivermos um cristianismo rotineiro, satisfeito, amortecido, inoperante, porque não dizê-lo, “pagão”: «Os cristãos têm feito todo o possível para esterilizar o evangelho; parece que eles o submergiram num líquido neutralizante. Tudo o que impressiona, supera ou investe é amortecido. Assim tornada algo inofensivo, esta religião aplanada, prudente e razoável, o homem não pode senão vomitá-la». Boa Quaresma.