A tática dos ovos – A esperança como azimute da evangelização

Pe. José Miguel Cardoso, Diocese de Braga

1. A medicina diz-nos que para sobreviver bastam quatro coisas: temperatura, água, oxigénio e nutrição. E de todos os alimentos existentes, a maioria dos nutricionistas é unânime em sustentar que o mais rico é o leite materno, seguindo-se… o ovo (atenção, não é o “ovo de chocolate”, é mesmo o “ovo de galinha” ou similares). Contudo, mesmo ocupando o segundo lugar da hierarquia, nem todos os ovos são benéficos, pelo que serve aplicar o “método científico da falsificabilidade” de Karl Popper ou, na falta deste, o “método das nossas avós”: colocar um ovo num copo de água. Se ele vier à tona, é porque não é bom, logo é melhor não o comer. Se ele ficar no fundo, bom apetite!

Mas por que motivo o ovo é assim tão nutritivo? Porque possui proteínas de alta qualidade, vitaminas essenciais, minerais relevantes (selênio, fósforo e ferro), gordura saudável e antioxidantes. Em suma, o ovo é portador de uma elevada riqueza imunitária e energética. Pela mesma razão, comer ovos em excesso faz mal. E para as gerações mais antigas, certamente que ainda se recordam das famosas “gemadas de ovo”, uma espécie de “Red Bull” ainda antes de existir propriamente o “Red Bull”: uma bebida (batido de ovos) que se tomava de manhã cedo nos dias em que os trabalhos agrícolas eram de grande exigência e desgaste físicos.

2. Posto isto, será que o ovo é também relevante na nossa relação com Deus? Embora ele seja um elemento de grande simbolismo cultural patente já nas civilizações ancestrais, como descreve o cósmico “Ovo Azul” da artista Milena Mijović-Durutović, das raras vezes que esta palavra aparece na Bíblia, encontramos esta pergunta de Jesus: «Qual o pai (…) que, se o filho lhe pedir um ovo, lhe dará um escorpião?» (Lc 11,11-12). Por meio do ovo, Jesus ensina-nos um dos pilares da pedagogia familiar: o amor extremo de um pai/mãe pelo seu filho (Mt 19,18-19; cfr. Ex 20,12). Da mesma forma que é assim o agir de Deus: só nos dá aquilo que (Ele entende que) é o melhor para nós.

Ao celebrarmos o “Jubileu da Esperança” (2025), o Papa Francisco desafia-nos a redescobrir esta virtude que, infelizmente, ao longo da história do cristianismo foi demasiado desvalorizada em detrimento das outras duas virtudes teologais: a fé e a caridade (K. Rahner). Diante dos desafios que se colocam ao cristianismo, talvez não seja de todo errado mudar a tática (não a estratégia!): antes de anunciarmos os conteúdos da fé, começarmos por comunicar as razões da nossa esperança (1Pe 3,15). E por que razão? Se muitos até podem prescindir da fé, provavelmente poucos são os que prescindem da esperança, como nos explicita uma das três perguntas finais da ópera Turandot (G. Puccini). Indo mais longe, a crise de fé advém de uma crise de esperança (J. Moltmann). E o que é que um ovo interessa para o discurso sobre a esperança?

3. Das muitas definições poéticas e técnicas sobre a esperança, uma bastante peculiar é-nos dada por Santo Agostinho (354-430): a esperança é como um ovo. O ovo embora já seja uma realidade (algo que existe empiricamente), ele não é um fim em si mesmo: transporta dentro de si algo mais, que ainda não se vê, mas que se intui que exista (o pintainho), porque existe o ovo. Portanto, quando vemos um ovo, não vemos apenas o ovo em si, mas algo mais: a esperança que o ovo transporta dentro de si (o pintainho).

Deixando para os mais hábeis a pergunta de quem nasceu primeiro, se a galinha ou o ovo, esta metáfora agostiniana elucida-nos sobre a importância da esperança: a capacidade de ver algo mais na realidade do que aquilo que a realidade nos permite ver “à primeira vista”. A esperança não é tanto o ver coisas novas, mas ver as coisas de um modo novo. Porque a nossa vida não se reduz a este mundo, somos «peregrinos da esperança» (Spes non confundit, 1) em direção à eternidade.

4. Por esta razão, na relação com Deus não nos basta apenas alimentarmo-nos da fé e da caridade, precisamos também de ovos, ou seja, da esperança (C. Péguy). Sem esperança, a fé corre o risco de se reduzir a uma filosofia transitória e a caridade, a uma mera filantropia. Em rigor, é a esperança que distingue um cristão de todos os outros (1Ts 4,13).

No entanto, esta esperança cristã não significa um quietismo, antes um dinamismo (1Pe 1,3). A sua práxis traduz-se num “ato de antecipação”, sendo este o cerne que distingue a esperança cristã de todos os outros tipos de esperança. Em boa verdade, a esperança cristã é como o algodão: não engana (Rm 5,5). Neste confluir entre a ação humana (futuro) e a proximidade de Deus (advento), o amanhã constrói-se entre estes dois atores: o cálculo humano e a surpresa divina. Por outras palavras, entre o ovo (que vemos) e o que está dentro do ovo (que ainda não vemos plenamente). Assim sendo, poderá Deus “fazer omeletes sem ovos”? Deixamos a pergunta em aberto.

5. Se somos salvos na esperança (Rm 8,24), então também «é pecado não ter esperança» (E. Hemingway). O ateísmo não é apenas o “não crer” em Deus, mas também o “não esperar” n’Ele e com Ele. Que a Semana Santa que se aproxima seja um motivo para repensarmos quais os ovos que devemos priorizar: se os ovos de chocolate, que incutem uma “esperança comercial”, ou os ovos da proposta de Santo Agostinho, que explicitam a diferença da esperança cristã.

Disso nos evidencia a Cruz do Crucificado na Catedral de Burgos (Espanha): uma Cruz com ovos na parte inferior. Este é o centro da nossa esperança: a ressurreição (vida nova dentro do ovo) que está implícita na Cruz (ovo). Se Cristo não ressuscitou, é vã a nossa fé (1Cor 15,14)… como é vã também a nossa esperança (1Cor 15,19).

Pe. José Miguel Cardoso
Diocese de Braga

 

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