A revolução serena do Espírito

Padre António Rego, jornalista

Parecia o ovo de Colombo. Muito do que nos ia chegando de Roma  parecia já escondido, com timidez, dentro de  nós, jovens inconformados  com tantas áreas da Igreja que pareciam desfasadas não da realidade apenas, segundo nos parecia, mas da grande tradição da Comunidade inicial, distorcida depois pela história, manipulada pelos tempos, impérios, sabatinas e decretos. O Concílio surgiu-nos com tanta naturalidade como se fora um pedido profundo há muito por nós formulado. A modéstia não era muita. Era o melhor da nossa juventude como estudantes de Teologia e depois como pastores. Aos poucos fomos alinhando os nossos sábios pareceres com uma série de movimentos germinativos que nos precederam, sobre Deus, a bíblia, a Igreja, o mundo, o ecumenismo, os leigos, a liturgia, os meios de comunicação social, a atividade missionária, a liberdade religiosa. Começamos a perceber que o Concílio não trazia novidades no sentido de criar do nada o que quer que fosse, mas recriava, com a luz do Espírito, toda a dinâmica  da Igreja que nela já se inscrevia, não para a conformar com o mundo mas, para nele descobrir sinais de Deus muito para além da visão estreita de o mundo ser apenas o terreno e o símbolo do mal.

Tem-me acompanhado toda a vida sacerdotal a edição da União Gráfica de 1966 dos “Documentos Conciliares do Vaticano II”, com 4 Constituições, 9 Decretos  e 3 Declarações. Toco esse livro com carinho. Sinto que todas as suas páginas foram percorridas e estudadas, enriquecidas com comentários de grandes mestres de teologia e pastoral. Muitos trabalhos, nomeadamente nos media foram um esforço sincero de o traduzir para o homem da rua tentando nunca analisar antes de ler, dispondo-me a uma aprendizagem constante.

Como muitos companheiros de missão da minha geração, sentia a urgência,  nalguns casos exagerada, de trazer o Concílio para a vida, pois já se tinha perdido tempo demais em considerandos a que faltava apenas uma coisa: fazer. E assim veio o sofrimento das reformas a que muitos faziam resistência  e outros, mais notórios, faziam precipitar sobre uma multidão que havia aprendido a vida cristã como um dogma definitivo no conteúdo e na forma, no conceito de autoridade, no rigorismo com que se formaram as consciências, na traição que parecia acompanhar qualquer mudança. A visão eterna da Igreja confundia-se facilmente com a imutabilidade das formas, misturando o essencial e o periférico. O tempo da chamada contrarreforma fora longo e duro na defesa intransigente  e justa da fé católica. Esse estilo terá, direta ou indiretamente, gerado resistências indiscriminadas à mudança. Não estou a falar só do pós-concílio. Lembro o  tempo em que ele ocorreu e dos dinamismos de resistência e mudança com que se debatia. Passados estes 50 anos tenho por vezes a sensação de estar numa espécie de segunda volta onde vejo com respeito e espanto alguns que choram e lutam pelo regresso do passado no mesmo estilo de resistência que encontrei perante a boa nova do Concílio. De uns e outros sorrirá o Senhor do tempo, e o Espírito, que vivifica para além dos tempos e dos modos.

A liturgia foi o terreno que deu maior visibilidade ao todo do Concílio. A Palavra, o vernáculo, o novo conceito de participação, o altar versus populi, a assembleia “concelebrante”, a simplificação do ritos, gestos, paramentos, o conceito de Ceia e Sacrifício, tudo isso descia às comunidades com alguns estremecimentos, mas com grande alegria para os que descobriam o seu novo dinamismo. Nada acontecia num dia apenas. Implicava tempo, paciência, formação, participação, discernimento dos pastores e leigos. E exigia meios, desde livros, folhetos, traduções, encontros pacientes. Não se tratava de mudança canónica de regras, mas dum novo espírito perante o todo de que as mudanças eram a expressão. Momentos houve muitos complexos que exigiam um profundo respeito por quem não entendia o que se passava mas que nem por isso era excluído da comunidade. Mas o tempo era propício à mudança. E a Igreja, nessa matéria em paralelo com o que se passava no Ocidente – a  grande revolução dos anos 60 – procurou dar sentido a essa expressão que só os ditadores  não entendiam de todo. A palavra liberdade que se cantava em todos os tons e em todas as praças também foi ouvida e proclamada pela Igreja numa Declaração Conciliar sobre a liberdade religiosa. O tempo era para alguns de utopia. Para a Igreja era de esperança. Até porque os sinais exteriores não traziam tantas promessas como alguns pensavam. É por aí que começam a diminuir as vocações consagradas, a falecer alguns movimentos vitais da Igreja, a surgir novas visões de missão ad gentes, a desaparecer formatos pastorais que pareciam sólidos. Mas o Concílio não foi o gerador da crise. Só Deus sabe o que seriam os novos tempo sem o seu impulso de esperança.

Padre António Rego, jornalista

 

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