A Realeza de Cristo está no Bem Comum

Homilia de D. Jorge Ortiga na celebração de encerramento da Semana Social de 2009

A Solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo, teve diversas interpretações ao longo da história. Recordamos, ainda, o compromisso, através duma interpretação literal, para que Cristo reinasse verdadeiramente em todos os ambientes, exigindo uma militância organizada e realizadora de actos tendencionalmente triunfalistas. A partir da comunidade o mundo deveria ser conquistado.

Hoje sabemo-nos e orgulhamo-nos de ser cidadãos no mundo com um projecto especificamente dominado pelo amor. O amor que é Deus e que deve ser acolhido e doado. Ele é “derramado nos nossos corações pelo Espírito Santo” (Rom 5,5) e a partir daí torna-se um “Amor criador” ou seja, fonte duma sociedade nova. Somos “destinatários do amor de Deus” numa experiência gratificante e marcada pelo sentido de plenitude e aceitamos ser “sujeitos” do mesmo amor para, como instrumentos humildes, “difundir a caridade de Deus e tecer redes de caridade” (C. in. V. 5).

Esta é a realeza de Cristo que, não sendo deste mundo, está neste mundo e permite que Ele seja “aquele que é, que era e que há-de vir” (Ap 1, 8).

O triunfalismo desaparece mas o Seu espírito vivifica e gera uma sociedade pautada por critérios de igualdade e dignidade de todas as pessoas humanas com a consequente experiência de fraternidade universal. E daí que o caminho da Igreja deve ser uma consciente “proclamação da verdade do amor de Cristo na sociedade”.

Tornando a caridade verdadeira, no pensamento do Papa Bento XVI, a vida do discípulo de Cristo deve assumir critérios orientadores onde o bem comum aparece como objectivo primordial. Possuído pelo amor criativo compromete-se na prossecução do “bem de todos os homens e do homem todo”, sabendo que ninguém se pode fechar em si mas que deve interpretar o seu agir como um ser “com” e “pelos” outros. Ao lado das pessoas, todas as formas de sociabilidade – família, empresas, associações, estado, autarquias… – terão de reconhecer o bem comum como “o constitutivo do seu significado e da autêntica razão do ser da sua subsistência” (Pacem in terris 1963).

Se o bem comum orienta o agir das pessoas e das associações, a Igreja e os cristãos comprometem-se com ele para que o seu agir se torne sinal interpelativo. Não basta exigir do Estado uma lei que reconheça que ao lado do bem individual deve estar o bem comum, como “o bem daquele, nós – todos”, formado por indivíduos, famílias e grupos intermédios que se unem em comunidade social.” Hoje, mais do que nunca, o cristão “é chamado” conforme a sua vocação e segundo as suas possibilidades, a “incidir na polis”, mostrando uma preocupação em dar resposta às necessidades reais de todos os cidadãos.

São muitas as exigências do mesmo bem comum que a Igreja não pode ignorar. “O empenho na paz, a organização dos poderes do Estado, uma sólida ordem jurídica, a protecção do ambiente, a prestação dos serviços essenciais às pessoas, alguns dos quais são, ao mesmo tempo, direitos do homem: alimentação, habitação, trabalho, educação e acesso à cultura, saúde, transportes, livre circulação das informações e tutela da liberdade religiosa” não podem ser afastadas da agenda do agir do cristão e das diversas instâncias eclesiais.

Como Igreja teremos de renovar o nosso compromisso de mostrar que, sem um trabalho sério por parte de todos, o desenvolvimento nunca encontrará expressões de verdadeira dignidade para todas as pessoas. Ao mesmo tempo, teremos que exercer uma atitude crítica e não ter medo de exercer pressão para que as diversas instâncias o respeitem e promovam. O Compêndio da Doutrina Social da Igreja deixa-nos uma recomendação pertinente e responsabilizante. “O bem comum exige ser servido plenamente, não segundo visões redutoras subordinadas às vantagens parciais que dele se podem retirar, mas com base numa lógica que tende à mais ampla responsabilização” (C.D.S.I. 166).

Esta Semana Social, na linha das anteriores, deveria dar-nos uma maior sensibilidade e coragem para lutar contra todas as visões redutoras e parciais no duplo sentido da palavra, ou seja, em termos de não pensar em todos e de não integrar todas as dimensões no autêntico desenvolvimento. Quando se impede e não se reconhece a dimensão transcendente da pessoa estamos a mutilar a verdadeira realização humana e a ofender uma das exigências do bem comum; quando se favorecem grupos ou se desconsideram os mais frágeis e marginalizam as minorias, permitimos que a desigualdade cresça e que existam privilegiados e protegidos. Daí que, em nome do bem comum, importa acreditar que a vivência da caridade na verdade se pode expressar na luta pelo bem de todos e pela denúncia de situações reais lesivas da dignidade. A acção da Igreja também passa por aqui e os leigos, na característica duma vocação de compromisso especial com as realidades terrestres, não podem esquecer este compromisso, refugiando-se num devocionismo intimista ou concentrando-se num trabalho pastoral no âmbito restrito das comunidades.

A Solenidade que hoje celebramos aponta este horizonte do Verdadeiro Reino de Cristo. Ele acontece na justiça, na igualdade, na fraternidade, na solidariedade. Ignorar estes valores e esquecer um compromisso para que eles permeiem o tecido da sociedade hodierna pode conduzir-nos a reconhecer que Cristo “era” pessoa renovadora da comunidade e que “hoje” perde a sua incidência sem nos dar a certeza da Sua presença no coração das pessoas nos tempos que “hão-de vir”.

O hoje de Portugal e do mundo está a solicitar menor triunfalismo por parte da Igreja, mas maior empenho e presença nas realidades terrestres. A nossa demissão permite que outro modelo da sociedade avance. Não temos consciência disto?

É tempo de acordar para a luta e promoção do Bem Comum.

Aveiro (Sé Catedral) 22-11-09
D. Jorge Ortiga, A.P. de Braga e Presidente da Conferência Episcopal Portuguesa

 

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