Dossier da agência do Vaticano para as missões No Darfur, como em tantas outras guerras africanas, as armas leves são as verdadeiras destruidoras de massa. Nesta região pobre do Sudão ocidental, cavaleiros como os dos tempos de outrora ostentam metralhadoras Kalashnikov, exterminando homens e mulheres e queimando suas habitações. A África continua a ser um mercado, embora marginal, no âmbito do mercado global de armamentos. O continente africano recicla armas velhas, resíduos dos arsenais em constante modernização do leste europeu, ou herança de recém-terminados conflitos africanos. Mas há também quem não tem escrúpulos em vender armas de última geração ao mercado africano. As vítimas deste comércio são civis, mulheres e crianças de modo especial, mas também missionários, religiosos e leigos. Fiéis ao Evangelho, os missionários permanecem ao lado dos mais pobres sobretudo nos momentos mais dramáticos, e frequentemente, são o único suporte para aqueles que perderam tudo, inclusive a esperança. Este é o motivo pelo qual são alvos privilegiados quando se quer desmoralizar uma população. Agentes de paz, homens e mulheres, armados somente de fé, perseveram em sua obra na África esquecida, denunciando os males do tráfico de armas. Os exércitos africanos sempre se abasteceram de duas formas: por meio das ex-potências colonizadoras ou, de modo subordinado, aos Estados Unidos e à União Soviética. O afastamento dos dois blocos, a partir da segunda metade da década de 70, atribuiu à África subsaariana um papel importante. As duas superpotências envolveram-se ainda mais directamente, ou através de aliados (Cuba com a África do Sul, Marrocos e Israel ao lado dos EUA), nos acontecimentos africanos. A potência ex-colonial mais presente no continente era a França, que perseguia objectivos autónomos, de teor neocolonialista. A política francesa se baseava na presença militar direta, com bases e tropas estacionados em Senegal, Djibuti, Chade, Gabão e República Centro-Africana. Uma das consequências deste cenário é o imponente arsenal depositado na África, e que ali ainda permanece. Arsenal constituído sobretudo de armas leves, que alimentaram as novas guerras e uma situação de criminalidade sempre mais difundida. Terminada a guerra fria, os factores determinantes nos conflitos africanos hoje são: o estado de incerteza nos processos de transição em países que aspiram à liderança regional, como Nigéria, África do Sul, República Democrática do Congo, Angola e Etiópia; a falta de uma estratégia específica, com organizações continentais e sub-regionais. Também a diminuição dos recursos africanos gera erosão do consenso, obtido frequentemente através de clientes preferenciais. Além dos motivos pessoais, étnicos, ou de rivalidade política, os conflitos por vezes visam à ocupação de um Estado e o controle de sua renda e das ajudas recebidas do exterior. Neste contexto, os Estados Unidos e as instituições financeiras internacionais apoiaram as trocas de liderança ocorridas na década de 90. Novos líderes, bem-dispostos para com o actual ‘mercado’ e com o processo de globalização, substituíram a velha guarda: personagens como Mobutu, úteis no tempo da guerra fria, são vistos como obstáculo para a nova ordem económica. Esta nova leva subiu ao poder quase sempre a manu militari (Uganda, Ruanda, Etiópia, Eritréia, Congo) e seus principais representantes provêm de tropas militares. A nova estratégia convergente e, ao mesmo tempo, de concorrência, americana e francesa é apoiar-se nesta nova classe dirigente, e assim, obter o controle da área. Em nível militar, a rivalidade franco-americana gerou a criação, em caminhos distintos, de forças armadas e de intervenção adaptadas à geopolítica africana. Na segunda metade da década de 90 do século passado, os Estados Unidos patrocinaram a African Crisis Response Iniziative (ACRI), com o objectivo de criar uma força interafricana de 10 mil homens. A ACRI tem como fim a manutenção da paz, sob a égide da União Africana, mas o armamento e o treinamento serão fornecidos pelos Estados Unidos e alguns países europeus. Não obstante a desconfiança de África do Sul, Quénia e Egipto, o programa fez progressos. Uganda e Etiópia declararam-se prontos a participar, e dois países da área francófona (Mali, Senegal), e um da área anglófona da África ocidental (Gana) expressaram desinteresse pela iniciativa norte-americana. Os países-chave em torno dos quais gira a estratégia de Washington são a África do Sul, a Nigéria, e o Quênia. Depois de alcançada a paz com a Eritréia, segue a Etiópia, enquanto o norte da África aguarda com interesse a Argélia. Após os atentados de 11 de setembro, os Estados Unidos estão sempre mais preocupados com a instalação de organizações extremistas na África. Por este motivo, Washington decidiu promover novas iniciativas para reforçar a capacidade antiterrorismo de diversos exércitos africanos. Em particular, a Pan Pan-Sahel Iniziative quer incrementar a colaboração de militares americanos com uma série de países da faixa do Sahel (Mali, Mauritânia, Argélia, Chade, Níger, Senegal). A França prefere falar de Capacidade africana de reagir às crises (CARC) ou de Reforço da capacidade africana de manutenção da paz (RECAMI). Os planos de Paris depositam maior confiança na intervenção da ONU, da União Africana e de organizações regionais do que o faz o governo norte-americano. Ao contrário de uma única força, como a dos EUA, os planos franceses se orientam na formação de centros sub-regionais complementares – com treinamentos conjuntos e preparação de equipamentos – que estariam chamados a colaborar em casos urgentes. A estratégia francesa se baseia num dispositivo militar reduzido, e subdividido da seguinte forma: Djibuti (3300 homens), Senegal (1300), Chade (850), Costa do Marfim (4000) e Gabão (600). A rivalidade entre Paris e Washington, contribui, desta forma, para o aumento do comércio de armas na África. De um lado, as duas potências têm interesse em circundar as áreas de instabilidade para não colocar em risco suas posições, e do outro, são tentadas a adquirir novos clientes, oferecendo armas, assistência militar e equipamentos afins a grupos rebeldes. Os dados do anuário 2000 do Instituto internacional de Estocolmo de pesquisa da paz (Sipri Yearbook 2000) confirmam tal tendência. Segundo o Sipri, as despesas militares africanas têm aumentado desde 1997. Em 1999, a despesa militar cresceu 22% em relação a 1996, ano de maior concentração de gastos militares. Estas cifras são indicativas, já que os dados de alguns países, como Angola, não estão disponíveis. Em caso de ausência ou fragilidade do Estado, os actores (públicos e privados) presentes no cenário bélico africano são vários: tropas regulares, grupos de guerrilha ou paramilitares, unidades de autodefesa, mercenários estrangeiros e tropas regulares estrangeiras. O financiamento do esforço bélico deve-se as seguintes fontes: transferência de bens às unidades combatentes (furtos, saques, sequestros e controle dos mercados); impostos ou propinas sobre a produção de bens primários e várias formas de comércio ilegais (por exemplo tráfico clandestino de diamantes ou até de droga, que está aumentando na África); assistência externa, como o envio de refugiados ao exterior, assistência direta à diáspora que vive no exterior ou ajudas de governos e multinacionais estrangeiras; assistência humanitária em favor de combatentes (exército ou guerrilha). A disponibilidade de armas é garantida por pelo menos três factores: 1. A extinção dos arsenais dos países da Nato e do Pacto do Varsóvia, depois do fim da guerra fria. Em função do alto custo de destruição, os enormes estoques criados são depositados no mercado através de operações comerciais sem escrúpulos. Os países do ex-pacto de Varsóvia, em especial, buscam moeda de valor e são entre os mais activos na captação de fluxos dirigidos à África. Do ponto de vista técnico, as armas de tipo soviético são conhecidas pelos africanos, já que guerrilhas como a UNITA angolana eram armadas, através de canais paralelos, pelo leste. 2. A extinção do material bélico depois do fim das guerras locais não levou à destruição dos arsenais existentes, mas à sua distribuição no mercado, favorecendo novas guerras e grupos criminosos. Isto ocorreu na África (como citamos, em Moçambique), e na Ásia (por exemplo, em Camboja). 3. Novas produções, seja das maiores potências (como Israel, incorrectamente colocado entre os países produtores do terceiro mundo), que restauraram e modernizaram a própria indústria militar na década de 90, seja dos produtores do terceiro mundo (Brasil, Egipto, as duas Coreias, China, Irão, Chile). Na África Subsaariana, o grande produtor de armas é a África do Sul, que dispõe de uma indústria diversificada e sofisticada, reforçada por capitais provenientes dos armamentos franco-alemães (EADS) e ingleses (BAE). Pequenas produções de armas leves e munições também estão presentes no Zimbabwe, Uganda e Nigéria. Ao lado do comércio de armas existem actividades pudicamente definidas “de segurança militar”. Treinamento, enquadramento, fornecimento de serviços logísticos às várias formações presentes dos cenários bélicos africanos são ‘especialidades’ oferecidas pelas agências especializadas internacionais. A figura do mercenário evoluiu. Ao lado do ‘velho mercenário’, componente de bandos constituídos segundo o caso, afirmou-se a figura do dependente das multinacionais da ‘segurança’, às quais a própria ONU tem intenção de recorrer. No ramo, estão presentes também Estados de economia socialista, como Cuba e Coreia do Norte, que no fim da década de 90 forneceram tropas mercenárias a Angola e Congo Brazzaville, e mais tarde, para a República Democrática do Congo. Estão presentes na África pelo menos 90 forças de segurança privadas, de vários tipos. Somente em Angola, há 80, pois o governo angolano pede às companhias minerarias e petrolíferas que provejam à própria segurança. Uma das mais famosas era a Executive Outcomes (EO) sul-africana, que prestava assistência por meio de conselheiros militares, estratégias de luta, treinamento de pessoal de terra e aéreo, participação directa nos conflitos e protecção dos interesses minerais e petrolíferos presentes na cena bélica. A sociedade teria cessado suas actividades no fim de 1999. O caso da EO permanece emblemático porque de seu grupo faziam parte algumas empresas minerarias que recebiam direitos de exploração das riquezas dos países que solicitavam sua intervenção. Uma destas, Branch Energy, foi adquirida pela Diamondworks, uma companhia associada a Sandline, empresa britânica de mercenários. Isto comprova a forte relação entre as actividades de extracção, comércio de armas e o uso de mercenários na África e em outros continentes. Os Estados Unidos, mas também a Grã Bretanha, e em menor escala, a França usam companhias de mercenários sua estratégia militar. A Defence Intelligence Agency (DIA), serviço secreto do Pentágono, iniciou contactos com as principais agências do setor, para estudar sua utilização no âmbito da geopolítica africana dos Estados Unidos. Esta lógica vê o ocidente confiar a gestão das próprias actividades militares na África (mas também na América Latina) a actores locais (armados e treinados através de programas como Acri e Recami) e a empresas privadas, a fim de evitar riscos para o próprio pessoal militar. Portanto, ao lado do armamento e do treinamento fornecido de Estado a Estado, tornam-se sempre mais importantes os abastecimentos bélicos entre organismos privados. Desta forma, as considerações de ordem geopolítica são colocadas em segundo plano em relação às comerciais. A companhia petrolífera ELF financia ambas as partes do conflito do Congo Brazzaville, e mantém as concessões petrolíferas no País. A privatização da guerra tem também efeitos paradoxais na África, o que foi demonstrado pelo progressivo esvaziamento das capacidades militares dos exércitos regulares africanos. Temendo golpes de Estado e revoltas militares, muitos Presidentes africanos (alguns no poder graças a golpes), transformaram as unidades regulares em ‘exércitos de parada’, criando, ao mesmo tempo, guardas pretorianas bem armadas e milícias privadas para a própria segurança. Tais corpos são formados por homens fiéis e pertencentes à mesma etnia do homem forte do país. É claro, portanto, que desta forma, ameaçam os alicerces do Estado em favor de entidades sub-Estatais (a etnia, a tribo, etc.) ou extra-Estatais (network criminais, lãs multinacionais minerarias e agrícolas, etc). O tráfico de diamantes é um outro exemplo. A formação da rede para a comercialização de diamantes produzidos nas áreas controladas por rebeldes em Serra Leoa, coloca a rede de traficantes de diamantes os centros de comércio das pedras (Bélgica, Grã-Bretanha, Suíça, África do Sul, Índia, EUA e Israel), os países vizinhos (como a Libéria) que alimentam a guerrilha para lucrar com este tráfico, os fornecedores de armas (quase sempre baseados em paraísos fiscais como as Ilhas Cayman ou Emirados Árabes Unidos), companhias aéreas cúmplices, que as transportam ao destino, e países (como Burkina-Fasso), que permitem o transito em aeroportos e portos, fornecendo-lhes os certificados de ‘comprador final’. Muitas vezes, no tráfico de diamantes africanos estão envolvidos personagens do Oriente Médio. Além de motivações comerciais, algumas regiões africanas tornaram-se terrenos de controvérsia entre potências médio-orientais. O governo do Sudão, por exemplo, apoiou-se ao Irão, enquanto a guerrilha do ELPS (Exército de Libertação do Povo do Sudão) recebe ajudas da Eritréia e Uganda. O Sudão também recebe ajudas e financiamentos para seu arsenal bélico de companhias petrolíferas asiáticas: a competição pelos recursos vitais envolve não somente os ocidentais, mas também as economias asiáticas. A África Subsaariana pode se tornar cada vez mais um terreno de conquista de economias mais fortes. Os interesses da chamada new economy se entrelaçam com os da old economy. O Coltan mineral estratégico para a indústria de telefones celulares é extraído em uma região do Congo sob controle dos rebeldes, e apoiada por Uganda e Ruanda. Os adquirentes são algumas entre as mais importantes multinacionais ocidentais, que compram o minério através de empresas em Uganda e Cazaquistão. A produção militar na África Na África, a difusão de armas leves é uma chaga bem conhecida, que contribui para a instabilidade de amplas zonas do continente. Além das armas provenientes de outras partes do mundo (principalmente, mas não exclusivamente da Europa do Leste), está-se firmando uma produção local que poderia ter, com o decorrer do tempo, consequências inquietantes. Entre os países africanos produtores de armas estão a África do Sul, Zimbabwe, Nigéria, Namíbia, Uganda, Quénia e Tanzânia, aos quais se acrescenta o Egito. O maior produtor é a África do Sul, que herdou do regime do apartheid uma indústria militar sofisticada e diversificada. Actualmente, na África do Sul, existem cerca de 700 indústrias que atuam no sector militar e que empregam 22.500 funcionários (no final da década de 80 eram 160.000). Grande parte são pequenas e médias indústrias, enquanto o gigante estatal Denel controla as empresas mais significativas. No que diz respeito às armas leves, os maiores produtores são: Vektor (pistolas, fuzis de assalto, metralhadoras, morteiros, canhões automáticos de 20 mm); MGL Milkor Marketing (Pty) Ltd (lança-granadas automáticas); Mechem (fuzis de 12,7 e 20 mm); ARAM (Pty) Ltd (metralhadoras pesadas de 12,7 mm); New Generation Ammunition (munição de pequeno e grande calibre), LIW; Truvelo Armoury Division (pistolas, fuzis e partes de armas leves); Pretoria Metal Pressings (PMP) (munições 12.7 x 99mm; 12.7 x 76mm; 9 x 19mm; 7.62 x 51mm; 5.56 x 45mm). Segundo os dados oficiais, o país exporta produtos bélicos para 61 países, mesmo que as áreas privilegiadas sejam o Oriente Médio e a África. O maior cliente é a Argélia, país que se encontra em meio a uma guerra civil na qual as forças de segurança são acusadas de atrocidades e massacres contra os civis. Os clientes mais importantes são: Argélia, Índia, República Popular da China, Emirados Árabes Unidos, Taiwan, Singapura, Tailândia, Camarões, Chile, Colômbia, Kuwait, Omã, Peru, Suazilândia, Congo Brazzaville, Botswana, Uganda, Ruanda, Tunísia, Costa do Marfim, Quénia, Zâmbia, Moçambique e México. Em 2001, 32% das exportações sul-africanas foram absorvidas pela África. A Argélia representa 28% de todas as vendas na África. Ao país norte-africano foram vendidos, entre outros, UAV (aviões sem piloto) de reconhecimento e um pacote de actualização da frota de helicópteros Mil Mi24 Hind de origem soviética. O restante das exportações está assim dividido: 15% Oriente Médio; 16% Ásia do Sul; 15% para o resto da Ásia; 16% Europa; 5% Américas e 1% Nações Unidas (equipamentos para os Capacetes-azuis). Nem todos os países podem receber os mesmos sistemas das indústrias sul-africanas. A lei sobre a exportação de armamentos individuou quatro categorias que estão sujeitas a um diferente grau de controle para a sua exportação: Category A: Sensitive Major Significant Equipment (SMSE) – ou seja, toda arma que pode provocar um alto número de vítimas e grandes danos às estruturas. Category B: Sensitive Significant Equipment (SSE) – armas leves. Category C: Non-sensitive equipment (NSE) – sistemas usados no apoio a operações de combate sem uma específica capacidade letal (exemplo, sistemas logísticos e para as telecomunicações) Category D: Non-lethal equipment (NLE) – meios defensivos, como os sistemas de retirada das minas. Ou seja, alguns países podem adquirir somente sistemas das últimas duas categorias (não letais), como o Zimbabwe, para o qual o último fornecimento remonta a 2000 e dizia respeito somente aos sistemas da categoria D. Também o Zimbabwe herdou uma embrional indústria bélica do precedente regime (quando o país chamava-se ainda Rodésia). Partindo desta base em 1984, foi fundada a Zimbabwe Defence Industries (ZDI). Esta empresa produz armas leves, munições e minas. O know-how para a produção de explosivos e morteiros foi fornecido pela França, enquanto a China construiu uma fábrica de munições para as armas de infantaria. Entre os clientes da ZDI estão Angola (o exército governamental e os rebeldes da UNITA), os rebeldes sudaneses e a República Democrática do Congo. No Congo, onde as tropas de Mugabe apóiam o Presidente Kabila, em troca de fornecimento da ZDI, Harare conseguiu obter a concessão de 37,5 % das acções de Gecamines, a empresa minerária de Estado do Congo. Zimbabwe, por fim, procura novos parceiros para a produção de armamentos. Antes do fim da guerra em Angola, estavam em curso colóquios entre Luanda e Harare para a fundação em Angola de um estabelecimento comum para a fabricação de armamentos. Com o fim da guerra, porém, o governo angolano parece que perdeu o interesse pela empresa. O ZDI produz armas leves (em especial cópias de mitra israelense UZI e do checo CZ25) e principalmente munições (de 9 mm a 20 mm), projécteis de morteiro (60, 81 e 120 mm), granadas anti-homem e anti-carros. Entre os clientes oficiais do Zimbabwe estão a África do Sul, Malawi, Botswana, Tanzânia e Zâmbia. Sempre na África oriental, também Uganda dispõe de uma pequena indústria bélica. Neste país existem ao menos três fábricas de armas. A maior, Nakasongola Arms Factory, é de propriedade chinesa (uma joint venture entre o governo de Pequim e alguns técnicos e empreendedores de origem chinesa, norte-coreana e sul-africana). Este estabelecimento se encontra na região de Gulu (onde há anos comanda o Lord’ Resistance Liberation Army-LRA) e produz armas leves e minas, fornecidas ao exército de Burundi e à UNITA angolana. Há ainda a Saracen, que fornece o exército ugandense, e cujo proprietário é a Strategic Resources Corporation, uma empresa de fachada que esconde a famosa Executive Outcomes (EO), a Companhia Militar Privada (PMC) sul-africana, que cessou oficialmente suas atividades no final de 1999, mas que se suspeita aja por detrás de empresas mais discretas. Existe, por fim, a Ottoman Engineering LTD, especializada em armas leves. Um dos clientes da indústria ugandense é a Rep! ública Democrática do Congo. No Quênia, a Kenya Ordnance Factories Corporation produz munições para pistolas e fuzis de assalto (20-60mil por dia). A fábrica foi construída com a ajuda da FN belga e foi inaugurada em 2000. O governo do Quênia afirma que a sua produção é destinada somente às forças locais e que não pretende conceder licenças de exportação. O único produtor bélico da África ocidental é a Nigéria. A Defence Industries Corporation of Nigeria (DICON) foi criada em 1964, com uma lei específica, o Defence Industries Corporation of Nigeria Act. Esta indústria teve um papel importante durante a guerra para a secessão de Biafra (1968-70). Confiada a empresários estrangeiros, a empresa declarou falência em 1972 e o seu diretor geral, um alemão, foi expulso do país. A indústria continuou a funcionar de modo irregular por cerca de 30 anos, sob o regime dos militares. No final dos anos 90, o novo governo civil decidiu relançar a produção militar. Com tal objetivo, foi nomeado um novo conselho de administração da DICON e tiveram início contatos com a Rússia para a transferência de tecnologias. A empresa nigeriana emprega atualmente cerca de 700 pessoas na sede de Kaduna, onde são produzidas armas leves e munições, enquanto na fábrica de Bauchi são produzidos veículos blindados leves. Oficialmente, as armas produzidas são destinadas somente para as necessidades das forças armadas e da polícia nigeriana. Entre os materiais produzidos estão: Nigerian Rifle 1 Model 7.62 mm(NR 1 – 7.62 sob licença britânica e belga); Nigerian Pistol 1 – Model 9MM (NPI – 9mm); Sub-Machine Gun (PM 12S Calibre 9MM sob licença Beretta italiana) DICON SG 1 – 86 Single Barrel Shot Gun; DICON M 36 Hand-Grenade; 7.62mm x 51 soft core (Ball) Cartridge 7.62mm X 51 Soft core (Ball); 7.62mm x 51 Blank Bulleted 9 x 19MM Parabellum Cartridge;9MM Blank Star; 12 Bore Shot – Gun Cartridge. No norte da África, o maior produtor de armamentos é o Egito. Este país exporta também para a África Subsaariana. Em 1992, dois anos antes do genocídio ruandês de 1994, foi assinado um contrato de aquisição de armas egípcias destinadas ao exército ruandês. O contrato, garantido financeiramente por um banco francês, compreendia morteiros de 60 e 82 mm; 16 mil projeteis de morteiro; alguns obuseiros de 122 mm com 3mil tiros; lança rojão; explosivos; minas anti-homem e três milhões de projeteis de pequeno calibre. Entre os produtores egípcios de armas leves existem: Abu Kir Engineering Industries / Factory 10 (munições de pequeno calibre); Al-Ma’asara Company for Engineering Industries (MF 45) (munições de pequeno e grande calibre); Arab International Optronic (AIO) S.A.E (sistemas de ponteiro); Helwan Machine Tools Company / Factory 999 (morteiros); Kaha Company for Chemical Industries (MF 270) (granadas para fuzil, bombas a mão); Maadi Company for Engineering Industries (pistolas, fuzis, metralhadoras leves e pesadas, lança-granadas; Sakr Factory for Developed Industries (raios anti-carro); Shoubra Company for Engineering Industries (MF 27) (munições). A herança de morte dos conflitos concluídos Quando uma guerra acaba, um dos problemas a serem enfrentados é o desarmamento dos ex-combatentes. Infelizmente, apesar dos esforços realizados pelas Nações Unidas e por outras organizações, em diversas ocasiões não se conseguiu obter um desarmamento total. Um dos mais recentes exemplos é o programa de Desarmamento e Desmobilização na Libéria. A guerra civil entre os combatentes fiéis do deposto Presidente Charles Taylor e os guerrilheiros do LURD (Liberianos Unidos para a Reconciliação e a Democracia) e do MODEL (Movimento para a Democracia na Libéria) concluiu-se em 2003. O país se encontra diante do problema de desarmar mais de 85 mil combatentes, 20 mil dos quais são crianças-soldado (alguns têm menos de nove anos). Depois de uma falsa partida em dezembro de 2003, o programa de desarmamento administrado pela ONU iniciou em 15 de abril de 2004. Participando do programa de desmobilização, os combatentes recebem 300 dólares (em duas parcelas, 150 dólares na hora e o restante em três meses, após participação do programa de reinserção na sociedade civil). Deve-se notar que os ex-guerrilheiros não têm a obrigação de se apresentar com a própria arma para entregá-la aos Capacetes-azuis da ONU. Criou-se, assim, uma situação paradoxal com a vizinha Costa do Marfim. Também neste país, de fato, teve início um processo de recuperação das armas dos guerrilheiros das “Forças Novas”, que controlam as regiões do nordeste. Na Costa do Marfim, porém, os ex-guerrilheiros devem entregar as próprias armas, mas em troca recebem uma compensação mais alta (900 dólares). Criou-se, assim, um tráfico de armas da Libéria para a Costa do Marfim, como havia denunciado também a Igreja Católica liberiana (veja Fides de 3 de maio de 2004). Os guerrilheiros liberianos, de fato, procuram ganhar duas vezes, participando do programa de desarmamento no próprio país e daquele na Costa do Marfim. Neste último caso, os liberianos atuam como se fossem combatentes marfinenses ou vendendo armas aos guerrilheiros da Costa do Marfim, em troca de uma porcentagem dos 900 dólares de pagamento pela entrega da arma. O fato que os guerrilheiros possam participar do programa de desmobilização sem entregar as armas está tendo consequências negativas na própria Libéria. Os guerrilheiros, além disso, tendem a entregar armamentos velhos ou inutilizáveis, escondendo os melhores equipamentos. Assim, em 11mil combatentes registrados na primeira semana do programa de desmobilização, somente 8.500 armas foram recuperadas. Levando em consideração que os combatentes poderiam possuir mais de uma arma, trata-se de um resultado que causa desilusão e preocupação. Também aonde o programa de desarmamento obteve bons resultados, existem motivos de preocupação. No Congo Brazzaville, por exemplo, o programa promovido pela IOM e UNDP em julho de 2000 permitiu recuperar em menos de um ano cerca de 28% das 57 mil armas leves em circulação no país. As armas em circulação alimentam assim circuitos ilegais, que promovem a delinqüência nos países vizinhos. A herança de morte constituída por essas armas continua, portanto, a representar uma fonte de desestabilização para inteiras regiões da África. Assim, a arma preferida do banditismo africano não é a pistola, mas o Kalashnikov (AK47), reciclado por ex-combatentes. Os caçadores que imperam no Parque Nacional Kafue na Zâmbia setentrional, por exemplo, utilizam Kalashnikov importados no país por refugiados angolanos. No norte de Camarões, mais da metade dos bandidos de rua são ex-combatentes provenientes da República Centro-Africana, Chade e Nigéria. Por causa da relativa difusão de armas leves no continente, 18% dos homicídios e suicídios com armas de fogo, registrados em um ano em todo o mundo, ocorreram na África. No continente, as armas de guerra são usadas em 35% dos homicídios, em 13% dos roubos e em 2% dos estupros. O país mais atingido pela violência armada é a África do Sul, onde todos os anos ocorrem 30 homicídios com armas de fogo para cada 100 mil habitantes, um dado que coloca o país na segunda classificação mundial, logo atrás da Colômbia. Um desarmamento possível Segundo alguns especialistas, todavia, a situação africana é trágica, mas não desesperadora. As estimativas sobre o número das armas leves em circulação na África Subsaariana caíram recentemente: de uma estatística inicial de 100 milhões de armas, passou-se a 30 milhões (5% de todas as armas leves em circulação no mundo). Trata-se de uma cifra ainda consistente, mas que não torna impossível a actuação de programas de desarmamento. Destaca-se, porém, que cerca de 80% dessas armas estão nas mãos de civis, contribuindo para a instabilidade de diversas zonas da África. Por outro lado, este dado é preocupante porque significa que mesmo com relativamente poucas armas, um número reduzido de combatentes é capaz de comprometer a vida de inteiros países. Esta situação se verifica na África ocidental, onde as guerras civis na Libéria e Serra Leoa enfraqueceram o Estado e destruíram o tecido económico e social das duas nações. Calcula-se que na década de 90, no ápice da violência na região, o total dos insurgidos fosse 47 mil combatentes, com cerca de 60-80mil armas. Levando em consideração as armas compradas para substituir as armas destruídas, perdidas ou roubadas, em 10 anos, a região absorveu não mais do que 250 mil armas. A presença das armas na região determinou fluxos ilegais dirigidos também a países considerados relativamente estáveis, como o Gana, onde, segundo dados oficiais, existem mais de 40 mil armas sob controle do Estrado. Na Nigéria, país atravessado por tensões étnicas-religiosas, que muitas vezes acabam em actos violentos, existiria ao menos um milhão de armas detidas ilegalmente. É preciso levar em consideração que, quando se está em presença de interesses económicos e estratégicos (por exemplo, o controle dos recursos como o petróleo), não existem problemas para os contendores locais para encontrar armamentos. É o caso das três guerras civis que abalaram o Congo Brazzaville em 1993, 1997 e 1998-99. As diversas milícias que combateram receberam um fluxo constante de fornecimentos bélicos. Das 74mil armas leves distribuídas às forças congolesas, 24.500 eram provenientes de arsenais das forças de segurança e 49.500 foram importadas. Entre os países que venderem armas às milícias congolesas estão Israel, África do Sul, China, Bulgária, Rússia. Outros fornecimentos passaram através de Angola, República Democrática do Congo, Gabão e Zimbabwe. O Congo Brazzaville detém o triste primado de ser o primeiro país no qual um elemento não estatal, a milícia Cobra, tomou posse dos mortíferos RPO-A Shmel, de produção russa. Trata-se de raios usados pelas forças soviéticas no Afeganistão e pelas forças russas na Tchetchénia, que utilizam uma mistura de ar e combustível para criar uma explosão que queima o oxigénio na área em volta do alvo. Produz-se, então, uma forte e improvisada descompressão que destrói os edifícios vizinhos e esmaga os pulmões na caixa torácica. Os circuitos criminais internacionais são capazes de fornecer arsenais – instrumentos de morte sofisticados – para as guerrilhas e, portanto, também para terrorismo.