A programação cultural e o interior – Entre a tradição e o futuro

David Miguel Vaz, Diocese de Bragança-Miranda

Em territórios de baixa densidade, programar cultura tem de ser muito mais do que preencher vazios – aqui a cultura deve resistir, reinventar e reivindicar. A cultura faz o impossível. Ergue pontes acessíveis onde há distâncias imensas, dá voz onde o silêncio impera e é capaz de transformar o que é visto como periferia, num centro vivo de identidade, criatividade e inovação. A cultura não deve ser tida como um luxo, mas sim como uma necessidade. Esta forma de encarar a cultura pode revelar-se como o mais justo e equitativo dos elevadores sociais, o mais fiel método de equilibrar as assimetrias geográficas e, acima de tudo, a mais poderosa estratégia de resistência e afirmação identitária.

A cultura, quando bem pensada e genuinamente enraizada no território, não é um apêndice da comunidade – é a sua espinha dorsal. Programar não é apenas calendarizar: é transformar sem trair, criar sem esquecer, inovar sem apagar. O verdadeiro desafio não está apenas em manter viva a memória do passado, mas sim em garantir que ela continue a fazer sentido hoje e a inspirar o amanhã.

 

O passado tem futuro…

Entre desafios estruturais e a necessidade de inovação, a gestão cultural nestas regiões exige um equilíbrio delicado entre o passado e o futuro. É importantíssimo considerar aquilo que recebemos e ser exigentes naquilo que deixamos para quem se seguir. Mas como garantir a continuidade das tradições, sem que se tornem apenas “peças estáticas” de museu? Como atrair novos públicos sem descaracterizar o património imaterial? Estas são algumas das questões que deveriam moldar a programação cultural em espaços periféricos, onde a cultura deve ser interpretada tanto como um recurso, como um motor de desenvolvimento.

Apesar de fluída e dinâmica, a identidade cultural de um território está profundamente ligada às suas tradições, quase sempre transmitidas ao longo de gerações por meio de práticas em comunidade. No entanto, a permanência dessas manifestações parece depender da sua capacidade em dialogar com os tempos atuais, até pelos meios e potencialidades à disposição. Estas tradições, se vistas como algo imutável, correm sério risco de se tornar um artefacto do passado, afastado da realidade contemporânea e sem perspetivas de futuro. Por isso, entendo que a inovação e a criatividade (ou capacidade de adaptação) surgem como elementos essenciais para manter vivas essas expressões culturais, garantindo que continuem a fazer sentido para as novas gerações.

Este equilíbrio entre tradição e inovação na programação cultural é um desafio e implica um processo contínuo de reflexão e experimentação. Não basta ser-se cópia de casos de sucesso. É preciso adequar o pensamento, envolver os locais e conjugar as diferentes etapas do trabalho com o meio onde o nosso objeto de ação se encontra. A introdução de novas formas artísticas e até tecnológicas deve ser pensada de modo a complementar e valorizar o património existente, não a sobrepô-lo ou descaracterizá-lo. Penso que o verdadeiro desafio está em evitar a cristalização do passado, tornando a cultura num organismo vivo, inteiro, em constante evolução. Uma programação bem-sucedida é aquela que permite que a comunidade se reconheça nas diferentes expressões culturais, enquanto simultaneamente abre espaço para a criação e reinvenção.

 

A cultura como resistência

Num mundo cada vez mais globalizado, onde tendências e narrativas culturais tendem a uniformizar-se, as especificidades locais enfrentam o risco de se diluir. A lógica do consumo rápido e da mercantilização das expressões culturais podem esvaziar os significados profundos das tradições, transformando-as em meros produtos turísticos ou reduzindo-as a espetáculos repetitivos, “chave-na-mão” e descontextualizados. A homogeneização cultural ameaça, seriamente, a diversidade e a riqueza das identidades locais.

Neste contexto, a programação cultural pode (e deve) desempenhar um papel crucial, não apenas na preservação do património, mas na sua reinterpretação contínua, garantindo que as tradições evoluam sem perder a sua essência. Mais do que um resgate nostálgico do passado, programar no interior deve ser um processo dinâmico, onde a cultura seja vivida, questionada e reinventada a partir das suas raízes.

O Festival D’ONOR, por exemplo, tem demonstrado que é possível unir a força da tradição com novas leituras contemporâneas, promovendo a identidade local sem a fossilizar. A integração de linguagens artísticas inovadoras e colaborações com criadores de diferentes áreas permite que o evento seja, simultaneamente, um espaço de continuidade e de experimentação. Nesta iniciativa, a programação tem procurado integrar performances artísticas diferenciadas, sem perder de vista os elementos tradicionais que dão identidade ao local e, por consequência, ao evento. A inclusão de novas abordagens e linguagens artísticas (relativamente ao meio onde decorre a ação), demonstra como a inovação pode enriquecer o património cultural, sem o descaracterizar.

Além deste, outros exemplos demonstram a força da cultura enquanto ato de resistência e afirmação. A luta pela cultura mirandesa, nomeadamente as questões relacionadas com a Língua, a valorização das máscaras e das festividades de inverno de Trás-os-Montes, através do seu estudo e de novas produções artísticas, ou os movimentos que promovem a música e a literatura de raiz popular são exemplos de boas práticas de como contrariar a homogeneização e fortalecer o sentido de pertença.

A resistência cultural não está apenas na defesa do passado, mas também na forma como se permite que o “ontem” interaja com o presente (“o hoje”) e o “amanhã”. Apostar numa programação que valorize o local, sem cair em estereótipos ou simplificações, é um dos maiores desafios da gestão cultural em territórios periféricos – e, talvez, a sua maior oportunidade.

 

O amanhã começou ontem…

Nos territórios do interior e neste elevador social chamado “cultura”, onde efetivamente cabem todos, decide-se a evolução da identidade local, a afirmação da diferença, num mundo que insiste em se homogeneizar, e a possibilidade de futuro para tradições que, sem reinvenção, correm o risco de se perder na espuma dos dias.

Assim, na programação, ou encaramos a cultura como força viva e em constante reinvenção, ou aceitamos vê-la diluir-se na banalidade. O amanhã não espera – começou ontem.

David Miguel Vaz, Doutorando em Ciências da Cultura – UTAD

(Os artigos de opinião publicados na secção ‘Opinião’ e ‘Rubricas’ do portal da Agência Ecclesia são da responsabilidade de quem os assina e vinculam apenas os seus autores.)

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