Manuel Castelo Branco, Diocese de Coimbra
Roger Scruton, nas Conferências Gifford que proferiu na Universidade de St. Andrews, reunidas sob o título O Rosto de Deus, recentemente publicado entre nós, ensaia uma leitura da desfiguração do rosto e da profanação do corpo imanentes a mundo consagrado aos prazeres do consumo.
Emmanuel Levinas, em Ética e Infinito, sob o trauma da memória dos campos de concentração, havia já resumido a sua Ética do Rosto: o rosto é o que não se pode matar; o rosto é o que nos proíbe de matar. Pois o rosto do outro, significando o Infinito, é, afinal, o Rosto de Deus.
O rosto como proibição absoluta de matar, ou de infligir sofrimento, implica que o outro não se me apresente como objeto, mas como sujeito. Como sujeito sagrado. E redefine o Eu como sujeito: a subjetividade autêntica é o “Ser para o outro”, a responsabilidade pura por outrem.
O capuz colocado aos que vão morrer no momento da execução é o que possibilita aos assassinos, ainda que legais, a fuga do rosto do outro, o evitar do fatal olhar face a face, a recusa de um espelho que devolve a imagem de Deus.
Não apenas a morte causada e o sofrimento infligido desfiguram o rosto do outro. O consumo do outro, além de o desfigurar, profana-o.
A cultura popular de massas, importada do lado de lá do Atlântico, transporta uma ideologia de profanação do corpo. Nas séries policiais e no cinema de ação os rostos sovados e os corpos espancados, baleados e, por fim, dissecados no frio metal das morgues instauram uma iconografia de banalidade e de dessacralização da morte.
Mas há outras profanações, em vida: as do donjuanismo e da pornografia.
Nas duas versões patológicas e caricaturais do amor, o sujeito amoroso decai em transitório e permutável objeto de uso, abuso e consumo carnal. Consumível, logo de obsolescência breve, em louvor de um outro infinito: o do usar e deitar fora.
Se no donjuanismo o outro é reificado e devorado como presa, na pornografia nem esse duvidoso estatuto alcança.
O objeto da performance pornográfica situa-se no mundo das coisas inanimadas, dos artefactos inorgânicos, dos manequins, dos simulacros, dos fantasmas, do nada.
Ter cara, afirma Ruy Belo em Aquele Grande Rio Eufrates, é uma responsabilidade enorme. Ter corpo, também.
Manuel Castelo Branco
Comissão Diocesana Justiça e Paz