Homilia na celebração da Paixão do Senhor do Arcebispo de Braga
Experiência humana
1. Aproveitando o facto de o nosso Santo Padre provir da área das ciências, gostaria de iniciar esta reflexão com a partilha de um fenómeno científico. Existe na Física um fenómeno chamado arco eléctrico ou arco voltaico, que, composto por dois condutores de electricidade, um de pólo positivo e outro de pólo negativo, uma vez colocados a uma distância aproximada, em certas e particulares condições ambientais, libertam uma das luzes mais intensas que se conhece na natureza.
Liturgia da Palavra
2. Ora, algo parecido acontece em cada liturgia da Palavra, mas hoje de um modo muito mais luminoso. O fenómeno é simples: consiste na aproximação de um texto do Antigo Testamento e de um texto do Novo Testamento, mais concretamente, entre a profecia do Servo de Javé do Livro de Isaías, na primeira leitura, e o acontecimento da Paixão de Cristo, no evangelho de S. João. [1] Juntando estes dois textos, conseguimos destapar o sentido, a lógica e a finalidade do plano messiânico de Deus: produzir uma intensa luz libertadora sobre a humanidade.
Assim sendo, após três longos anos a pregar a liberdade, a justiça e a paz, Jesus recebeu como factura precisamente o contrário: foi julgado em público, despojado das suas vestes, coroado de espinhos, insultado, escarnecido, cuspido, espancado, esbofeteado, chicoteado, humilhado, flagelado e crucificado… tudo isto por ter desafiado o paradigma socio-religioso da sua época. [2]
Diante desse cenário, Jesus opta por um blackout, pois, no dizer do poeta Paul Claudel, “as grandes verdades só se comunicam através do silêncio”. De facto, Cristo venceu a violência daquele sistema social, não porque lhe respondeu com uma violência maior, mas porque silenciosamente a suportou, mostrando toda a injustiça e inutilidade que ela encerra. [3]
Mas no meio desta pedagogia do silêncio [4], e persentindo o grito da morte, há uma pergunta perturbadora que Jesus faz: “Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?”
Análise social
3. Passados 2000 anos, neste tempo em que andamos bombardeados com a palavra crise, a pergunta repete-se agora com mais intensidade, mas com uma diferença substancial: a pergunta altera-se do “onde estava Deus?” ao “onde estamos nós?”, ou seja: do “porque é que Deus nos abandona e permite as desgraças na nossa vida?” ao “porque é que nós consentimos que tantos seres humanos continuem a ser vítimas da miséria social, da violência doméstica, da escravatura laboral, do abandono familiar, do legalismo da morte, da corrupção judicial, das mortes inocentes na estrada, das mentiras dos astrólogos, do desemprego, de uma classe política incompetente e do monopólio dos bancos?”
Preocupa-me o número de suicídios que aumentam diariamente em Espanha, no âmbito das penhoras mobiliárias, e que em breve este drama poderá chegar ao nosso país; as depressões dos jovens portugueses que se fecham nos seus quartos por causa do desemprego; e as famílias cujo frigorífico se vai esvaziando. Os políticos, por seu turno, refugiam-se em questões sem sentido do verdadeiro bem comum; o sistema bancário, depois de ter imposto a tirania de consumos desnecessários para atingirem metas lucrativas, hoje condicionam o crédito justo às jovens famílias portuguesas, com taxas abusivas que dificultam o acesso a uma qualidade de vida com dignidade. [5]
Desafios Pastorais
4. Por tudo isto, olhando agora para a cruz de Cristo, esta informa-nos que Deus, afinal, identifica-se com as vítimas e não com os infractores! Na verdade, Jesus é o autêntico libertador do povo, porque concede crédito (atenção) aos mais pobres, defende o ideal da fraternidade, pagou a nossa dívida com a sua morte e oferece a melhor taxa de juro de sempre: a vida eterna.
Por isso, é urgente difundir aquela frase de Bento XVI, na encíclica Spe Salvi: “um mundo sem Deus é um mundo sem esperança!” Mesmo que já o tenhamos rejeitado/esquecido/ignorado, Deus não desiste de nos procurar e de nos oferecer o seu amor! [6] Diante das nossas dores e sofrimentos humanos, a sua compaixão confere um outro sentido à nossa existência.
A propósito, neste momento gostaria de recordar mais um dos rostos de fé da nossa Arquidiocese: a Beata Alexandrina de Balasar. Ela que, passando um momento de grande sofrimento, afirmou piedosamente: «Os meus sofrimentos continuam a ser cada vez mais, mas mesmo assim eu não temo, porque sei que o meu querido Jesus sofre comigo!» [7] Pode ser incompreensível esta verdade, mas Jesus partilha os nossos sofrimentos: Ele está ao nosso lado! Nunca estamos sós! A aceitação da sua presença nos dramas da vida pode tornar-se a certeza da Sua omnipotência como coragem e força para nunca desesperarmos.
Aceitemos, então, as palavras do Papa Francisco: Também hoje, perante tantos pedaços de céu cinzento, há necessidade de ver a luz da esperança e de darmos nós mesmos esperança.»
5. Para terminar, dentro de momentos vamo-nos arrepiar com a intensidade e emotividade musical dos “Impropérios”, da autoria de Tomás Luis de Victoria. Um texto litúrgico que começa com uma pergunta que Deus dirige ao seu povo, dizendo: “Meu povo, que mal te fiz eu?”
Ora, e neste difícil status social que vivemos, onde muitas vezes deixamos de acreditar no mundo, nos economistas, nos outros, no futuro, na Igreja e em Deus, e onde até corremos o risco de deixar de acreditar em nós próprios, apesar de tudo, Jesus hoje, do alto da Cruz, ilumina-nos e dá-nos a certeza de que, mesmo assim, Deus não deixa de acreditar em nós e nas nossas capacidades para edificar um mundo diferente!
D. Jorge Ortiga, A.P.
Sé Catedral de Braga, 29 de Março de 2013.
[1] Raniero Cantalamessa, Páscoa. Uma passagem para aquilo que não passa, 75.
[2] Cf. D. Jorge Ortiga, O curriculum de Cristo. Homilia na Celebração da Paixão do Senhor – 2012.
[3] Raniero Cantalamessa, Páscoa. Uma passagem para aquilo que não passa, 81.
[4] José Tolentino Mendonça, Nenhum caminho será longo, 216.
[5] Cf. «Revista Sábado», Os bastidores da operação 15, 14 de Março de 2013, 60-61.
[6] Cf. D. Jorge Ortiga, Megafone Pascal. Mensagem para as Visita Pascal – 2013.
[7] Alexandrina de Balasar, Cartas ao Padre Mariano Pinho, 20/12/1934.