A paz pelo rearmamento moral

Jorge Teixeira da Cunha, Diocese do Porto

Hoje vou pregar no deserto. Mas no deserto espero estar em boa companhia. Apresentar a via da defesa civil não-violenta para a paz é uma proposta com escassa actualidade. De um modo geral, a opinião pública, mesmo eclesial, está de acordo com a recente opção da União Europeia de canalizar um montante estratosférico para o rearmamento da nossa parte do continente. O motivo é a previsão do fim da velha aliança militar que tem assegurado a dissuasão pelo medo. Pois, vendo as coisas desde a perspectiva da moral cristã, essa opção de defender a paz pelas armas é tudo menos indiscutível.

A primeira figura que faz companhia a quem propõe a via da resistência não-violente é a do Papa João Paulo II. Tive o privilégio de me encontrar em Roma, nos idos de 1983, altura em que se e celebrava um jubileu extraordinário da redenção. Quem lá esteve nessa altura, lembra-se certamente da figura do então vigorosa do Papa que falava à multidão incontável reunida na Praça de S. Pedro, afirmando com ênfase inaudito: “Nunca mais a guerra!” O Papa conhecia por experiência pessoal a Guerra 1939-45 e estava empenhado na dissolução dos dois blocos antagónicos que então dividiam o mundo e se ameaçavam mutuamente com o uso da bomba nuclear. A sua voz bem timbrada ecoou de forma de tal forma convincente que a história da Europa mudou. O pesadelo do comunismo teve fim alguns anos depois e a ameaça da guerra parecia mais diluída.  Mas a Igreja não tem falado com a mesma credibilidade contra a legitimidade da guerra.

Antes de João Paulo II, tínhamos tido outro Bento XV que, contra toda a previsibilidade, tinha combatido a inutilidade trágica da guerra, durante a segunda década do século XX. Em vista dessa atitude, a hostilidade contra Bento XV foi terrível nesses anos. Ele falou sozinho contra tudo e contra todos. E conheceu sobretudo a oposição dos de dentro, como é o caso do teólogo dominicano A. D. Sertillanges que, muito seguro da sua moral neo-escolástica, defendia a ideia de guerra justa e pregava do púlpito de Notre-Dame de Paris contra o Papa e a “sua paz”. Já depois do fim da Grande Guerra, Bento XV escreveu uma encíclica sobre o caminho cristão da pacificação (“Pacem, Dei Munus”), texto tão importante como a muito mais conhecida “Pacem in Terris”, de 1963. Honra seja a ambos estes servidores da Cátedra de Pedro, que, cada um a seu modo, estão do lado da condenação, quando se trata de desmontar o raciocínio que justifica o caminho da paz mediante a luta armada.

A condenação da beligerância não pode ser inocente e acrítica, uma vez que a evidência do conflito não sofre discussão. Mesmo assim, do ponto de vista cristão, não parece haver dúvida de que o caminho da paz é o da defesa civil não-violenta. Esse caminho tem precedência mesmo quando se trata da resposta a uma agressão actual injusta, a chamada guerra defensiva. As principais razões que fundamentam este caminho para a paz são uma razão teológica, uma vez que a moral de Jesus vai nesse sentido. Há também uma razão antropológica, uma vez que a defesa não-violenta desmonta o mecanismo que sacrifica vítimas inocentes ou culpadas em favor da paz. Defender sem armas coloca o sofrimento redentor do lado do sujeito que se oferece voluntariamente para enfrentar a violento, e não do lado de quem sempre é apanhado nos meandros de uma decisão política pela guerra. Para além disso, a defesa não-violente tem-se mostrado mais eficaz para superar as guerras e as injúrias do que a beligerância declarada.

Então o que se deve fazer para pacificar as sociedades pela via da defesa cível? Será a formação e a organização de pessoas e grupos que professem convictamente a defesa não-violenta e estejam decididas a enfrentar, desarmadas, o violento. Essas pessoas devem ser encontradas e organizar-se em ambos os lados dos povos em conflito. Entre estas pessoas, deve crescer o número de objectores de consciência ao serviço militar em armas. Quando o número de pessoas e de grupos não-violentos se torna significativo, a probabilidade da guerra declarada diminui sempre mais. Nenhum ditador consegue derrotar um povo inteiro que recusa pegar em armas.

Os cristãos nunca foram unânimes na recusa do serviço militar, mesmo no tempo da perseguição. Mas o número e a qualidade dos não-violentos e dos pacifistas foram sempre visíveis em todas as épocas da história. Os dias de hoje merecem que se relance esta discussão.

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