Joaquim Carreira das Neves – Professor UCP A paz esteja convosco Nestes tempos de guerra – mais uma! – os apelos de paz surgem de todos os cantos do mundo e de todas as classes sociais: políticos, analistas, pensadores, religiosos. A guerra é sempre uma ameaça à paz. A guerra nunca é um bem em si, ao contrário da paz. À revelia da norma romana: si vis pacem, para bellum (se queres a paz, prepara a guerra), devemos responder que nenhuma guerra preventiva é defensável enquanto existirem modos e maneiras de resolver os problemas. Judeus, cristãos e islâmicos, têm todas as razões para viverem em paz se forem sinceros com os textos fundantes das suas respectivas religiões. É facto que há textos no Antigo (Primeiro) Testamento e no Corão a favor da guerra “santa”, mas trata-se de cultura história e não de desígnio de Deus. O problema (mal necessário?) é que esta cultura histórica se transformou em memória e letra “sagrada”, e não há nada pior do que sacralizar uma cultura histórica – puramente temporal – em desígnio divino. Trata-se de um assunto muito complexo, de vertente exegética, que não pode ser aqui devidamente tratado. Antes de estudar, embora muito sumariamente, a cultura da paz, através da semântica do lexema “Paz” no contexto político e religioso dos gregos, judeus, cristãos e islâmicos, convém que nós, cristãos católicos, nos consciencializemos sobre o sentido da paz nas nossas eucaristias. O drama eucarístico – é de um drama que se trata – abre e fecha com o desiderato explícito da paz: A graça e a paz de Deus, nosso Pai e de Jesus Cristo, nosso Senhor, estejam convosco. Ide em paz e o Senhor vos acompanhe. O drama eucarístico tem por fim apresentar a pessoa de Jesus Cristo em toda a sua realidade: o Homem, o Deus, o Messias, o Salvador. É aquele que em si compendia “profeticamente” todo o Antigo (Primeiro) Testamento, razão porque não há eucaristia sem duas ou três narrativas da Bíblia, passando, depois, à acção “sacramental” da memória do pão (corpo) e vinho (sangue), terminando com a oração do Pai Nosso e com as preces pela paz antes de comungarmos sacramentalmente o Senhor da Paz: Livrai-nos de todo o mal, Senhor, E dai ao mundo a paz em nossos dias… …………………………………………………. Senhor Jesus Cristo, que dissestes aos vossos Apóstolos: Deixo-vos a paz, dou-vos a minha paz…. E dai-lhe a união e a paz, segundo a vossa vontade. Mais ainda, antes da comunhão sacramental do Senhor da paz, o presidente convida todos os participantes a saudarem-se com o ósculo ou o abraço da paz. Se a Igreja nos apresenta o drama eucarístico envolto na perspectiva da paz é porque a mesma paz é um dom de Deus, sempre a receber e a adquirir. É porque esse dom é frágil nas mãos dos homens/mulheres, como um vaso, ao mesmo tempo, muito precioso e muito quebradiço. Que o diga a guerra actual. O cristão católico entra na liturgia eucarística com uma vontade “jussiva” de paz e sai com a certeza de que adquiriu, através do perdão de Deus, do perdão dos irmãos, da comunhão do drama da paixão, morte e ressurreição do Senhor da Paz, essa mesma paz. Viver em paz é viver na paz d’Aquele que deu a vida por essa mesma paz, crucificando no Gólgota as razões de guerra religiosa (Sinédrio) e política (Pilatos) que o levaram à morte. Na cultura grega, a eirènè (paz) tem um sentido social e político. É um fenómeno humano contrário à guerra. Viver em paz é opor-se à guerra (polemos). Nos tratados políticos entre povos e nações sobre a paz, a parte do vencedor impõe as suas decisões ao vencido, mas numa atitude de amizade e não apenas de vingança (Platão, Leg. 1. 628b: “Que a derrota de uma parte e a vitória da outra traga a paz depois da guerra civil, e que se agradeça a reconciliação através da amizade (philia) e da paz…”). Os autores que estudam mais profundamente o assunto da paz na cultura grega levantam sempre o reparo sobre a falha da paz como sentimento interior. A metafísica grega não trata da paz. A calma ou a paz interior é designada pela palavras euthymía (“segurança interior” e “bom humor”) e galènè (“serenidade”). No Antigo (Primeiro) Testamento a palavra Paz (Shalom) aparece umas 280 vezes e significa o “bem estar” no seu sentido absoluto: sentir-se bem de saúde, em paz consigo e com os outros. A paz é, pois, um bem humano e social (Dn 3, 31: “O Rei Nabucodonosor a todos os povos, nações e línguas da terra: que a vossa paz seja completa”). Mas o AT apresenta também – e sobretudo – a ideia religiosa da paz, de tal modo que o Deus YAHWEH se apresenta como o Deus da Paz e se confunde com a própria paz (Jz 6, 24: “Jedeão construiu um altar a YAHWEH e deu-lhe o nome de YAHWH-PAZ”; Is 45, 7: “Eu sou YAHWH, o que traz a PAZ”). A verdadeira paz não é a do simples bem estar social, económico e físico, mas aquela que Deus nos dá, isto é, desde que se esteja em paz com Deus. E só se está em paz com Deus desde que se seja fiel à aliança com o mesmo Deus. Deus fez a sua aliança com o seu povo, que o mesmo é dizer, Deus estabeleceu uma família, onde há regras e mandamentos a cumprir. A paz não é uma questão apenas social e política. É um princípio e um fim que dimanam de Deus, um Deus que não impõe, mas apenas propõe. Depende do homem pertencer ou não à família de Deus. E uma vez que a realidade social e política do povo de Israel nem sempre caminha par e passo com a paz de Deus, os profetas projectam essa paz total e definitiva para os tempos messiânicos (Is 9, 5-6: “Porquanto um menino nasceu para nós…e o seu nome é: Conselheiro-Admirável, Deus herói, Pai – Eterno, Príncipe da Paz”; Ez 34, 25: “Eu YAHWEH … estabelecerei uma aliança de paz com o meu rebanho”; ver Mq 5, 4; Zc 9, 10; Sl 72, 7). Chegamos ao Novo Testamento, ao do Messias, Príncipe da Paz. No Evangelho da infância de Lucas, o Menino Jesus, na perspectiva do cântico profético de Zacarias, nasce para “iluminar os que jazem nas trevas e na sombra da morte e dirigir os nossos passos no caminho da paz.”(Lc 1, 79). Os “caminhos da paz” são os caminhos messiânicos da salvação escatológica. É o que o “profeta” Simeão, protótipo e ícone de todos os que esperam a salvação, profere antes de morrer: “Agora, Senhor, segundo a tua palavra, deixa ir (morrer) em paz o teu servo” (Lc 2, 29). O verbo apoluô encontra-se no presente: agora todos os crentes em Jesus Cristo podem morrer/partir em paz “porque viram a Salvação ofertada por Deus a todos os povos, a Luz revelada às nações e a Glória de Israel” (vv. 30-32). A “paz” cristã é a paz messiânica, fruto desta Salvação/Luz/Glória. Ela abarca o mundo inteiro, mas começou por se manifestar na família de Israel. O mesmo dizem os anjos de Belém: “Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens do seu agrado” (Lc 2, 14). O genitivo qualificativo eudokías opõe-se aos “filhos da ira divina” de Ef 2, 3. O Messias é o portador da graça da salvação para todos os que Deus ama – agraciados de Deus. Durante a chamada “vida pública” de Jesus, ele pede aos discípulos que levem a paz a todas as famílias (Mt 10, 12-13; Lc 10, 5: “Sempre que entrardes em qualquer casa, dizei primeiro: a paz esteja nesta casa”). Trata-se da salvação pela fé em Jesus. Só desta maneira é que pode haver Reino de Deus ou Soberania de Deus, centro da pregação de Jesus e seus discípulos: “Os tempos chegaram ao fim, o Reino de Deus está presente, convertei-vos e acreditai no Evangelho” (Mc 1, 15 e par.). Só há Reino/Soberania de Deus onde houver a paz de Deus, que é mais do que a paz política e social, pois exige conversão e Evangelho, que o mesmo é dizer perdão e amor. Foi assim que Jesus se dirigiu à mulher pecadora, arrependida e perdoada: “Vai em paz” (Lc 7, 50 e par.; ver Lc 8, 48 e Mc 5, 34). Foi assim também que o Ressuscitado se dirigiu aos discípulos: “A paz esteja convosco” (Lc 24, 36 e par.) e se despediu dos seus discípulos nos discursos de Adeus, segundo a versão do quarto Evangelho: “Deixo-vos a paz, dou-vos a minha paz. Não é como a dá o mundo, que eu vo-la dou…”(Jo 14, 27). “Anunciei-vos estas coisas para que, em mim, tenhais a paz” (Jo 16, 33). A paz é dada/oferecida/agraciada e não merecida. Não é a força do poder em guerra quente ou fria que estabelece a paz, mas a força do Reino do Ressuscitado. A omnipotência do Ressuscitado, que tudo pode e tudo sabe, não depende duma sabedoria e dum poder apenas humanos, mas da sabedoria de quem veio de Deus, Senhor e Criador, e o homem que recebe a paz dessa omnipotência, recebe-a através do seu coração colado ao coração do Omnipotente: a paz passa do coração de Deus ao coração da sua criatura, do mundo de Deus ao mundo da “inabitação” do crente em Jesus. Nenhuma bomba, avião, submarino, míssil, divisão militar se pode comparar com esta omnipotência da paz de Deus. Talvez que a melhor passagem bíblica sobre Jesus como sujeito e objecto, ao mesmo tempo, de paz e salvação, seja a de Ef 2, 14-18: “Com efeito, Ele é a nossa paz, Ele que , dos dois povos, fez um só e destruiu o muro de separação, a inimizade: na sua carne, anulou a lei, que contém os mandamentos em forma de prescrições, para, a partir do judeu e do pagão criar em si próprio, um só homem novo, fazendo a paz, e para os reconciliar com Deus, num só Corpo, por meio da cruz, matando assim a inimizade. E, na sua vinda, anunciou a paz, a vós que estáveis longe e paz àqueles que estavam perto. Porque, é por Ele que uns e outros, num só Espírito, temos acesso ao Pai” (ver Rm 5, 1-2; 16, 20; 1Cor 7, 15; 2Ts 3, 16; Hb 13, 20). No Corão islâmico, Deus (Alá), na sura 59, 23, é descrito assim: Ele é Deus! Não há Deus fora d’Ele! Ele é o Rei, o Santo, a Paz, Aquele que testemunha da sua própria veracidade. O Vigilante, o Todo-Poderoso, O Todo-Forte, o Todo-Grande. É facto que há muitos textos no Corão sobre a “guerra santa” contra os árabes politeístas. Embora os responsáveis religiosos islâmicos, nestes tempos difíceis de contrastes culturais e de guerra, refiram apenas a guerra maior, que tem a ver com a guerra interior de cada um em prol da sua conversão à submissão islâmica, ou, então, os textos sobre a guerra activa dos islâmicos como defesa em caso de ataque dos inimigos (suras 2, 190; 2, 191; 2, 193; 8, 15), a verdade é que há outros textos reais sobre a obrigação da guerra santa contra os infiéis (suras 2, 216; 4, 74; 4, 76; 4, 77b; 4, 89b; 4, 95; 8, 65; 9, 5; 25, 52; 61, 4; 66, 9). Em meu entender, os textos devem ser compreendidos a partir do dado cultural dos tempos de Maomé e califas subsequentes. Assim como os judeus combateram os cananeus durante dois séculos para obterem uma terra onde pudessem habitar, transformando, subsequentemente, essas guerras em guerras de Deus, também Maomé e califas que se lhe seguiram impuseram a guerra santa aos infiéis árabes daquele tempo por mor da sua salvação e da grande UMA islâmica. Mas nem o Deus dos judeus nem o de Maomé deve ser tido ou achado nestas guerras. Foi um problema histórico e cultural, com as suas consequências. Os crentes judeus e islâmicos daqueles tempos viram aquelas guerras como guerras de Deus. O mesmo aconteceu com as cruzadas cristãs e até com as guerras nacionalistas da Europa cristã. O verdadeiro Deus de judeus, cristãos e islâmicos, nada tem a ver com tais guerras. Há que interpretar a história e desfazer equívocos. Não se trata de apagar os textos, mas, aos olhos da fé dos nossos dias, devemos relativizar os mesmos textos e libertar o verdadeiro e único Deus desses textos. Aos judeus, cristãos e islâmicos só há uma atitude de vida de fé: a da paz. A PAZ ESTEJA CONVOSCO. Pe. Joaquim Carreira das Neves Professor UCP