A Páscoa sem Cristo

Onde se fala de ovos, coelhos e Jesus Em cada mês de Dezembro, correm rios de tinta a criticar a “excessiva comercialização” do Natal, mas fica-se por perceber como é que as mesmas preocupações não aparecem quando a Páscoa, cada vez mais, se tornou numa desculpa para vender ovos de chocolate e amêndoas. Para mais, a imagem de Cristo crucificado/ressuscitado não tem, nem de perto nem de longe, a visibilidade dos populares presépios. Com a devida vénia, retirámos do blogue “A Quinta Coluna” um excerto de uma história de Páscoa: “- Pai, o que é Páscoa? – Ora, Páscoa é … bem … é uma festa religiosa! – Igual ao Natal? – É parecido. Só que no Natal comemora-se o nascimento de Jesus, e na Páscoa, se não me engano, comemora-se a sua ressurreição. – Ressurreição? – É, ressurreição. Marta, vem cá! – Sim? – Explica a esta criança o que é ressurreição para eu poder ler o meu jornal descansado. – Bom, meu filho, ressurreição é tornar a viver após ter morrido. Foi o que aconteceu com Jesus, três dias depois de ter sido crucificado. Ele ressuscitou e subiu aos céus. Entendido? – Mais ou menos … Mamã, Jesus era um coelho? – Que é isso menino? Não me diga uma coisa destas! Coelho! Jesus Cristo é o Pai do Céu! Nem parece que este menino foi baptizado! Jorge, este menino não pode crescer assim, sem ir à missa pelo menos aos domingos. Até parece que não lhe demos uma educação cristã! Já pensou se ele diz uma asneira destas na escola? Deus me perdoe! Amanhã vou matricular este fedelho na catequese! – Bom, se Jesus não é um coelho, quem é o coelho da Páscoa? – (gritando) Eu sei lá! É uma tradição. É igual ao Pai Natal, só que em vez de presentes, ele traz ovinhos. – O coelho põe ovos? – Chega!”. Aquela que, em teoria, é a “Festa das Festas” do Catolicismo, não consegue fazer passar uma imagem de alegria, marcada pelos séculos de tradição em que a vertente dolorista das celebrações da Semana Santa se sobrepôs ao anúncio da Ressurreição. Ou então, como dizia há dias uma empregada de limpeza, porque “não há dinheiro na Páscoa como há no Natal” – já se sabe que fazer festa sai caro… Páscoa é cada vez menos sinónimo de ressurreição e, cada vez mais, igual a férias. Alfredo Teixeira, professor da UCP, afirma que hoje “há facilmente uma erosão grande na forma como as pessoas lidam o próprio calendário, que tem uma organização simbólica”. “À medida que as pessoas se afastam da integração identitária na Igreja, o próprio ritmo do calendário começa a ser apropriado pelo mercado, pela lógica do lucro”, acrescenta. Os sintomas de “crise” no impacto social da Páscoa, enquanto celebração cristã, mais não são, portanto, do que o espelho do que está a acontecer no terreno do religioso na nossa sociedade. Nada que preocupe este sociólogo: “essa figura que se faz Deus e leva a vida humana até às últimas consequências guarda força social, como se viu nas reacções ao último filme sobra a Paixão de Cristo”. A relevância cultural da celebração da morte e ressurreição de Cristo vislumbra-se de forma clara nos dois ciclos de formulações diferentes na vivência da Semana Santa e do Tríduo Pascal: um rigorosamente litúrgico, universal, o outro marcado por manifestações de piedade particulares, de onde sobressaem as procissões. “A Paixão sempre teve algo de diferente em relação ao Natal – mais doméstico, com dimensão miniatural. As celebrações pascais são vividas na rua, estão ligadas a uma representação pública, acentua-se o drama de Cristo na sua dimensão material, os aspectos que podem ser traduzidos em movimento ou encenação”. A categoria de “folclore” a que muitas dessas manifestações populares são reduzidas acaba, por isso mesmo, por se revestirem de uma profunda injustiça. “Por vezes faltou à Igreja a capacidade de combinar essas manifestações num contexto de vivência espiritual e litúrgica, onde o problema do sofrimento de Cristo fosse articulado com o anúncio da sua ressurreição”, sentencia Alfredo Teixeira.

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