«A Paixão de Cristo»

O comentário da Associação de Imprensa Missionária Não deixa de ser significativo que um filme sobre a Paixão de Jesus, esteja a ser um dos filmes mais mediáticos dos últimos tempos, tanto mais que se trata de um filme sem concessões nem atenuantes de qualquer espécie. Não há revista ou jornal que não se tenha sentido na obrigação de ir ver o filme e sobre ele emitir a sua opinião. Penso que este filme pode ser abordado de diferentes ângulos. Sob o ponto de vista histórico, o filme, salvo um ou outro pormenor pouco relevante, é fiel à narrativa evangélica. Não nos reserva efectivamente surpresas. A paixão do Senhor, na narrativa evangélica, é de facto algo de dramático e terrível e só a rotina com que nos habituamos a esta leitura lhe pode ter tirado a dramaticidade. Estilizamos de tal maneira a paixão de Cristo que a esvaziamos de toda a sua dramática profundidade. A uma espiritualidade medieval que se comprazia na flagelação e na tortura, opusemos uma espiritualidade soft, onde a cruz tem dificuldade em entrar. Penso que este é o primeiro mérito do filme de Gibson: restituir à paixão do Senhor tudo o que ela teve de horrível e hediondo. Diante dos nossos olhos passa todo o horror de uma fúria popular capaz de todos os extremos. Nem se diga que se trata de um sofrimento pelo sofrimento. O filme é suficientemente elucidativo para nos ir recordando, em breves flashes, os valores que a paixão do Senhor encerra. Uma leitura cristã deste filme permite-nos ainda ver nesta Paixão, a paixão de todos os justiçados, todos os silenciados pelas forças do ter ou do poder, todas as vítimas da exclusão e da violência. Em todos os tempos, a crueldade humana condena inocentes: os campos de concentração, as exterminações colectivas, as vidas amordaçadas não fazem senão continuar e repetir a paixão do Senhor. O Corpo de Cristo continua a ser golpeado até à exaustão e não faltam carrascos que o continuem a crucificar, nem Pilatos que continuem a lavar as mãos. A paixão de Cristo é um grito feito da dor todos os inocentes justiçados. No entanto, é preciso dizer-se, Gibson não nos abre esta janela. O filme é meramente narrativo, fechado no seu próprio enredo. Sob o ponto de vista da engenharia cinematográfica, merecem destaque a fotografia e o movimento que o realizador conseguiu imprimir ao filme. Penso, no entanto, que Gibson não resistiu à retórica e à espectaculosidade fácil. Os grandes planos, a insistência nos movimentos e nos gestos de pormenor, atingem aqui proporções dantescas. É um filme excessivo, desde a primeira à ultima cena. Basta recordar o desespero de Judas, a flagelação, a coroação de espinhos, a crucifixão. Até a resistência física de Cristo ultrapassa tudo o que se possa imaginar. Os sentimentos tomam o corpo dos personagens e apoderam-se de todo o écran. O clímax não dá tréguas ao telespectador e prende-o de tal maneira à cadeira, que ninguém ousa abandonar a sala. Mesmo depois do filme acabar, o silêncio apoderou-se de tal maneira de nós, que vem connosco para a rua a doer e a incomodar. Quanto ao tão discutido anti-semitismo do filme, não penso que essa preocupação tenha estado nas intenções do autor, mesmo se se conhece a sua militância religiosa. Nada no filme nos pode induzir a isso, mesmo se se sublinha, talvez demasiado, o contraste entre a leitura romana do processo de Jesus e a cegueira judaica. No entanto, sendo o problema judaico um problema em carne viva, é evidente que o filme poderá acordar uma memória incómoda que a Igreja Católica procurou já purificar com o Vaticano II . Adélio Torres Neiva, Publicação conjunta da Missão Press – Associação de Imprensa Missionária

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