A morada de Deus no meio dos Homens

Homilia do Cardeal Patriarca na Inauguração do Centro Diocesano de Espiritualidade Turcifal, 8 de Dezembro de 2003 Irmãos e Irmãs, 1. Sinto, neste momento, aquela experiência da graça, em que vários acontecimentos e realidades da vida concreta convergem na realização, no meio de nós, do projecto divino da salvação. A primeira convergência pressinto-a entre a festa litúrgica que hoje celebramos, a Conceição Imaculada da Virgem Maria e a Inauguração deste Centro de Espiritualidade, consagrado a esse Coração Imaculado de Maria: é um mistério de fé e de graça a cruzar-se com a nossa iniciativa humana, na busca da graça e da salvação; é a sintonia entre a acção de Deus e a da Igreja, realizando o mesmo desejo, eterno como Deus, o desejo da salvação. E este eterno desejo de Deus é o de habitar no meio dos homens, em comunhão alargada de amor. Esse é o anúncio do vidente do Apocalipse: a Cidade definitiva, a nova Jerusalém, é anunciada como sendo a morada de Deus com os homens. Nela, “Deus habitará com os homens: eles serão o Seu Povo e o próprio Deus, no meio deles, será o seu Deus”. É belo pressentir que todo o eterno desígnio da salvação se resume, pela parte de Deus, a um desejo de intimidade e proximidade com os homens que criou. Mas como poderia Deus co-habitar com os homens, nessa comunhão de vida e de amor? Ele não tem corpo para habitar uma casa no meio da cidade dos homens. E no entanto este desejo de co-habitação de Deus com o seu Povo inspira a simbólica religiosa durante milénios. Deus torna-se hóspede amigo, que entra na tenda de Abraão, trazendo boas notícias; faz-se peregrino e viandante, acompanhando os justos de Israel na sua busca de fidelidade à Aliança; é esposo terno, na intimidade do tálamo, torna-se guia audaz, conduzindo o seu Povo na travessia do deserto e nas batalhas de Israel, aceita ser conselheiro amigo, sempre disponível, na tenda da reunião, no meio do acampamento. E por tudo isso, os Reis de Israel decidem construir-Lhe uma Casa no meio da cidade. Se Ele desejava habitar no meio do Seu Povo, Ele precisava de uma Casa no meio da cidade, onde os homens o pudessem escutar, pedir auxílio, oferecer-Lhe presentes, manifestações normais de uma convivência. Deus parece não se ter entusiasmado muito com essa ideias de os homens Lhe construírem uma Casa no meio da cidade. Condescendeu porque eles ainda não podiam perceber como e onde Deus queria habitar no meio dos homens. Demasiadamente marcados pela distância infinita que separava os homens de Deus, não podiam sequer imaginar que o coração do homem era a única morada de Deus entre os homens, possível e desejada por Deus, e que essa morada só Deus a podia construir, tal como criara o primeiro homem à Sua imagem e semelhança. A primeira vez que Deus habitará realmente no meio dos homens é em Jesus Cristo, Verbo eterno de Deus encarnado. E a morada que O acolherá só pode ser construída por Deus: o seio imaculado de uma Virgem Imaculada. Rezávamos assim na oração colecta desta celebração: “Senhor Deus, pela Imaculada Conceição da Virgem Santa Maria, preparastes para o Vosso Filho uma digna morada”. O seio imaculado de Maria é a morada digna para acolher o Filho de Deus; mas Jesus Cristo será a presença perfeita e definitiva de Deus no meio dos homens. Para isso ser possível, Deus fez-Se homem. Ele manifestará, em realidade humana, a santidade e a glória do Deus três vezes santo. O filho que é anunciado a Maria, a Mãe de coração imaculado, “será grande e chamar-se-á Filho do Altíssimo. O Senhor Deus Lhe dará o trono de seu Pai David, reinará eternamente sobre a Casa de Jacob e o Seu reinado não terá fim”. 2. Perfeita em Maria, plena em Jesus Cristo, a morada de Deus com os homens só estará completa na nova Jerusalém. Até lá é a longa caminhada da Igreja, destinada toda ela a ser o templo do Senhor, o santuário onde Deus convive com os homens. Jesus prometera aos discípulos: “aquele que Me ama, guardará a minha Palavra, meu Pai o amará e nós viremos a ele e faremos nele a nossa morada” (Jo. 14,23). Cada cristão é chamado a ser a morada de Deus no meio dos homens. Deus habitará, então, na cidade dos homens, não porque tenha uma casa no meio da cidade, mas porque encontrou morada no coração de cada cristão. E aí Maria, a primeira morada de Deus entre os homens, é o anúncio vivo da santidade exigida para que alguém possa ser morada de Deus. Para que ela pudesse ser essa morada santa, capaz de receber o Deus Santo, Ele preservou-a de toda a mancha desde o primeiro momento da sua existência. Vencer o pecado no nosso coração humano, tornando-o capaz de acolher o Deus Santo, eis a aventura da graça que está no centro de toda a pedagogia pastoral da Igreja. É o Espírito criador de Deus em acção através da força sacramental da Igreja. Este Centro de Espiritualidade estará ao serviço dessa pedagogia da Igreja na sua acção santificadora, para que cada cristão e a Igreja toda sejam cada vez mais o templo santo onde Deus habita na cidade dos homens. Desejamos que todos os que vierem a servir-se dele, procurem, antes de mais e acima de tudo, a intimidade com Deus, para partirem daqui mais dignos de serem a morada de Deus no meio dos homens. Para isso: * Ele oferecerá o silêncio e o recolhimento. Ajudado pela beleza natural que nos envolve, o silêncio será construção de cada pessoa e de cada grupo, na certeza de que só no silêncio abriremos o nosso coração ao mistério insondável de Deus. * Ele será espaço de reconciliação e conversão. Se Deus, para que Maria fosse digna morada para o Seu Filho, interveio com a Sua força criadora, libertando-a de toda a mancha, como precisaremos de abrir o nosso coração pecador à força transformadora da graça, para que cresça essa intimidade amorosa entre nós e Deus. Uma pedagogia da conversão e da reconciliação estará sempre a marcar o ritmo do serviço oferecido por este Centro. * Para isso ele será espaço de escuta da Palavra. Competirá à equipa pastoral que orientará o Centro escolher diversas formas de escuta da Palavra, desde a pregação, à “lectio divina” e à leitura orientada do texto sagrado. Desejo muito que a qualidade da proposta esteja sempre à altura do mistério da Palavra, sacramento vivo do Verbo de Deus. * Todos estes elementos ajudarão este Centro a ser um espaço de oração, de aprendizagem da oração. Tenho a certeza de que a maior parte daqueles que o procurarem, virão para rezar. Não sei se todos estão conscientes de que precisam de aprender a rezar. Que quem recebeu do Senhor o dom da oração, ensine os outros, através do seu testemunho. Nesta pedagogia da oração não diria que a regra é “cada um ensina o que sabe”, mas antes que cada um dê testemunho do dom que recebeu. Aqui descobriremos que toda a verdadeira oração, mesmo quando individual, é sempre expressão de toda a Igreja. A Liturgia terá de ser a escola inspiradora de uma pedagogia da oração. * Aqui receberemos um dinamismo novo para a missão. Perceberemos que aqueles onde Deus habita, Ele os envia a testemunhar o Seu amor. Encontremo-nos com Deus para Ele nos enviar sempre de novo. 3. Este Centro significou um grande esforço material da Igreja de Lisboa. Nele gastámos tudo o que tínhamos, mesmo mais do que tínhamos. É como na parábola evangélica, que compara o Reino a um tesouro escondido num campo e que quem o descobre, vende tudo o que tem para poder comprar aquele campo. Ele concretiza uma opção pastoral clara, radicada numa certeza: a renovação e o crescimento da Igreja de Lisboa têm de assentar num aprofundamento da oração e na construção de uma espiritualidade eclesial que seja o sal que a tudo dá sabor e a sabedoria que conduz os espíritos e os corações. Consagrado ao Coração Imaculado de Maria terá sempre nela, a Mãe da Igreja, o modelo inspirador e a pedagoga da graça que nos guiará, nas aventuras do espírito, com a ternura solícita de uma Mãe. A ela confiamos, desde o primeiro dia, toda a actividade deste Centro. † JOSÉ, Cardeal-Patriarca

Partilhar:
Scroll to Top