A Misericórdia para um mundo de Justiça

Palavras de D. Jorge Ortiga na procissão das velas de 12 de Julho Caros discípulos de Jesus Cristo e peregrinos nos caminhos de Maria: Digo-vos a vós que me escutais. Estas são as palavras que introduzem o Evangelho desta eucaristia. Jesus dirige-se aos discípulos que escutam a proclamação das bem-aventuranças, que na versão de Lucas, é feita na planície depois de Jesus, no monte, ter rezado e escolhido os Doze. 1. Convite à diferença Também os pecadores amam a quem os ama e emprestam a quem lhes poderá retribuir; Vós, porém… Jesus, o profeta do Evangelho, da proximidade do Reino de Deus, interpela os que escolheu e O seguem à diferença, à novidade de vida que se expressa de um modo particular no anúncio do dom recebido, ou seja, a misericórdia de Deus revelou-se de forma plena no hoje do Messias. Daí que o discípulo deva ser aquele que canta com Maria: Olhou para a humildade da Sua serva, a Sua misericórdia permanece de geração em geração. Ela, a primeira e a mais excelsa discípula do seu filho e Filho de Deus, descobre que o Deus de Abraão, da Aliança, é fiel às Suas promessas e, agora, quando o tempo se cumpriu e chegou à plenitude, visita o Seu povo através do Filho, rosto do Seu Amor misericordioso. O discípulo experimenta a misericórdia de Deus e visita os outros levando-lhes gestos de misericórdia e, em simultâneo, proposta de conversão. Deus, Pai rico de misericórdia, que sente alegria em perdoar, que prepara uma festa para o filho perdido nos seus devaneios de juventude, que só sabe dar e dar-Se, não é, todavia, indiferente. A Escritura para expressar a sensibilidade de Deus face ao mal recorre à linguagem dos sentimentos humanos: a ira quer traduzir precisamente a paixão, o sofrimento, a paciência, o pathos de Deus que perdoa os pecados, acolhe o pecador arrependido mas está sempre do lado do oprimido, do injustiçado, do pobre, do marginalizado. O clamor do inocente perseguido, rejeitado, instrumentalizado pelos poderes deste mundo chega aos Seus ouvidos, comove-O e Deus não deixará de intervir para fazer justiça, ou seja, para salvar, redimir, instaurar uma nova ordem, onde a Paz e a justiça hão-de resplandecer. Ele não quer a morte do pecador, mas antes que se converta e viva. Toda a Sua pedagogia paterna, que corrige, admoesta, exorta, ameaça não é atitude arbitrária dum ser todo-poderoso, mas nasce dum coração que chora com o mal dos Seus filhos. A ira divina não é o mal-humor por ver a Sua majestade desrespeitada, mas a opção soberana de consolar os atribulados e isto põe em causa aquelas forças que, orgulhosamente, pretendem decidir, quais pequenos deuses, no lugar do Deus vivo e verdadeiro. 2. A misericórdia exige fidelidade O povo de Israel experimentou na história das suas infidelidades à Aliança esta pedagogia divina: pela boca dos profetas, exortava-o à conversão, ao voltar-se para Ele e com ameaças procurava evitar a desgraça; nem sempre o povo entendeu e o desenlace dramático tornou-se inevitável. Na interpretação destes episódios da história, os textos falam de castigo, da ira de Deus. Estas expressões indiciadoras da condescendência divina nas palavras e categorias da experiência humana escondem na sua profundidade um dado fundamental: Deus não é cúmplice, na sua indiferença, do mal da humanidade mas antes como pai amoroso tenta tudo e sempre que os seus filhos encontrem a fonte da vida não nas cisternas vazias e secas, nas palavras de Jeremias, mas no rochedo que, pela Sua generosidade e prodigalidade, pode tornar-se torrente de água no deserto do homem. Sempre na revelação se afirma a primazia do dom: a Sua ira dura um momento, a sua misericórdia é para sempre. E Paulo na 1ª Carta aos Tessalonicenses dirá que para os eleitos o Dia do Senhor não é de ira mas de salvação (sotería). Maria no seu Magnificat conjuga bem as dimensões da misericórdia: a Sua misericórdia permanece de geração em geração na acção salvífica que se traduz em Derrubou os poderosos dos seus tronos e exaltou os humildes! Os Faraós e os Herodes de todos os tempos não se sentirão tranquilos com o Deus que exige a libertação do Seu povo e que envia o Seu Filho, feito menino, para ser Rei no Amor, na Paz, na Justiça e na Verdade. Os filhos deste rei são chamados a ser como ele: misericordiosos, dando mais do que se pede, bendizendo, perdoando. Esta é a violência dos pacíficos que não aniquila o adversário, mas que pela energia do amor o desarma, o converte, o salva do seu orgulho, da sua prepotência, dos tronos da idolatria. Quem se ajoelha para adorar a Santíssima Trindade, como os pastorinhos, é livre para se dar na misericórdia, sem ser oprimido por qualquer poder pretensamente absoluto. Nada te perturbe, nada te espante, só Deus basta dizia Santa Teresa. É destas vestes que o discípulo de Cristo se reveste e assim será um sinal para o mundo, um altar da dádiva do Deus verdadeiro, como nos ensina Fátima, altar do mundo. Ser misericordioso é testemunhado e muitos poderão aprender um estilo de vida. Só que, em certos momentos, a mesma misericórdia pode exigir denúncia de quem não condena o pecador mas reconhece os múltiplos pecados. Hoje, como discípulos de Cristo, somos chamados à coragem – que pode suscitar incompreensão – de apontar o erro dos prepotentes, de colocar o dedo em muitas feridas da humanidade – desde o lucro fácil à corrupção, da violência ao terrorismo, da exploração ao aproveitamento dos inocentes, dos crimes contra a maternidade às condições de vida degradantes, etc. Caros cristãos: Gostaria de evocar nesta hora a figura do servo de Deus, João Paulo II, várias vezes peregrino deste santuário: vítima da agressão do mal, venceu-o nos gestos de perdão oferecido gratuitamente e confessou aqui: trago nos meus lábios o Canto de Maria, Mãe de Misericórdia; a misericórdia é a mensagem deste lugar, é o seu segredo! Estou convencido que uma nova civilização, a do Amor nas palavras de outro peregrino, Paulo VI, é possível se os discípulos de Cristo forem misericordiosos como o Seu Deus é misericordioso. Parece uma utopia. Mas o povo cristão reza mesmo neste vale de lágrimas em que se transforma o mundo quando os orgulhosos parecem triunfar: Salve Rainha, Mãe de Misericórdia, Vida, doçura, esperança nossa, Salve! Ó Maria, Senhora de Fátima, dá-nos a sabedoria para ler a nossa história com os olhos e o coração da confiança, da esperança na providência e na misericórdia do Deus de quem és serva. Em ti confiamos, ó piedosa, ó doce Virgem Maria; Rogai por nós, Santa Mãe de Deus para que sejamos dignos da Promessa do Pai, o Espírito que renova a face da terra. Ámen. Fátima, 12.07.2007 D. Jorge Ortiga, Arcebispo Primaz

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