A luz de Deus é o princípio da vida

Homilia de D. José Policarpo na Vigília de Pascoa “Deus é luz. A luz de Deus é o princípio da vida” Homilia na Vigília Pascal Sé Patriarcal, 7 de Abril de 2007 1. “Disse Deus: faça-se a luz. E a luz apareceu. Deus viu que a luz era boa” (Gén. 1,3). A criação da luz é a afirmação clara de que, ao criar, Deus faz as suas criaturas participar na sua realidade divina. A criação do Céu e da Terra é manifestação do poder divino; a criação da luz revela o desejo de Deus de se comunicar. A terra estava vaga, vazia, coberta das trevas; a criação da luz diz-nos que Deus, na sua realidade misteriosa, encerra o sentido e o destino da criação; por isso Deus começou pela criação da luz, porque Deus é luz e há-de revelar-se como tal em toda a sua acção criadora, continuada na solicitude providente em relação à criação e, de modo particular, na história da salvação. O êxito da criação está ligado à sua participação na luz de Deus. Nesta criação da luz começa a longa vigília da criação e da humanidade em busca da sua verdade definitiva. Na plenitude final, a “nova criação”, viverá da luz de Deus. “Poderá dispensar o brilho do sol e da lua, porque a glória de Deus a iluminou e o Cordeiro é o seu luzeiro. As nações caminharão à sua luz” (Apoc. 21,23-24). Deus criou a luz para vencer as trevas e “separar a luz das trevas” (Gen. 1,4). Aquele momento final significará a vitória definitiva da luz sobre as trevas, e este triunfo é realizado por um homem em Quem só brilha a luz de Deus, Jesus Cristo. No texto do Génesis, a luz significa, sem dúvida, a realidade divina. E as trevas? Significam a ausência de Deus: ausência de vida, mesmo ausência de ser. Aquelas trevas significavam o nada, a ausência de ser, à letra, o deserto e o vazio (cf. 2M. 7,28). É a criação da luz que traz a vida. Mas quando esta não exprime Deus, passa a fazer parte das trevas. O combate entre a luz e as trevas passar-se-á, durante toda a duração do tempo e da história, no campo da vida e da busca da sua verdade definitiva. O reconhecimento de Deus como fonte da vida, continua a ser o problema decisivo da humanidade. É uma confusão da mentalidade contemporânea fazer crer que, para o homem, acreditar em Deus ou não acreditar, são atitudes equivalentes, com igual sentido para o destino do homem. 2. A luz criada torna-se num símbolo poderoso do mistério de Deus, ao ponto de se poder dizer que Deus é luz, com a mesma força com que se afirmará, no Novo Testamento, que Ele é amor. A luz e o fogo são sinais da presença de Deus. Sempre que Este se manifesta fá-lo envolto na luz e no fogo. O Livro da Sabedoria une, na mesma realidade divina, Deus, a sabedoria e a luz. A sabedoria “é um sopro do poder divino, a efusão puríssima da glória do Todo Poderoso… É um reflexo da luz eterna (…) Ela é, com efeito, mais bela que o sol, ultrapassa todas as constelações, comparada com a luz, ela leva a melhor” (Sap. 7,25-29). Deus veste-se de luz (Sl. 104,2) e aqueles que, como Moisés, contactaram com a intimidade de Deus, ficaram com o rosto luminoso (cf. Ex. 34,30). Esta identificação entre Deus e a luz é explícita, no Novo Testamento. São João afirma-o claramente: “Deus é luz, n’Ele não há trevas” (1Jo. 1,5). Jesus diz de Si Mesmo: “Enquanto eu estiver no mundo, sou a luz do mundo” (Jo. 9,5). “Quem Me segue não caminha nas trevas, mas terá a luz da vida” (Jo. 8,12). A identificação de Cristo com a luz é uma afirmação da sua divindade e da vitória definitiva da luz sobre as trevas, da vida sobre a morte, da graça sobre o pecado. “Ele era a vida de todos os seres e a vida era a luz dos homens e a luz brilhou nas trevas e as trevas não puderam vencê-la” (Jo. 1,4-5). A ressurreição de Cristo é o triunfo da luz. Também aqui as trevas significam a ruptura com Deus, o tentar viver separado de Deus, o que significa afastar-se da vida. Restabelecer a comunhão com Deus, em Jesus Cristo ressuscitado, participar da Sua vida divina, significa deixar-se inundar pela sua luz, ser luz em Cristo. É no baptismo que somos inundados por essa luz e todo o caminho da fidelidade cristã consiste em não impedir essa luz de brilhar, para que ilumine os outros. Foi por isso que o Concílio definiu a Igreja como “luz dos povos” (LG. n.1), porque nela deve brilhar no mundo a luz de Cristo. A vitória da luz sobre as trevas é uma longa caminhada, significada nesta vigília, onde a luz tem as honras da própria divindade de Cristo. O baptismo é um mergulhar na luz, deixar-se penetrar por ela, de modo a que possa sempre vencer as trevas que persistem em nós. Mas esta luz é Cristo; só nos iluminará enquanto permanecermos unidos a Ele, um com Ele, que nos faz mergulhar na luz de Deus. Ao identificar Deus com a luz e com o amor, a Sagrada Escritura abre um pouco o véu da nossa vida em Deus, na luz eterna. Em vez de imaginarmos uma sobrevivência das formas que temos como seres corpóreos e materiais, é-nos sugerido que a eternidade é um mergulhar nessa fonte eterna da luz, onde só se subsiste amando. “Passará a figura deste mundo” (cf. 1Co. 7,312; G.S. n. 39). 3. Pelo baptismo, a luz de Cristo penetra no coração do homem e ilumina a existência, na sua caminhada de fidelidade e de progressiva identificação com Cristo. Mas a experiência dessa luz é discreta e humilde, é a luz que tenta dissipar as trevas da nossa fragilidade pecadora. A luz de Cristo está presente, em nós, sobretudo na “luz da fé”. O Concílio afirma: “A fé ilumina todas as coisas com uma luz nova e faz-nos conhecer a vontade divina acerca da vocação integral do homem, orientando o espírito para soluções verdadeiramente humanas” (G.S. n. 11). A fé não é uma simples escolha ou decisão da vontade humana. É um mergulhar na luz de Cristo, participando na sua ressurreição; pela fé, a luz de Cristo brilha na nossa realidade humana que, vista a uma tal luz, redescobre a verdade profunda do seu mistério. A nossa intimidade com Cristo torna-nos mais permeáveis à sua luz, que nos proporciona uma visão mais verdadeira sobre todas as coisas. Mas tenhamos consciência de que durante toda a nossa vida, esta luz da fé é uma energia que tem de vencer obstáculos. A fidelidade cristã exprime-se no esforço de nos tornarmos sensíveis à luz de Cristo. A primeira coisa que esta luz nos faz ver de forma mais clara é o desígnio de Deus, a vontade do Senhor a nosso respeito. É luz que ilumina a nossa realidade e faz ver claro a nossa vocação e os caminhos pessoais concretos para a nossa fidelidade. A luz de Cristo faz-nos conhecer melhor Deus e o seu desígnio. A nossa identificação com Cristo, leva-nos a uma visão profunda sobre o mistério do homem, sobre nós e a nossa realidade. “De facto, só no mistério do Verbo encarnado se ilumina verdadeiramente o mistério do homem” (G.S. n. 22). A plenitude de vida de que o homem é capaz e pela qual anseia, a sua dignidade, a exigência do amor fraterno, o sentido da vida e da morte, são iluminados por Cristo ressuscitado. A “luz da fé” vem ao encontro de outras luzes de que o homem é dotado, de modo particular a da inteligência. A “luz da fé” faz brilhar, com maior intensidade, a luz da inteligência, tornando-a capaz de penetrar no mais íntimo da realidade. O nosso coração e a nossa vontade são particularmente iluminados por esta luz, que faz desabrochar, assim, a consciência moral, isto é, a busca da vida como procura dos caminhos do bem, do amor, da justiça e da paz. 4. Começámos esta Vigília anunciando como “boa-nova” a luz de Cristo. Tomemos consciência de que esta luz de Cristo ressuscitado é o Espírito Santo, que se manifestou sob a forma de línguas de fogo. O Espírito Santo ilumina e incendeia, mas o fruto da sua acção são, agora, a fé e a caridade. Nesta Vigília fazemos a experiência do percurso desta luz, que coincide com o itinerário da vida cristã: escuta confiante da Palavra, vivência dos sacramentos da iniciação cristã, o baptismo, a confirmação e a Eucaristia, a confissão de fé que signifique conversão e desejo de mudança de vida. Cristo é luz porque é Filho de Deus. A sua luz manifestou-se porque Ele ressuscitou dos mortos. Acreditar na Sua ressurreição é o primeiro fruto da “luz da fé”; deixarmo-nos penetrar por essa luz e purificar por esse fogo, é a longa caminhada da nossa fé, é a nossa vida vivida como vigília da eternidade. † JOSÉ, Cardeal-Patriarca

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Agência ECCLESIA

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