«A luta contra a pobreza deve ser assumida como um desígnio nacional» – Maria d’Oliveira Martins

É convidada da Renascença e da Agência Ecclesia Maria d’Oliveira Martins, professora e investigadora da Universidade Católica, nas áreas de Finanças Públicas, Direito Constitucional e Filosofia do Direito; leciona um seminário de Direito de Luta contra a Pobreza e é membro da Comissão Nacional Justiça e Paz

Foto: Beatriz Pereira/RR

Entrevista conduzida por Ângela Roque (Renascença) e Octávio Carmo (Ecclesia)

A revista ‘The Economist’ acaba de eleger Portugal como a «economia do ano», mas simultaneamente ouvimos seis antigos dirigentes sindicais a apelar a uma greve geral e candidatos presidenciais a pedir «mais ambição». Enquanto jurista que estuda a pobreza, como é que interpreta este desfasamento? Os indicadores macroeconómicos estão a esconder quem vê o seu «direito a não ser pobre» violado todos os dias?

Relativamente à luta contra a pobreza, não estamos a fazer tudo o que é possível. Há ainda muito para fazer. A luta contra a pobreza deveria ser assumida como um desígnio nacional. Quando falamos de pobreza, especialmente de pobreza extrema, falamos da denegação da dignidade humana, de colocar pessoas numa situação de ausência de liberdade, condicionadas pelas suas necessidades básicas e veem toda a sua vida condicionada por isso mesmo.

Em Portugal, não estamos a fazer tudo o que está ao nosso alcance. Temos ainda uma Segurança Social muito enfraquecida. Foi instituída tardiamente, apenas depois do 25 de Abril, e assenta numa tradição “familista”, em comparação com outros países da União Europeia. Temos um sistema previdencial, de proteção dos trabalhadores, bastante desenvolvido, mas ainda pouco desenvolvido no que toca à proteção social no modelo não-contributivo. O nosso sistema assenta muito na ideia de que as famílias ou a caridade privada providenciarão o apoio necessário…

 

Há indicadores de grande celebração da economia portuguesa que não batem certo com o dia-a-dia. Há, por exemplo, projeções de aumento do salário nominal, mas sabemos que, para muitas pessoas, o rendimento do trabalho já não é suficiente para evitar a pobreza. Como é que estes cenários macroeconómicos convivem com a realidade de milhões de portugueses estagnados na pobreza?

Portugal é um país marcado por muita pobreza. Antes das prestações sociais, teríamos um nível enorme de pobreza, cerca de 40%; essa percentagem baixa muito significativamente após as transferências sociais, para cerca de 20%. Portanto, temos de facto um campo muito vasto de situações de pobreza.

É preciso notar que têm sido feitos alguns avanços na erradicação da pobreza extrema e infantil, mas estamos muito aquém do que poderíamos fazer. Por exemplo, o Banco Alimentar ou a Cáritas têm uma ação essencial em Portugal. E porquê? Porque o Estado falha nalguns dos seus deveres fundamentais. Quando olhamos para a realidade dos países do Norte da Europa, vemos facilmente uma crítica à existência de bancos alimentares, porque estes assentam no paradigma da caridade individual – não há um direito a receber, nem um dever jurídico de dar. Nos países nórdicos, a necessidade de tal caridade é vista como um sintoma de falha do Estado.

 

Vamos entrar na quadra natalícia, onde há muitos apelos à generosidade individual. No seu estudo, distingue bem a caridade do Direito. Como é que se dá o salto cultural para que a sociedade deixe de ver quem está em situação de pobreza como alguém que precisa de bondade pontual e passe a vê-lo como um sujeito de direitos?

Essa foi uma evolução de muitos séculos. Só no século XVIII é que se afirma a ideia de que a pobreza extrema é a denegação da dignidade humana, com Kant. Kant assenta a dignidade humana na autonomia e na liberdade. Só no exercício desta plena liberdade é que somos verdadeiramente humanos; quando estamos com fome ou precisamos de procurar abrigo e isso é a nossa atividade principal, deixamos de exercer a nossa atividade humana de forma livre e autónoma, porque estamos condicionados.

 

Assistimos hoje a um ressurgimento de um discurso de culpabilização de quem está em situação de pobreza?

Sim, existe uma visão punitiva em relação aos mais pobres. Vou dar exemplos: no contexto da Europa, muitos países criminalizam a mendicância. Em Portugal não temos essa criminalização, mas temos uma visão punitiva noutros aspetos.

Vejamos o planeamento das cidades: os bairros ricos têm preocupação de ordenamento do território, com espaços verdes e zonas de lazer; nas zonas mais pobres, questionamo-nos porque não existem as mesmas preocupações, quando as pessoas são feitas da mesma substância.

A vigilância dos bairros mais pobres, vigilância policial, tem um clima muito mais punitivo nos bairros que são mais pobres do que nos bairros que são mais ricos. A violência e a brutalidade policial são muito mais graves em relação aos mais pobres do que em relação aos mais ricos, porque têm muito menos meios de defesa que os mais ricos.

Há um tema que não está estudado em Portugal, mas deveria ser, penas de prisão. Quão mais frequentes são em relação às pessoas mais pobres? É que as penas de prisão, no fundo, são o último reduto da condenação do sistema penal e em relação aos mais ricos as penas de prisão podem ser substituídas pelo pagamento de multas. Ora, se os mais pobres não têm dinheiro para fazer o pagamento de multas…

 

Para além de todas as questões da defesa e tudo mais, mas sim.

Exatamente. Mesmo as sanções que a Segurança Social oferece, o tratamento em relação aos mais pobres. A Segurança Social é uma coisa boa e é um dos pilares do direito de luta contra a pobreza, mas acaba por mimetizar esse clima punitivo. As sanções são muito pesadas. Se um beneficiário perde um prazo ou se esquece de um papel, pode ficar impedido de renovar o pedido durante seis meses ou um ano.

Há um livro da autora espanhola Sara Mesa, Silêncio Administrativo, que descreve o calvário de uma sem-abrigo para obter o rendimento mínimo. Ela relata que toda a compreensão existe para as falhas dos funcionários, mas nenhuma para o requerente. A falta de compreensão do que é pedido acaba por ser, no fundo, instrumento de punição.

A Segurança Social, por exemplo, pode contactar a pessoa para pedir informações ao longo do processo. Ora, se nós estamos a falar de um sem-abrigo, isso supõe que o sem-abrigo tem um telemóvel para estar permanentemente contactado.

 

A necessidade de uma morada que não tem…

A necessidade de uma morada, mas mesmo quando a segurança social telefona, é necessário que essa pessoa esteja em condições de escrever uma informação. Ora, no meio da rua, a pedir, será difícil encontrar uma caneta, um papel, um espaço direito para escrever, é difícil encontrar a concentração adequada…

 

Falta sensibilidade para perceber a situação?

Exatamente, para perceber que é o formulário 353 e não o 252. Portanto, tudo complica. Isto são ilustrações, no fundo, de um clima de punição em relação aos mais pobres, de falta de compreensão.

 

Foto: Beatriz Pereira/RR

No seu livro “Direito a não ser pobre”, analisou as diferentes constituições europeias. Encontrou muitas diferenças, este Direito a não ser pobre é tido em conta na definição de políticas públicas ou é uma utopia?

Existem vários pontos em comum em todas as constituições europeias e, por isso, eu até enuncio dois pilares, depois aponto um, que eu acho que não é um pilar, mas em muitos países ainda faz o tripé ali na luta contra a pobreza.

Valores comuns: a autossubsistência, como base da luta contra a pobreza. Cada um deve ser capaz de prover ao seu sustento, cada um deve contribuir para o bem comum, portanto esse é um traço comum. Por exemplo, na Itália até se fala do dever de trabalhar. Nós, na nossa Constituição, não temos o dever de trabalhar, mas temos o direito de trabalhar, que é idêntico, são duas faces da mesma moeda.

Depois temos, também, ao nível de todas as constituições, o reconhecimento da Segurança Social, o reconhecimento da educação, o reconhecimento da saúde como direitos sociais sobre o qual assenta o Estado Social e que, no fundo, são instrumentos de prevenção contra a pobreza. Portanto, todo este sistema é para prevenir a pobreza. Dou nota, também, que em todos os países da União Europeia existe rendimento mínimo – embora quando se discute cá o RSI, pareça que somos os únicos a ter esta prestação social, mas não somos. É, no fundo, um complemento a esta abordagem preventiva que a Segurança Social faz. Porquê? Porque o rendimento mínimo visa corrigir situações que não foram, no fundo, apanhadas pela rede da prevenção.

E, também, devo notar que, na comparação com os outros Estados-membros, o nosso rendimento mínimo compara mal. É mais baixo e tem requisitos de elegibilidade muito apertados que não têm, necessariamente, a ver com a condição de necessidade. Eu estar numa situação de necessidade não me dá, necessariamente, acesso a um rendimento mínimo, o que em muitos países é questionável.

 

A Comissão Nacional de Justiça e Paz pronunciou-se recentemente sobre a Lei de Estrangeiros, criticando a distinção no reagrupamento familiar com base na capacidade económica. Estamos a criar cidadãos de primeira e de segunda?

Sim, há um clima punitivo em relação aos mais pobres, que é agravado quando há menos dinheiro para distribuir. Viemos de uma geração, nos anos 90 e início de 2000, marcada pela abertura da União Europeia, abertura de fronteiras, aberta ao outro, um maior acolhimento em relação aos imigrantes, o desejo de acabar com o racismo ou a xenofobia. Hoje, como há estagnação económica e menos dinheiro, assistimos a um movimento contrário, de fechamento. Queremos reservar as vantagens para os portugueses e tirar os imigrantes da equação.

Curiosamente, esta visão punitiva é muito notória ao nível nacional, onde se discute a repartição de recursos. Mas, quando subimos para o nível dos Direitos Humanos (ONU, Conselho da Europa), o discurso é menos punitivo e reforça os deveres do Estado. Estas discussões que se passam a nível interno, no fundo, são apagadas, são esbatidas a outro nível, o que nos mostra que, no fundo, a essência deste direito de luta contra a pobreza não é punitiva.

 

O país tem estado num ciclo eleitoral. Sente que existe vontade política para tratar a pobreza como uma violação de direitos humanos ou continuamos presos à gestão de subsídios e de apoios de emergência?

Continuamos muito presos a isso, sim. Aquilo que defendo é que deveria haver um pacto de regime relativamente à pobreza, ou pelo menos às circunstâncias extremas de pobreza. Nós, como cidadãos, deveríamos exigir isso dos nossos políticos. Deveria haver um consenso em relação à existência de circunstâncias que ninguém deveria poder suportar. E deveria haver um consenso também relativamente à responsabilização pelos incumprimentos sucessivos das metas que nós vamos apontando para a luta contra a pobreza.

Porquê? Porque nós agora temos um horizonte até 2030. Muito bem, quando chegamos a 2030, não atingiremos todos os objetivos, vamos dizer “não faz mal, vamos fixar uns novos.

E daqui para diante será melhor, daqui a cinco anos será melhor, daqui a dez, daqui a vinte”. E nunca nada acontece. Deveria haver, no fundo, um pacto de regime nos mínimos. Eu nem digo agora, vamos aqui aos máximos, fixar salários médios…

 

Se a sua tese fosse levada à letra, qual seria a primeira medida concreta que gostaria de ver aprovada no início de 2026?

Gostaria que a Segurança Social fosse levada a sério. E há muitos assuntos também que não estão estudados em Portugal. O assunto do não recurso às prestações sociais é estudado na Alemanha, é estudado em França, é estudado em Inglaterra, e mesmo relativamente às prestações mínimas, se chega à conclusão de que 50% das pessoas que poderiam ter acesso a essas prestações, não recorrem a elas. Nós não temos sequer esse dado em Portugal. Eu não sei se são 40%, se são 50%, se são 30%, eu não sei…

Ou seja, nós permitimos que haja politicamente anúncios sobre medidas sociais, sobre prestações sociais sem factos e depois, no fundo, sem um relatório que acompanhe a execução dessa medida, em quanto é que ela foi executada, em quanto é que beneficiou as pessoas, quantas pessoas foram beneficiadas, quantas pessoas não pediram. Este tema tem sido aflorado pela Provedoria de Justiça, no último relatório de atividades, dando exemplos muito concretos, e eu acho que esta era uma das medidas que podia avançar já amanhã.

 

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