João Duque "A verdade abre e une as inteligências no lógos do amor: tal é o anúncio e o testemunho cristão da caridade. No actual contexto social e cultural, em que aparece generalizada a tendência de relativizar a verdade, viver a caridade na verdade leva a compreender que a adesão aos valores do cristianismo é um elemento útil e mesmo indispensável para a construção duma boa sociedade e dum verdadeiro desenvolvimento humano integral" (Caritas in veritate, nº 4)
Gostaria de começar o meu breve comentário à mais recente Carta Encíclica de Bento XVI, Caritas in veritate, por esta citação, que me parece concentrar em si os principais objectivos de todo o documento. E gostaria de começar por me fixar no termo logos, que permite variadas traduções. Neste caso, prefiro concentrar-me naquela que originou, nas nossas línguas, a expressão lógica. De facto, o logos ou o discurso, também o pensamento sobre algo, implica uma lógica própria. Assim, poderíamos traduzir a expressão "logos do amor" por lógica do amor.
Ora, trata-se de uma expressão algo estranha. De facto, estamos habituados a reduzir a lógica ao âmbito matemático-científico, quando muito ao contexto argumentativo, o que parece não permitir falar de uma lógica do amor, pois o amor escaparia a toda a lógica. Ora, toda esta Encíclica, precisamente porque liga a caridade com a verdade e vice-versa, assenta precisamente num discurso sobre a lógica do amor. Nesse sentido, proponho um comentário baseado nos diversos níveis dessa lógica, que me parecem corresponder, também, à lógica interna do documento.
1. O primeiro nível tem a ver com a fundamental compreensão bíblico-cristã da noção de verdade. Poderíamos chamar-lhe o nível da lógica da acção. De facto, a noção bíblica de verdade é bastante mais abrangente do que a que a reduz ao puro nível do discurso e mesmo da ciência. Porque, no contexto bíblico – que é o contexto cristão – a verdade salva e liberta, possui por isso uma força performativa própria, realizando algo na nossa existência. Em correspondência a essa força activa da verdade, a verdade vivida pelo cristão é uma verdade pragmática, pois a verdade é para ser feita, não apenas para ser dita ou pensada. É claro que também deve ser dita e pensada – pois isso é já fazer algo. Mas, a finalidade última da verdade é uma pragmática que transforme os corações e, por essa via, toda a realidade, sobretudo na sua dimensão sócio-cultural.
Por isso, o cristianismo não é simplesmente uma filosofia, se entendermos por isso um conjunto abstracto de ideias que dizem respeito, mais ou menos, à realidade. É claro que as ideias possuem uma força transformadora própria. Mas podem fechar-se no puro e abstracto jogo ideológico de si mesmas. Nesse sentido, o cristianismo não assenta numa ideia. Também não pode, como tal, ser reduzido a uma espiritualidade desencarnada, que apenas sirva para consolo interior dos indivíduos. Por mais que tenha havido leituras e práticas do cristianismo que o reduziram a essa dimensão espiritual e privada, essas reduções têm significado sempre um desvio da sua verdade. Na história, como na actualidade, esse desvio – a que poderíamos chamar genericamente gnosticismo – tem sido uma das maiores tentações do cristianismo.
Também na actualidade, a tentação gnóstica continua a lançar a sua sombra. Muitas vezes, essa sombra surge no próprio interior do cristianismo, por impulso daqueles grupos que o reduzem a uma actividade interna, orientada para uma dimensão do indivíduo a que se vai chamando «espiritualidade» e que o isola do quotidiano, da dimensão «política», que fica assim relegada para o âmbito do puramente «profano». O cristão atingido por esta tendência, ou se refugia numa vida ideal, alheia ao mundo que o rodeia, ou divide a sua vida esquizofrenicamente entre práticas cristãs (apenas espirituais) e a prática quotidiana, que nada tem a ver com as convicções cristãs.
A própria sociedade, sobretudo por efeitos da modernidade europeia, habituou-se a compartimentar os sujeitos e as instituições, relegando o cristianismo e as suas práticas para o âmbito privado, negando-lhe por isso pertinência pública. Esse é um modo sócio-político de contradizer a lógica cristã, como lógica da acção, concebida como acção integral. E muitos estados ditos «laicos» baseiam nessa perspectiva a sua crítica – e mesmo a sua proibição, muitas vezes – da intervenção pública dos cristãos, pessoal ou institucionalmente considerados.
Mas a lógica – a verdade – do cristianismo é precisamente a lógica do amor, que é de ordem prática e não conhece recantos simplesmente privados, pois envolve a pessoa toda e todas as pessoas. Por isso, na lógica da sua acção estão incluídos todos os problemas e todas as possibilidades da humanidade sua contemporânea. Por isso se torna legítima – e mesmo exigida – a sua intervenção a propósito de todas essas questões, que estão ligadas à acção quotidiana dos nossos contemporâneos, cristãos ou não. É nesse contexto que se justifica a denominada «doutrina social da Igreja». Não como contributo científico nos âmbitos da economia, da política ou da sociologia. Mas como leitura de tudo isso, no contexto da sua lógica própria. E como proposta para o bem-estar integral – com significado salvífico – de todos os humanos.
E essa lógica, por ser a lógica da caridade, tem por finalidade, não apenas fazer uma leitura crítica das realizações humanas, mas também sugerir realizações específicas, que possam ajudar a que a lógica da caridade vá dando frutos, ao longo da história humana. É claro que, dada a especificidade da lógica da caridade, as realizações históricas serão sempre limitadas e falíveis, mesmo que se inspirem no amor que salva. Porque só Deus salva e só Ele terá a última palavra sobre a história humana.
2. Um dos elementos importantes da acção cristã é, por isso mesmo, a consciência ou reconhecimento de que a verdade, que deve ser feita, não é uma verdade já feita pelos humanos, consoante os seus interesses e as suas perspectivas. Trata-se de uma verdade que é sempre dada, como tarefa a realizar. Nesse sentido, um dos elementos básicos da lógica da caridade é o facto de se tratar de uma lógica do dom. Antes de tudo, porque a verdade que fundamenta essa lógica é uma dádiva, em si mesma, e não um produto nosso. Por essa razão, a dádiva que, antes de tudo, se nos dá para ser feita, é a própria verdade. A verdade dada é, portanto, para que reconheçamos a dádiva como verdade – verdade de Deus e verdade dos humanos.
Assim, a verdade é-nos dada, para ser realizada, entre nós, enquanto dádiva, enquanto doação mútua. Ora, a dádiva é da ordem do gratuito. O que se dá, não se dá por interesse em receber algo em troca, muito menos para daí retirar algum lucro. Se assim não for, não existe dádiva ou dom, mas apenas negócio, mercado. A verdade da caridade, como verdade do ser humano, na perspectiva cristã, é que as relações humanas se devem medir por esta capacidade de dar gratuitamente. Mesmo que haja níveis de permuta inter-humana que não sejam gratuitos, o nível da gratuidade deve ser o mais profundo e fundamental.
Esta carta encíclica, por ser uma carta essencialmente de doutrina social da Igreja, afirma claramente que a lógica do dom se deve aplicar, também, ao nível das relações económicas, mesmo ou sobretudo da macro-economia. O capítulo terceiro é todo dedicado à exploração dessas possibilidades. É claro que se trata de uma proposta que parece desconcertante, para muitos mesmo impossível. Mas nisso reside, precisamente, o excesso da lógica do dom gratuito, em relação a todos os sistemas simplesmente «justos», se entendermos a justiça do ponto de vista puramente comutativo, retributivo ou distributivo.
Habitualmente, os sistemas económicos mais recentes – denominados genericamente capitalistas – assentam na lógica do lucro, pretendendo que esse seja o motor do progresso e desenvolvimento dos povos. Mas, sobretudo devido à recente crise económico-financeira global, parece tornar-se cada vez mais evidente que essa lógica não é absoluta e que parece não conduzir aos resultados que promete. Em realidade, apenas serve para realizar o interesse de poucos. Nesse contexto, Bento XVI lança o desafio à aplicação pragmática, nas relações económicas à escala global, da dimensão do gratuito, da dádiva desinteressada.
3. Porque só a lógica da dádiva permite criar verdadeira solidariedade humana, a nível planetário. Porque dela resulta a lógica da comunhão, única capaz de criar verdadeira comunidade humana, entre todos os povos e pessoas. De facto, o dom, dado a todos e para ser dado por todos, origina comunidade, no amor. Outro modo de relação entre os humanos e entre os povos apenas origina dinâmicas de poder, pois parte sempre de arrogantes pretensões da capacidade de quem toma a iniciativa. Muitas vezes, essa lógica do poder afecta mesmo aquilo que, externamente, parece dádiva, sobretudo na relação entre países ricos e países pobres. Ora, cada vez se torna mais evidente o fracasso a que está destinado um sistema que se baseia em relações de poder – poder como capacidade e poder como domínio.
É no sentido de superar esse modo de relação que Bento XVI lança a proposta de uma lógica de comunhão, assente no acolhimento de um dom que nos é dado e na prática desse dom, dando. Daí deve resultar uma nova lógica económica, assente precisamente na economia do dom e não na economia do poder e do lucro. Entenda-se aqui o termo economia como aquele âmbito em que se leva à prática das relações interpessoais e inter-institucionais a lógica da caridade, como pragmática e concretização dessa mesma lógica. É nesse sentido que cristianismo não se limita a dar indicações correctivas aos sistemas económicos. Pode acolher e mesmo propor certas práticas económicas como modos de dar corpo concreto à lógica do amor, ao serviço da qual se encontra. Esta lógica do amor pode ser energia moral para os sistemas económicos, que só estão ao serviço do ser humano se assentarem em convicções éticas.
Isso fará assentar os sistemas económicos e mesmo políticos numa lógica em que a dimensão ética, no bom sentido do termo, seja fundamental: trata-se da lógica da responsabilidade. Bento XVI, quando propõe esta lógica da responsabilidade pessoal e colectiva, local e planetária, pensa explicitamente na superação da pura lógica do mercado e da pura lógica do estado. A primeira, assente simplesmente no dinamismo do lucro, pensado individualmente, perde do horizonte a comunidade humana e cada pessoa concreta, conduzindo a desumanidades, que hoje se tornam cada vez mais evidentes e que acabam por se virar contra os seus próprios autores; a segunda, baseada em jogos de influências e em certo domínio colectivista, acaba por discriminar grande parte da humanidade, originando mais divisão do que comunhão. Toda a actividade económica e política, independentemente de os seus agentes serem ou não cristãos, deverá estar determinada pela lógica da responsabilidade total, caso queira servir verdadeiramente os humanos, sem discriminação de pessoas nem povos.
4. A última parte da Encíclica é dedica à exploração do significado de uma lógica própria, em que desembocam, na prática, todas as outras dimensões da lógica da caridade: trata-se da lógica da relação. Partindo de uma fundamentação teológica dessa lógica (precisamente por referência à relação trinitária, como fonte de todo o ser-em-relação), Bento XVI apresenta o modelo da relação familiar como fundamental para a compreensão do ser humano como ser-em-relação. Porque a relação familiar assenta na relação inter-pessoal, vivendo da relação entre pessoas livres, diferentes, que se amam. Por isso, supera todos os modos de relação assentes no poder ou na dissolução das diferenças pessoais.
Nesse sentido, considera importante, por exemplo, que se analisem criticamente outras tradições religiosas, pois podem colocar em risco este modo de relação, no respeito da liberdade pessoal. Os sistemas de organização social encontram aqui o critério da sua avaliação, pelo menos na perspectiva cristã, que se pretende universal. Ou são respeitadores de cada ser humano, na sua integridade, e respeitadores de todos os seres humanos, na sua igualdade, ou não fazem parte da lógica da caridade, que é a verdade de Deus para os humanos.
E com base nessa posição, simultaneamente dialogante e crítica, que a lógica da caridade se propõe como verdade para todos. Ao propor-se, assume uma tarefa pública, que terá que arrancar o cristianismo da pura reunião de sacristia. Ao mesmo tempo, sendo uma proposta pública, entra no diálogo com outros crentes e mesmo com os não crentes. Porque a finalidade da lógica da caridade é, precisamente, a relação no respeito pelas diferenças. Mas a lógica da caridade só é autêntica se se assumir como lógica da verdade, proposta para todos. É nesse sentido que deverão ser lidas estas densas páginas, que Bento XVI dirige a todos os cristãos, assim como a todos os humanos de boa vontade. Mas, como a verdade é para ser feita, esta é só a primeira parte de uma proposta cristã para o nosso mundo contemporâneo.
João Manuel Duque, teólogo, secretário da Comissão Episcopal da Doutrina da Fé e Ecumenismo