A Liturgia é anúncio da Salvação

Homilia de D.José Policarpo na Noite de Natal

1. A Igreja tem, como missão prioritária, anunciar a salvação definitivamente realizada em Jesus Cristo. Fá-lo de muitos modos, mas o mais eficaz é o testemunho da vida, a fé traduzida em experiência de salvação. É a densidade do testemunho que dá autenticidade à palavra. As expressões da fé vivida que mais tocam os corações são a sua celebração pela comunidade crente e o amor fraterno. É por isso que a Liturgia é, na sua verdade mais profunda, anúncio da salvação e meio para a missão evangelizadora da Igreja.

Na Liturgia, de modo particular na celebração da Eucaristia, a comunidade cristã escuta a Palavra do Senhor com o coração aberto e comovido, acolhe o dom de Jesus Cristo que se entrega de novo à Sua Igreja, expressão do infinito amor de Deus por nós, une-se e identifica-se com Cristo a ponto de se entregar pela salvação de todo o género humano. Na Liturgia, a Igreja vive a salvação, identifica-se com Cristo, deseja renovar-se com a força do seu amor e participa já do júbilo da Pátria celeste. A celebração da Eucaristia é o momento da verdade da Igreja, que lhe dá autoridade para anunciar a salvação. A partir dela, os crentes são enviados, sempre de novo, para o meio do mundo, para anunciarem com a vida e com a palavra o dom da vida nova. A força anunciadora dessa vida e dessa palavra, é a da Eucaristia que celebraram. Toda a evangelização parte da Eucaristia e converge para a Eucaristia.

Estamos a celebrar o Natal. A Liturgia desta noite tem de ser anúncio de Jesus Cristo, a expressão do amor de Deus por nós que Ele encarnou, isto é, humanizou, exprimiu na nossa realidade humana. O Natal é uma festa cristã enriquecida culturalmente de forma muito bela, exprimindo valores e anseios fundamentais da família humana: a harmonia, a paz, o calor da convivência, a partilha de dons, a descoberta da dimensão festiva da vida. Mas só a densidade da celebração litúrgica tem a força transformadora de um anúncio, se nela acolhermos de novo o Filho de Deus feito homem como manifestação do amor de Deus por nós, se nos abrirmos mais radicalmente ao dom da salvação.

 

2. Não é por acaso que os três textos da Sagrada Escritura que, nesta celebração, nos foram proclamados para os escutarmos como a Palavra amorosa que Deus nos diz esta noite, são três textos de anúncio desse momento decisivo da humanidade que foi o nascimento de Jesus. O primeiro anúncio é feito por um mensageiro de Deus, um Anjo: “Anuncio-vos uma grande alegria para todo o povo: Nasceu-vos hoje, na Cidade de David, um Salvador que é Cristo Senhor” (Lc. 2,11). O nascimento de Jesus é anunciado como o dom da salvação, acto decisivo de Deus para resgatar a humanidade. Já tinha sido assim que outro mensageiro divino o tinha anunciado a Maria: “Conceberás e darás à luz um Filho e dar-lhe-ás o nome de Jesus. Ele será grande e chamar-lhe-ão Filho do Altíssimo” (Lc. 1,31-32). Neste anúncio é claro que a salvação é obra amorosa de Deus, só Deus nos pode salvar. A alegria anunciada é a alegria da salvação.

O segundo anúncio é feito pelo Profeta Isaías, a um Povo que esperava a salvação como concretização última da fidelidade do Deus da Aliança. “Um Menino nasceu para nós, um Filho nos foi dado. Tem o poder sobre os ombros e será chamado conselheiro admirável, Deus forte, Pai eterno, Príncipe da Paz” (Is. 9,5-6). Para Isaías é claro que Deus estará presente neste Menino, que terá a realeza de Deus e a salvação anunciada consistirá numa paz duradoira e no triunfo da justiça.

O terceiro anúncio acontece já no seio da Igreja nascente, na realidade da salvação vivida e procurada por aqueles que se uniram a Jesus Cristo. A salvação é agora experiência nova da vida em Cristo, participação da novidade pascal da ressurreição, processo a realizar-se com a força do Espírito e que permite esperar poder um dia participar no triunfo final de Jesus Cristo. Este anúncio é expresso por São Paulo na sua Carta a Tito: “Manifestou-se a graça de Deus, fonte de salvação para todos os homens” (Tit. 2,11).

 

3. Esta celebração, pela densidade da sua fé, tem de ser anúncio, antes de mais para nós que aqui estamos reunidos com o Senhor e em seu nome. É a partir de nós, através do nosso testemunho, que será inevitável e espontâneo, à nossa sociedade, aos nossos irmãos e irmãs que celebram o Natal sem lhes captar a mensagem, a densidade da alegria. Que aqueles três anúncios da Palavra de Deus inspirem o nosso coração para acolher, de novo, o anúncio da salvação e orientem o nosso testemunho às pessoas que nos rodeiam. Sintetizemos o conteúdo dessa mensagem:

 

* Antes de mais, Jesus, o Menino que nasceu em Belém, é o Filho de Deus. Ele é chamado Filho do Deus Altíssimo, tem todo o poder sobre os seus ombros, que se manifestará plenamente depois da ressurreição. Ele tem a realeza do Messias esperado: os cristãos aprenderam a chamar-lhe Senhor. Contemplar o presépio sem acreditar na divindade daquele Menino é não permitir que o nosso olhar penetre na profundidade do mistério.

 

* Ele é o Salvador, porque é Deus, tem o poder de recriar. Só Deus nos pode salvar. Porque é homem, sabe como este último desafio de Deus se pode concretizar na nossa realidade humana. Ele sabe que o segredo do homem é o seu coração, e que se aceitar de Deus um coração novo, toda a sua vida mudará, porque será transformada pelo amor. Maria, a Mãe, a mulher de coração imaculado, diz-nos como isso é possível e onde nos levará.

 

* Apontam-se, depois, os primeiros frutos da salvação nos corações renovados: a alegria, a paz, a justiça. O mundo actual perdeu o sentido da verdadeira alegria, e vai-se afastando dela. Procura-a por caminhos frenéticos de excitação, na busca de prazeres, de interesses, de fruição dos bens materiais, tudo isto em ritmos alucinantes, que provocam a solidão e, quase sempre, a tristeza. A alegria é experiência simples e profunda, brota dos corações puros e generosos.

A encarnação do Verbo de Deus ensina-nos que só o amor generoso, a experiência da generosidade, do dom e da partilha, a contemplação da beleza dos outros homens, meus irmãos, são caminhos da verdadeira paz. Só o Natal nos faz perceber que a justiça é a concretização da verdade profunda do homem, chamado a viver em comunhão com os outros homens e que só homens justos podem ser obreiros da justiça.

 

4. Acolhamos a mensagem desta celebração, empenhando-nos nela e faremos, talvez, a experiência de uma alegria, que sendo humana, não se reduz a nenhuma realidade deste mundo. Talvez percebamos de novo o que queremos dizer uns aos outros quando nos saudamos, desejando “Bom Natal”, “Santo Natal”.

Sé Patriarcal, 24 de Dezembro de 2009

† JOSÉ, Cardeal-Patriarca

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