Padre Miguel Neto, Diocese do Algarve

Nos últimos tempos, assistimos, na Península Ibérica, a episódios que, mais do que políticos, são profundamente humanos. Em Espanha, a Conferência Episcopal levantou a voz contra uma decisão que impede a comunidade muçulmana de Jumilla (município de Múrcia) de celebrar as suas festas religiosas. Em Portugal, D. José Ornelas, presidente da Conferência Episcopal Portuguesa, afirmou com clareza que não reconhece como católicos aqueles que promovem discursos anti-imigração e xenófobos. Estas declarações dos presidentes das conferências episcopais ibéricas levaram-me a refletir no que penso ser algo essencial nos dias de hoje: é imprescindível defender o respeito pela dignidade da pessoa, independentemente da sua fé, cor ou origem.
Em Jumilla, uma pequena cidade, cerca de 1.500 muçulmanos foram privados do direito de celebrar o fim do Ramadão e a Festa do Cordeiro, por via de um acordo político que fala de “identidade cultural espanhola”. Mas que identidade é esta que nega espaço às expressões religiosas de quem também é vizinho, trabalhador, colega de escola ou de fábrica? A Conferência Episcopal Espanhola foi clara: trata-se de uma discriminação incompatível com a democracia e contrária ao espírito da Constituição do país. Não se trata, apenas, de uma questão administrativa ou de uso de equipamentos públicos. Trata-se de um sinal: dizer a uma comunidade inteira que a sua fé não tem lugar. Isso fere a convivência, gera ressentimento e quebra os laços de confiança que qualquer cidade precisa cultivar entre os seus habitantes.
Em Portugal, D. José Ornelas recordou uma verdade desconfortável para alguns: não há catolicismo possível na exclusão ou no ódio. Quem se afirma católico e promove discursos contra imigrantes ou minorias culturais esquece o Evangelho que proclama. Não é somente uma questão de doutrina — é a raiz do cristianismo. Jesus reconheceu sempre o estrangeiro, o marginalizado, o diferente, não como ameaça, mas como irmão. A xenofobia, tantas vezes mascarada de defesa da “identidade cultural” ou da “ordem”, não é compatível com a fé católica, nem com qualquer ética humanista fundamental. É, no fundo, a negação da fraternidade.
O papel da comunicação social neste debate é decisivo. Enquanto as palavras que semeiam medo e divisão encontram facilmente microfones e câmaras, as vozes que apelam à integração, ao acolhimento e ao respeito raramente recebem o mesmo espaço. Por estes dias, ouvimos o jornalista Miguel Carvalho falar sobre o atual estado a que o jornalismo chegou, vergado às guerras de audiências e ao facilitismo do que vende mais rapidamente. Não deixa de ser perturbador que declarações tão relevantes como as do presidente da CEP tenham passado quase em silêncio na comunicação social. Se a Igreja recorda ao mundo que a dignidade humana é inegociável, também o jornalismo tem a responsabilidade de lhe dar visibilidade, iluminando o que constrói uma sociedade mais justa, coesa e imune às tentações do populismo e do medo.
Vivemos tempos de medo: medo do que é diferente, medo do que é novo, medo do que parece ameaçar uma suposta “normalidade”. Mas o medo nunca construiu nada de duradouro. O que constrói é o encontro, a empatia, a hospitalidade. E há exemplos concretos que nos mostram que a convivência multicultural não é apenas possível, mas enriquecedora:
- Em Lisboa, Arroios é um caso paradigmático. A freguesia mais multicultural da capital tem residentes de mais de 70 nacionalidades. No dia a dia, esta diversidade traduz-se numa vida de bairro vibrante: restaurantes de várias cozinhas do mundo, associações culturais que promovem encontros e festivais multiculturais, escolas onde crianças de diferentes origens aprendem lado a lado. Tudo isto contribui para uma comunidade viva e resiliente.
- Em Sintra, o trabalho das escolas com turmas de acolhimento tem permitido integrar jovens vindos de países tão diversos como Nepal, Bangladesh ou Brasil. Muitos destes alunos chegam sem falar português, mas com programas de apoio ao nível linguístico e cultural, acabam por se integrar no sistema educativo e, mais importante, na comunidade.
- Em Madrid e Barcelona, as mesquitas locais organizam periodicamente “dias de portas abertas” para que vizinhos não muçulmanos conheçam as tradições islâmicas. Essa partilha quebra preconceitos e abre espaço para relações de confiança.
- Na Galiza, comunidades cabo-verdianas têm contribuído para revitalizar vilas envelhecidas, trazendo, não só mão de obra, mas também dinamismo cultural através da música e da gastronomia.
- Por todos os países onde estão, a comunidade Sikh organiza dinâmicas que permitam fazer algo pelo bem comum, da comunidade que os acolhe, como plantar árvores, desenvolver projetos sociais.
A estes exemplos soma-se, ainda, o papel do turismo. Não apenas como motor económico, mas como verdadeira indústria da paz. Um país que acolhe turistas, acolhe inevitavelmente culturas, línguas, costumes. Cada visitante que chega traz consigo uma oportunidade de encontro. O turismo cultural, religioso ou gastronómico tem mostrado que a diversidade pode ser ponte e não barreira, ao mesmo tempo que incentiva as comunidades locais a valorizarem o pluralismo e a hospitalidade como marcas de identidade. Integrar imigrantes também é, neste sentido, fortalecer o futuro de um turismo sustentável, inclusivo e promotor da paz. O turismo, sobretudo o religioso/espiritual, nesse caminho, pode ser uma das linguagens universais de encontro e paz.
Estes exemplos mostram que a integração não é um risco, mas uma oportunidade. O contacto próximo faz cair medos abstratos e revela o que partilhamos de mais essencial: o desejo de segurança, de dignidade e de futuro em paz.
Hoje, em Espanha, são os muçulmanos de Jumilla. Amanhã, poderá ser outro grupo, outra fé, outro modo de viver. E se fosse connosco? Se um dia nos dissessem que já não poderíamos celebrar o Natal nas nossas praças ou reunir para rezar na nossa comunidade? Sei que alguns, dos mais radicais, vão dizer: mas é contra isso que estamos a lutar… E eu deixo uma pergunta simples e direta: queremos sociedades guiadas pelo medo ou pela confiança? Pela exclusão ou pelo encontro? Pelo respeito ou pelo desdém?
A Igreja, ao levantar a sua voz nestes contextos, oferece-nos uma pista clara: só através da empatia, do acolhimento sincero e do apreço pela diversidade conseguiremos honrar aquilo que de mais digno e humano nos define. Somos convocados a honrar esta que, sim, é a nossa verdadeira identidade.
(Os artigos de opinião publicados na secção ‘Opinião’ e ‘Rubricas’ do portal da Agência Ecclesia são da responsabilidade de quem os assina e vinculam apenas os seus autores.)