«A Justiça ao serviço da vida»

Homilia de D. José Policarpo na Missa de Abertura do Ano Judicial 1. A circunstância que estamos a viver, num amplo debate sobre a justiça aplicada à vida desde o seu início, sugeriu que escolhêssemos como tema para esta celebração, “A Justiça ao serviço da vida”. Não quero, no entanto, aproveitar este momento para prolongar o debate sobre o tema concreto, mas sim para apresentar, de forma sucinta, a visão bíblica da justiça, indesligável da busca da plenitude da vida. A frase de Jesus que melhor sintetiza a justiça como busca da vida é esta: “Eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância” (Jo. 10,10). A justiça ao serviço da vida só pode significar a justiça ao serviço da pessoa humana, como defesa da sua integridade física, da sua promoção e desenvolvimento integrais e da harmonia da sua vida em sociedade, o que situa a defesa e o enquadramento da liberdade pessoal, afirmação da responsabilidade comunitária de cada um, inspirada num quadro de valores que a cultura define e a lei exprime como baliza do seu exercício. As leis que não promovam este desenvolvimento da pessoa humana, são injustas, isto é, não se afirmam como instrumentos da promoção da justiça. 2. Na tradição judaico-cristã, de que a Bíblia é a principal expressão, a plena justiça é sinónimo de vida em plenitude, perfeição que só será alcançada na fase escatológica da humanidade. A expressão “justiça divina”, não se refere tanto a Deus como um “justo Juiz”, mas a Deus plenitude da vida, que Ele comunica, em acto de criação contínua, aos homens que desejam viver, isto é, que procuram a justiça. Quando o crente de Israel, acabrunhado pela opressão que ele sabe ser castigo da sua infidelidade, reza ao seu Deus: “na Tua justiça dá-me a vida” (Ps. 119,40), pede muito mais do que uma sentença justa. O conceito de justiça alarga-se, assim, para a misericórdia, a bondade e o perdão, para a esperança de que o homem que falhou, perdoado da sua culpa, renasça para uma vida nova. A justiça, na linguagem bíblica é, antes de mais, o reconhecimento do “Justo”. Esta palavra refere-se, na maior parte dos casos, ao que é julgado, e não ao juiz que julga, embora apareça a expressão “justo juiz”, aquele que é sempre capaz de reconhecer a vida e a sua esperança de crescimento na pessoa que é julgada. O “justo”, aquele que é julgado é, etimologicamente, aquele que tem um direito, isto é, que tem uma vida que exige ser reconhecida e promovida. O aspecto mais nobre da justiça consiste nesta defesa do “justo”. Não o fazer, como aconteceu no processo que condenou Jesus, é a suma injustiça. A Bíblia não desconhece a “culpa” e o “culpado”, tornada clara como desobediência à lei, que na sua expressão mais nobre se identificava com os preceitos de Deus. Uma lei justa põe a claro a falha do pecador. Nesse caso, fazer justiça é levar o culpado a reconhecer a sua culpa, na verdade e na humildade, e partir daí para uma recuperação da dignidade e da vida. Julgar é ajudar a descobrir os desejos de vida que podem brotar da própria experiência da culpa. É neste contexto que surge a novidade cristã do conceito de justiça. Todo o homem é pecador, e só será “justo”, isto é, com um dinamismo de vida que merece ser defendido, com a acção transformadora do Espírito de Deus. É o mistério da “justificação”, isto é, do homem pecador que, pela fé em Jesus Cristo, acredita que pode voltar a ser “justo”, isto é, a crescer na “justiça”. Esta é, não só reconhecimento da vida, mas valorização da sua esperança, cujo fundamento é, não só a lei humana, mas a acção misericordiosa de Deus no coração do homem. É nesse sentido que Jesus diz aos seus discípulos: “Se a vossa justiça não for além da justiça dos fariseus, não entrareis no Reino dos Céus” (Mt. 5, 20). Reino dos Céus é sinónimo de reino de justiça, e a justiça dos fariseus pecava, porque limitavam a “justiça” ao cumprimento da lei farisaica, fechando-se à perspectiva da misericórdia, que restaura o coração do homem. 3. Mas que tem a ver esta visão bíblica da justiça, com a aplicação profana da justiça, numa sociedade plural e democrática? Penso que também aí a nobreza da justiça reside na defesa dos inocentes. Também perante a justiça humana, aquele que é julgado é o que tem direitos. Não é por acaso que na tradição judicial, todo o “acusado” se presume inocente, até que a verdade de um juízo faça todo o seu percurso. E mesmo quando se prova a culpa, todo o julgamento e a própria pena, devem promover a vida, desencadear a esperança de viver em dignidade. Nenhum homem é redutível à sua culpa. Isto sublinha a importância da busca da verdade na aplicação da justiça; não apenas a verdade dos factos, mas a verdade das pessoas neles implicados. Isso supõe uma visão do homem e da sua dignidade, exige respeito pelo carácter inviolável da vida humana. A relação entre justiça e verdade é o fundamento da dimensão ética, que deve presidir a toda a política da justiça, desde o fazer das leis à sua aplicação como critério de avaliação e de juízo. Sobre esta dimensão ética da política de justiça, ouçamos o Papa Bento XVI: “A justiça é o objectivo e também, consequentemente, a medida intrínseca de toda a política. A política é mais do que uma simples técnica para a definição dos ordenamentos públicos: a sua origem e o seu objectivo estão precisamente na justiça, e esta é de natureza ética. Assim, o Estado depara-se inevitavelmente com a questão: como realizar a justiça aqui e agora? Mas esta pergunta pressupõe outra mais radical: o que é a justiça? Eis um problema que diz respeito à razão prática; mas, para poder operar rectamente, a razão deve ser continuamente purificada porque a sua cegueira ética, derivada da prevalência do interesse e do poder que a deslumbram, é um perigo nunca totalmente eliminado. Neste ponto, política e fé tocam-se”1. A fé aparece como dinamismo purificador da própria razão, tornando-a capaz de captar a verdade das pessoas e das situações, iluminadas pelo amor. Esse é, acrescenta o Papa, o lugar do contributo específico da Igreja e dos cristãos na administração da justiça. A Igreja “deseja simplesmente, contribuir para a purificação da razão e prestar a própria ajuda para fazer com que aquilo que é justo possa, aqui e agora, ser reconhecido e, depois, também realizado”2. 4. Nesta circunstância da abertura do Ano Judicial, peçamos a Deus esta luz da fé, para vós que vos quisestes reunir aqui, invocando a bênção de Deus e para todos os que, no nosso País, trabalham em prol da justiça. Que a luz de Deus possa iluminar as suas inteligências, para fazerem leis justas e aplicá-las com justiça, na certeza de que ambas as coisas são um serviço à vida. D. José Policarpo, Cardeal-Patriarca de Lisboa

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